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I
Os estudiosos e integrantes da “Escola dos Annales” - o
movimento marcadamente francês, nascido em 1929, que revolucionou a
historiografia tradicional e construiu a “História Nova” - costumam
observar uma significativa transformação ocorrida em seu seio durante os
anos 60 e 70. O interesse intelectual dos seguidores de Marc Bloch,
Lucien Febvre (primeira geração) e Fernand Braudel (segunda geração)
transferiu-se das análises socioeconômicas para aquelas
político-ideológicas. Os historiadores da sua terceira geração
abandonaram o “porão” da história econômica e subiram até o “sótão” da
história cultural [1].
No presente excurso, pretendemos mostrar que, no âmbito
específico da teoria marxista, esta passagem do “porão” ao “sótão”, de
uma preocupação quase exclusiva com o nível material da realidade para
uma ênfase ponderada no aspecto espiritual da vida, deu-se
aproximadamente quatro décadas antes com as reflexões originais de
Antonio Gramsci.
Com o autor dos Cadernos do cárcere, o marxismo inicia
um processo de superação do determinismo econômico que o caracterizou
não apenas durante o período de predomínio do absolutismo
teórico-político marxista-leninista, mas também em meio ao reinado da
Segunda Internacional; tal superação, para nós, corresponde a uma
possibilidade legítima de apropriação do legado intelectual de Karl
Marx.
Em outras palavras, pelas mãos de Gramsci é recuperado um outro
Marx (e não sem tensões como, por exemplo, na permanência do uso das
altamente questionáveis dicotomias de “infra-estrutura/superestrutura” e
“classe em si/classe para si”), que não é aquele claramente
influenciado pelo evolucionismo cientificista do século XIX; é trazido
de novo à vida o Marx que viu e defendeu a razão da liberdade perante a
força da necessidade, o Marx que edificou uma teoria da sociedade humana
baseado em três pilares fundamentais, a saber, as noções de totalidade, contradição e historicidade [2].
Entretanto, Gramsci não apenas recuperou o “Marx da liberdade
da ação política e cultural”, diferentemente daqueles que preferiram
mergulhar na herança do “Marx da necessidade da determinação econômica”,
como, além disso, superou dialeticamente o autor de O capital,
ampliando, na formulação de conceitos novos, o entendimento das três
noções que embasam a dialética materialista e direcionando-as no sentido
de uma “história ético-política” [3].
E neste ponto preciso, Gramsci parece não ter se apercebido por
completo da verdade contida na crítica contundente ao pensamento
marxista feita pelo filósofo italiano, fundador da historiografia
presentista, Benedetto Croce: o marxismo, sem dúvida alguma, nunca tinha
se constituído numa “história ético-política”. Somente com o próprio
Gramsci, sob forte e decisiva influência de Croce, o marxismo incorporou
este tipo de história e deixou de ser apenas um sinônimo de
economicismo vulgar. É esclarecedora, dentro desse contexto, o
comentário de Gramsci sobre o debate travado entre Croce e Lunatcharski,
por ocasião de um congresso internacional de filosofia em Oxford, sobre
a existência ou não de uma doutrina estética do materialismo histórico:
Pode-se, por certo, demonstrar que muitos dos
chamados teóricos do materialismo histórico caíram numa posição
filosófica semelhante a do teologismo medieval, e fizeram da “estrutura
econômica” uma espécie de “deus desconhecido”; mas, que significado
teria isto? Seria como se quiséssemos julgar a religião do papa e dos
jesuítas falando das superstições dos camponeses de Bergamo [4].
A partir desse contexto, realizamos, aqui, uma tripla aposta.
