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Americanismo e fordismo, um dos mais instigantes textos da
obra de Antonio Gramsci, publicado pela primeira vez no Brasil na década
de 1960, chega novamente até nós com o quarto volume da nova edição dos
Cadernos do cárcere. Esse tema contempla uma das mais brilhantes
análises sobre o fenômeno americano como forma extrema de “revolução
passiva” e de regulação das relações humanas e sociais. Como processo de
organização do trabalho, o americanismo não busca rearticular apenas o
mundo da produção. Imbrica-se, também, na esfera da reprodução da vida
social, já que o controle do capital não incide somente na extração da
mais-valia, mas implica, ainda, o consentimento e a adesão das classes à
nova ideologia. A hegemonia que “nasce da fábrica”, escreve Gramsci, é
acompanhada por uma “moral dos produtores” e por uma “ética do
trabalho”, destinadas a produzir formas de passividade e adaptação das
classes trabalhadoras às estratégias de dominação capitalistas [1].
Escrito por Gramsci em 1934, Americanismo e fordismo
aparece originalmente no caderno número 22 e integra a produção do
último período em que permaneceu no cárcere. Durante os anos de
reclusão, Gramsci preencheu 33 cadernos escolares, dos quais 29 compõem a
primeira edição de sua obra publicada na Itália, entre 1948 e 1951. O
responsável pela organização do material desta edição inaugural foi
Palmiro Togliatti, companheiro de Gramsci na batalha contra o fascismo.
Togliatti agrupou os escritos carcerários por temas, a partir dos
seguintes títulos: Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce; Gli intellettuali e l’organizzazione della cultura; Il Risorgimento; Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno; Letteratura e vita nazionale e Passato e presente.
Essa primeira tentativa de organização dos textos de Gramsci,
conforme observa Carlos Nelson Coutinho, professor titular de teoria
política da UFRJ e tradutor das obras de Gramsci no Brasil, mesmo com
todas as indicações e advertências contidas nos prefácios e nas
apresentações, induz à falsa noção de que Gramsci, ao longo do período
em que passou no cárcere, tenha se dedicado a escrever sobre temas
variados em seis diferentes livros [2].
Essa chave de leitura somente será superada a partir de 1975,
quando os escritos carcerários de Gramsci foram publicados na Itália em
sua integralidade, pelo Instituto Gramsci, com a edição crítica dos Cadernos do cárcere,
em quatro volumes. Organizada por Valentino Gerratana, essa edição
apresenta a produção gramsciana na forma como foi exposta nos cadernos.
Foram excluídas as traduções, os apontamentos, as minutas de cartas e
todo o material não relacionado ao trabalho teórico.
No Brasil, a primeira tradução da obra gramsciana ocorreu na
década de 1960, por iniciativa de Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mário
Gazzaneo. A decisiva coragem de Ênio Silveira proporcionou, entre 1966 e
1968, a publicação, pela Editora Civilização Brasileira, de parte dos
títulos da edição temática togliattiana, paralisada pela radicalização
do regime militar.
Em 1966, foram publicados Concepção dialética da história (que por problemas de censura não manteve o título original: II materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce) e um volume das Cartas do cárcere, que continha parte da edição de Sergio Caprioglio e Elza Fubini, publicadas na Itália em 1965. Em 1968, é a vez de Os Intelectuais e a organização da cultura, Literatura e vida nacional e Maquiavel, a política e o Estado moderno. Constava ainda do projeto original de divulgação das obras de Gramsci no Brasil a publicação dos textos II Risorgimento e Passato e presente, não traduzidos devido ao recrudescimento da censura após a promulgação do AI-5.
A reedição dos volumes desse projeto editorial só irá ocorrer
na segunda metade da década de 1970, quando se começa a discutir no país
o chamado processo de “distensão” e, posteriormente, de “abertura”
político-democrática. Nesse contexto, os textos de Gramsci contribuíram
de forma decisiva na análise do quadro sociopolítico que se delineava
com a crise da ditadura militar, a tensão entre a ordem estabelecida e a
luta pela democracia, a reinserção dos movimentos da sociedade civil na
arena política, bem como a introdução de uma inovadora concepção de
socialismo junto aos segmentos de esquerda.