Em primeiro lugar, com as reflexões implementadas por Gramsci, as noções
de totalidade (a idéia de que a realidade histórica só pode ser
captada levando-se em consideração todos os seus aspectos e que se volta
contra a apologia do fragmentário feita pelos teóricos da
pós-modernidade, a qual já se encontra no cerne dos argumentos de Max
Weber), de contradição (a concepção de que o movimento na
história é fruto dos conflitos existentes entre os homens e que se choca
com o funcionalismo harmônico erigido por Émile Durkheim e todas as
formas posteriores de conservadorismo organicista) e de historicidade
(a proposição de que as sociedades e suas transformações só podem ser
compreendidas através da percepção da sua localização histórica, o que
bate de frente com todas as formas de dogmatismo bolchevista, seja a
stalinista ou a trotskista), as três juntas, ganharam um aprofundamento
teórico sem precedentes no interior das várias tradições marxistas, dos
inúmeros marxismos antes desenhados. Em segundo lugar, mesmo advogando a
proposição de que, “para ser um bom marxista hoje, é preciso ir além
das fronteiras do próprio marxismo”, a partir dos frutos deixados pela
obra gramsciana é possível encontrar respostas atuais aos grandes
impasses vividos pela humanidade sob as estruturas de dominação do
sistema capitalista contemporâneo. Em terceiro lugar, em relação às
críticas arrasadoras à suposta ignorância pelo marxismo das questões
culturais, das duas uma: ou são de má-fé ou desconhecem por completo (o
que é muito pouco provável) a “história ético-política”, a “subida ao
sótão” da filosofia da práxis de Antonio Gramsci.
Buscaremos, aqui, indicar a forma como se deu esta passagem no
pensamento gramsciano através de três instantes. Num primeiro,
enfocaremos as preocupações contidas nos escritos da sua fase
pré-carcerária - as crônicas teatrais e os artigos sobre os conselhos de
fábrica e a questão meridional. Num segundo, nos deteremos naquilo que
foi dito de informalmente na correspondência do cárcere - e que é
revelado pela cabeça não do intelectual rigoroso, mas do homem de carne e
osso que é obrigado a conviver com os terríveis sofrimentos da prisão
-, na tentativa de rastrear a influência dessa experiência trágica no
processo de construção do seu edifício teórico. Num terceiro,
investigaremos o conceito-chave forjado no período carcerário -
“hegemonia” [5].
II
As crônicas teatrais escritas pelo jovem Gramsci - entre 1916 e 1920 - no Avanti! ,
órgão central do Partido Socialista Italiano (PSI), revelam a dupla
influência sofrida nos seus anos de formação intelectual. Por um lado, a
orientação anticapitalista recebida através do irmão mais velho
Gennaro. Por outro lado, a presença idealista resultante da entrada em
contato com o neo-hegelianismo de Benedetto Croce e Giovanni Gentile.
Assim, convivem lado a lado, de forma pacífica, críticas
severas à dissolução artística resultante da capitalização e da
mercantilização do teatro e à sua transformação de experiência estética
em fato de ordem comercial, por um lado, e a idéia de obra de arte como
diversidade, distinção, individuação, não submetida a nenhuma espécie de
lógica extrínseca, por outro lado. Então, a percepção do valor social
do teatro (sua função de satisfazer a necessidade de ocupação cerebral,
de exercitar a ação estética do espírito, após uma jornada de trabalho
febril e pesada, após a atividade econômica e um mero exercício de
forças musculares) se completava com a visualização do ator como um
indivíduo no qual a fantasia criadora predomina absolutamente sobre a
lógica, pois ele deve dar prosseguimento ao trabalho fantástico do autor
[6].
Uma síntese dessa convivência entre socialismo e idealismo no
Gramsci da casa dos vinte anos pode ser indicada exemplarmente no seu
comentário sobre a encenação de Anfissa, de Andrieiev:
Confessamos, porém, que o público burguês do teatro
não era dos mais adequados a seguir e sentir a obra de arte. A inteira
verdade desta obra, infelizmente, devia lhe provocar a impressão de um
murro no estômago.
Desejamos para este drama, portanto, um público melhor, mais tosco,
mais imediatamente sincero, mais próximo de gozar e sofrer a impetuosa
angústia da tragédia. Desejamos para ele um público de proletários [7].
No mesmo período em que escreveu sobre questões estéticas no Avanti! ,
Gramsci também atuou politicamente, lutando pelo movimento conselhista
que sacudiu o Norte industrial italiano, principalmente a cidade de
Turim, em 1919 e 1920. Então, junto a Angelo Tasca, Palmiro Togliatti e
Umberto Terracini, Gramsci organiza o jornal L’Ordine Nuovo, objetivando fazer a revolução italiana a partir dos conselhos de fábrica.