Assim, se na década de 1960, período de sua primeira tradução,
as idéias de Gramsci não tiveram grande repercussão no Brasil, entre os
anos de 1970 e 1980, quando a crise do regime autoritário e do modelo
econômico-social por ele imposto começa a explicitar-se abertamente, sua
obra passa a receber um tratamento mais coerente e sistemático, tanto
no âmbito acadêmico quanto na esfera da política.
Desvendado no texto e no contexto, autores de diversos campos
do conhecimento elegeram Gramsci como o pensador privilegiado na revisão
de aportes teóricos e no rompimento com matrizes conservadoras que
ganharam força nos tempos da ditadura. Tornou-se referencial singular e
fonte inspiradora de trabalhos nas áreas de educação, sociologia,
ciência política, antropologia, serviço social, direito, ciências da
religião, entre outras, que buscaram, em seu contexto particular,
articular a fecundidade e a universalidade das categorias gramscianas,
seja na prática investigativa, seja na transformação dos processos
sociais.
Essa ascensão meteórica, contudo, não impediu que tanto a
primeira edição italiana quanto a brasileira sempre suscitassem
calorosos embates, semeando controvérsias e indagações,
desconsiderando-se, muitas vezes, as circunstâncias e as condições
históricas no momento em que foram projetadas. Seria esse o verdadeiro
Gramsci? Hoje, passados mais de meio século de sua publicação na Itália e
quase quarenta anos no Brasil, pode-se reafirmar, ainda que se
reconheçam seus limites, a inquestionável importância dessa edição
togliattiana, seu inegável valor histórico, teórico e político,
imprescindível na organização das edições posteriores.
A edição completa dos Cadernos do cárcere começou a ser
publicada pela primeira vez no Brasil em 1999, organizada por Carlos
Nelson Coutinho, incansável e persistente divulgador da obra de Gramsci,
com a colaboração de Marco Aurélio Nogueira, professor livre-docente da
Unesp, e Luiz Sérgio Henriques, editor da revista eletrônica Gramsci e o Brasil.
Considerado hoje o maior especialista em Gramsci no Brasil, Coutinho
consolida, nesta edição, a vitalidade de um pensamento que sobreviveu a
diferentes conjunturas e continua sendo referência para os segmentos de
esquerda do mundo todo, empenhados na construção de um outro projeto
civilizatório.
A nova tradução brasileira dos Cadernos pode ser
considerada um projeto inédito, uma vez que articula tanto elementos da
edição temática togliattiana quanto da edição crítica de Gerratana.
Esses dois critérios de organização dos escritos carcerários de Gramsci,
que tornaram possível a divulgação de seu pensamento em diversos
continentes, fornecendo caminhos fecundos no repensar do debate marxista
e das estratégias políticas da esquerda, vêm sendo acrescidos de novos
elementos por intérpretes do pensamento gramsciano. O filólogo italiano
Gianni Francioni sugere uma edição dos Cadernos do cárcere em que
sejam agrupados separadamente os “cadernos miscelâneos” - sobre temas
variados, cujos títulos aparecem repetidamente em vários cadernos - e os
“cadernos especiais” - referem-se à reelaboração de apontamentos
presentes nos “cadernos miscelâneos” [3]. Vale lembrar que essa
metodologia já havia sido adotada na edição crítica de Gerratana,
segundo as indicações do próprio Gramsci, mas em Gerratana os cadernos
“miscelâneos” aparecem intercaladamente, respeitando a ordem em que
foram escritos.