Enquanto Gramsci e os seus companheiros de L’Ordine Nuovo
lutavam por um tipo de comunismo de conselhos, por uma revolução
baseada no lema “Todo poder do Estado aos conselhos de fábrica”, Amadeo
Bordiga defende, no periódico Soviet, a impossibilidade de fazer
uma revolução sem a direção rígida do partido de classe e define como
ilusória a existência de conselhos e sindicatos sem a direção consciente
de uma organização propriamente política centralizadora das suas lutas.
Todavia, a nosso ver, o posicionamento gramsciano neste momento
se encontra atravessado por uma ambigüidade, que expressa tanto a forte
influência exercida pelo pensamento de Lenin e pela vitoriosa Revolução
Russa, como uma percepção espontaneísta, bastante próxima do
luxemburguismo, fundamentada na observação da importância da experiência
do movimento independente dos trabalhadores.
Dessa forma, por um lado, encontramos um Gramsci que se refere
ao partido como consciência crítica e operante da classe trabalhadora,
força dirigente do movimento operário, órgão de educação comunista,
chama da fé, depositário da doutrina, poder supremo que harmoniza e
conduz à meta as forças organizadas e disciplinadas da classe operária e
camponesa, instituição que tem a tarefa de transformar definitivamente
os trabalhadores do campo e da cidade em classe dominante, a parte mais
consciente e responsável da classe operária [8].
Por outro lado, percebemos um outro Gramsci, que critica a
idéia do partido e do sindicato como representantes do verdadeiro
processo da revolução, já que este teria lugar no interior da fábrica,
na produção, com a formação dos conselhos - por isso mesmo, partido e
sindicato não deveriam nunca tutelar os conselhos de fábrica. Ao
contrário do caráter não-revolucionário do sindicato (parte integrante
do sistema capitalista que negocia a força de trabalho da classe
operária, organizando-a como um conjunto de assalariados), o conselho de
fábrica se distinguiria por ser o órgão revolucionário da classe
operária, o modelo do Estado proletário, o germe da sociedade comunista,
pois tratava os trabalhadores enquanto um agrupamento de produtores
[9].
No decorrer da primeira metade dos anos vinte, todavia, as
ambigüidades do pensamento ainda não maduro de Gramsci vão sendo
suprimidas e, em seu lugar, aparecem já as preocupações e as primeiras
elaborações teóricas que o acompanharão no período carcerário, as quais
constituirão sua contribuição original ao desenvolvimento do
materialismo histórico.
No ano de 1924, três anos após a fundação do Partido Comunista
Italiano (PCI), Gramsci fareja a necessidade da formulação de uma
estratégia revolucionária diferente daquela levada a cabo pelos
bolcheviques russos, que fosse mais adequada à realidade histórica em
que ele vivia. Neste período, os conceitos de “Ocidente/Oriente” e
“guerra de movimento/guerra de posição” surgem de forma germinal quando
Gramsci fala, em fevereiro, que:
A determinação (revolucionária) que, na Rússia, era
direta e punha as massas nas ruas para o assalto revolucionário
complica-se na Europa Central e Ocidental, por causa de todas essas
superestruturas políticas, criadas pelo maior desenvolvimento do
capitalismo; isso torna mais lenta e mais prudente a ação das massas e,
por conseguinte, exige do partido revolucionário toda uma estratégia e
uma tática bem mais complexa e de longo alcance do que aquelas que foram
necessárias aos bolcheviques no período entre março e dezembro de 1917
[10].
E volta a dizer, em setembro, após o assassinato do deputado
socialista Giacomo Mateotti pelos fascistas, que a hora não era de
tentativas insurrecionais, mas sim de organização política:
A situação é “democrática” porque as grandes massas
trabalhadoras estão desorganizadas, dispersas, pulverizadas no povo
indiferenciado. Por isso, qualquer que possa ser o desenvolvimento
imediato da crise, podemos prever somente uma melhoria na posição
política da classe operária, não uma luta vitoriosa pelo poder. A tarefa
essencial do nosso partido consiste na conquista da maioria da classe
trabalhadora; a fase que atravessamos não é a luta direta pelo poder,
mas uma fase preparatória, de transição à luta pelo poder; em suma, uma
fase de agitação, de propaganda, de organização [11].