A presente edição brasileira optou por outra alternativa
metodológica: reproduz os “cadernos especiais”, tais como se encontram
na edição Gerratana. As notas “miscelâneas”, no entanto, são agrupadas
após cada “caderno especial”, de acordo com o tema tratado, conservando a
ordem cronológica e a numeração utilizadas na edição italiana. Este
critério, conforme esclarece Coutinho, “oferece ao leitor de língua
portuguesa a junção dos elementos positivos das duas edições italianas:
da velha edição temática, conserva as vantagens de uma maior
acessibilidade imediata aos textos gramscianos; mas, ao mesmo tempo,
coloca à sua disposição os instrumentos que lhe permitem desfrutar do
rigor filológico próprio da edição de Gerratana” [4].
Em seu conjunto, o projeto brasileiro apresenta a obra de Gramsci em dez volumes. Os Cadernos do cárcere, especificamente, compreendem seis volumes: 1) Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce; 2) Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo; 3) Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política; 4) Temas de cultura. Ação católica. Americanismo e fordismo; 5) O Risorgimento italiano. Notas sobre a história da Itália; 6) Literatura. Folclore. Gramática. Abrange, ainda, dois volumes sobre os Escritos políticos, de 1910 a 1920 e de 1921 a 1926, e dois volumes das Cartas do cárcere. Além da diferente organização do material, esta nova edição contém inúmeros textos ainda não publicados no Brasil.
O primeiro volume, publicado em dezembro de 1999, contém os
cadernos 10 e 11. O caderno 10, dedicado à Filosofia de Benedetto Croce,
traz à cena o diálogo de Gramsci com um dos maiores representantes do
liberalismo italiano. Estrutura, superestrutura, ideologia, filosofia,
hegemonia, intelectuais, história e política, objetividade e
subjetividade, individual e coletivo, necessidade e liberdade são
categorias presentes nesta interlocução com o napolitano Croce,
reafirmando o esforço de Gramsci em recuperar a teoria social de Marx e
traduzi-la como filosofia da práxis.
No caderno 11, o autor desenvolve uma longa polêmica com Bukharin, a partir da obra intitulada A teoria do materialismo histórico - manual popular de sociologia marxista,
chamada por Gramsci de “Ensaio popular de sociologia”. Neste debate,
desencadeia uma pesada crítica ao economicismo e ao marxismo vulgar
decorrentes da Segunda Internacional, bem como à sociologia, nascida no
berço do positivismo. Gramsci defende o marxismo como uma filosofia da
história, um pensamento aberto, não determinado a priori. “A
filosofia da práxis - escreve ele - é o historicismo absoluto, a
mundialização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo
absoluto da história [5].” Vários cadernos miscelâneos complementam este
volume, trazendo temas fundamentais que revelam ser a história “um
contínuo e progressivo fazer-se” [6].
O volume 2, lançado em 2000, versa sobre os intelectuais, o
princípio educativo e o jornalismo. Congrega os cadernos 12, 24 e 28,
nos quais Gramsci apresenta uma nova concepção de intelectual, a partir
do lugar e da função que este desempenha num determinado processo
histórico, propondo que seu “modo de ser não pode mais consistir na
eloqüência, força motriz exterior e momentânea dos afetos e das paixões,
mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador,
persuasor permanente” [7]. O papel revolucionário dos intelectuais, no
diálogo com as camadas populares e na função da cultura como forjadora
da liberdade, constitui o cerne das reflexões destes cadernos.
Os cadernos 13 e 18 integram o volume 3, também publicado em
2000, apresentando uma contribuição fundamental à teorização do partido
político - o “moderno príncipe”, o condottiero, expressão da
vontade coletiva - e uma análise da política a partir da interlocução
com a obra de Maquiavel. Encontramos ainda, neste volume, a brilhante
análise do pensador sobre a correlação de forças, novas reflexões sobre
Estado e hegemonia, Oriente e Ocidente, guerra de movimento, guerra de
posição e revolução passiva, categorias que se configuram no epicentro
das reflexões gramscianas de todo o período carcerário.
Além do caderno 22, que trata de Americanismo e fordismo,
conforme já se indicou, o volume 4, publicado em 2001, congrega também
os cadernos 16, 20 e 26, que abordam temas relativos à esfera da
cultura, condição necessária ao processo revolucionário, à Ação Católica
e ao peso secular da Igreja na determinação da visão de mundo e do modo
de pensar das massas populares.
O volume 5, por meio do caderno 19, aborda o Risorgimento
italiano, clássico exemplo de revolução passiva. O volume 6, a ser
publicado em 2002, tratará dos temas relativos ao folclore, à literatura
e à gramática, incluindo, ainda, a apresentação de um índice analítico
dos principais conceitos gramscianos e um sumário detalhado de todos os
cadernos.
Os dois volumes sobre os Escritos políticos, de 1910 a
1920 e de 1921 a 1926, previstos para publicação em 2003, tornarão
possível o acesso às principais elaborações do jovem Gramsci: são textos
de extrema riqueza e documentos excepcionais, que traçam um itinerário
político e intelectual decisivo não apenas da história da Itália, mas
também da realidade européia. A militância política, as reflexões sobre o
papel dos partidos, dos sindicatos, do movimento operário em geral
aparecem aqui como temas centrais para pensar a revolução socialista.
As Cartas do cárcere completarão, ainda em 2003, o
projeto editorial por meio de dois volumes. Contrapondo-se à velha
edição brasileira, que contém apenas 223 cartas, a nova edição incluirá
todas as cartas carcerárias de Gramsci descobertas até o momento (cerca
de 500). Além disso, mesmo as já publicadas em português serão novamente
traduzidas e anotadas. As cartas constituem uma preciosa chave para a
leitura dos Cadernos, oferecida por Gramsci sem intenção;
trata-se de ferramenta metodológica fundamental à compreensão do caminho
percorrido ao longo das reflexões carcerárias. Num diálogo mais consigo
mesmo do que com seus interlocutores diretos, o pensador vai,
dialeticamente, descrevendo a sua trajetória e traçando a sua
autobiografia política, intelectual e moral.
Este magnífico projeto editorial dos Cadernos do cárcere,
resultado de um rigoroso trabalho de pesquisa, aliado a uma tradução
impecável, representa, sem dúvida, um marco no pensamento social
brasileiro. A reedição da obra de Gramsci, reafirmando seu aporte
categorial rigorosamente dialético-marxista e seu projeto revolucionário
de sociedade, constitui uma contribuição inestimável, não apenas no
plano das idéias, mas também no plano da ação política; e, sobretudo,
constitui referência obrigatória para aqueles que buscam a construção de
uma sociedade radicalmente democrática.
Pensador comunista, o autor dos Cadernos espalhou por todos os continentes a idéia de revolução contra o status quo,
não pautada em sonhos e ideais, mas na construção paciente, ação tenaz e
combativa, processo contínuo que necessariamente se renova e se
transforma [8]. Sua profunda reflexão sobre o capitalismo, o poder
político e a opressão nos instiga a permanecer abertos ao novo, que, de
maneira contínua, irrompe na história, voltando brutalmente nossa
atenção para o presente tal como é, se se quer transformá-lo. Seu
pensamento não se dirige, apenas, aos homens do século XX, mas
continuará - como era seu desejo - für ewig, ou seja, para
sempre. Eternizado em sua obra, permanecerá como um importante e
imprescindível referencial, pelas luzes que lança sobre a discussão da
política e das instituições, num momento em que se esfumam as crenças no
Estado, na política e na própria esquerda. Enfim, quando carecemos,
mais do que nunca, de uma verdadeira “reforma intelectual e moral”.
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Ivete Simionatto é professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina.
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Notas
[1] Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere, v. 4.
Ed. Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e
Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
[2] Id., v. 1, 1999.
[3] Id., p. 12.
[4] Id., p. 44.
[5] Id., p. 155
[6] Id., p. 256
[7] Id., p. 53
[8] V. Gerratana. “A reforma gramsciana da política”. Presença. Rio de Janeiro, n. 17, nov. 1991, p. 57-63.
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