Mas é em setembro/outubro de 1926, no artigo inacabado “Alguns
temas da questão meridional” (não concluído devido a sua prisão no mês
de novembro), que se constata uma verdadeira inflexão no desenvolvimento
teórico de Gramsci. Neste que é o texto mais rico, mais completo, do
líder comunista italiano, antes do seu encarceramento pela ditadura
fascista, as categorias de “hegemonia”, “classe dirigente”, “consenso”,
“bloco histórico”, “intelectual orgânico e intelectual tradicional”
aparecem sob a forma de sugestão.
Ao procurar dar uma resposta única a três questões
aparentemente distintas (a meridional, a nacional e a social), Gramsci
atentou para a centralidade da função exercida pelos intelectuais na
sociedade, como enfermeiros que fazem o ponto de sutura entre estrutura
socioeconômica e superestrutura político-ideológica, ou como operários
que soldam as fissuras de um bloco histórico. A fim de destruir o bloco
histórico que se encontrava no poder naquele momento na Itália, baseado
na aliança entre industriais do Norte e latifundiários do Sul (e o nosso
autor sabia muito bem que o atraso do Sul era funcional em relação ao
desenvolvimento capitalista do Norte), impunha-se como condição sine qua non
a formação de uma camada de intelectuais como elementos organizativos
vinculados intimamente à classe operária; tal camada seria responsável
pela formação de um bloco histórico alternativo, fundamentado na união
entre operários setentrionais e camponeses meridionais, acabando assim
com a influência conservadora do clero - daqueles intelectuais típicos
das sociedades tradicionais e não das sociedades industriais - sobre a
massa camponesa [12].
III
[...] dizem que o mar é sempre imóvel além dos
trinta metros de profundidade; pois bem, eu afundei pelo menos vinte
metros, isto é, estou imerso naquela camada que apenas se move quando se
desencadeiam tempestades de uma certa importância, muito acima do
normal. Mas sinto afundar sempre mais, e lucidamente vejo o momento em
que alcançarei, por linhas imperceptíveis, o nível da imobilidade
absoluta, onde não se farão sentir nem mesmo as borrascas mais
formidáveis, de onde não será mais possível nem mesmo ver os movimentos
das camadas superiores sequer como uma simples marejada de bordados de
espuma.
Este trecho da carta escrita por Gramsci a sua cunhada, às
vésperas de completar dois anos de encarceramento, onde realiza uma
comparação entre seu estado de espírito e o mar, assinala a passagem
trágica ocorrida na vida de um homem que, nos primeiros tempos de
prisão, ainda raciocinava de acordo com a máxima “pessimismo da
inteligência/otimismo da vontade” [14]; mas, com os terríveis
sofrimentos físicos e psíquicos impostos pelo isolamento forçado (e,
principalmente, após a primeira grave crise de agosto de 1931 e a
segunda de março de 1933), Gramsci acaba perdendo todas as esperanças e
passa a assumir o duplo pessimismo da razão e do desejo [15].
No entanto, apesar de todos os males sofridos (ou, talvez, por
causa destes mesmos males), Gramsci consegue transformar o marxismo, que
deixa de ser uma teoria unicamente voltada para a “reforma econômica”
para se orientar também para a “reforma intelectual e moral” das
sociedades modernas - criando, assim, uma nova forma antideterminista do
marxismo.
A nosso ver, a experiência do cárcere, o aprendizado
existencial na prisão como que se incorporaram no aparelho conceitual
legado por Gramsci - sua lição de vida parece ter se infiltrado por
entre os poros das formulações teóricas mais sofisticadas. Nesse
sentido, a fim de germinar, as categorias entrevistas por Gramsci até
1926 necessitariam do adubo contraditoriamente destruidor representado
pelos mais de dez anos de prisão. Assim, a “subida ao sótão” realizada
por Gramsci teve uma gênese metapolítica [17].
As confissões de que o presente e o futuro haviam perdido
completamente a importância e teriam se tornado coisas incertas, não
mais pertencentes a ele e à sua vontade, e que, nesse tipo de situação,
só se conseguiria ter perspectivas ante o passado, tornado o único fato
certo da vida (por isso mesmo, passa-se a revolvê-lo continuamente,
analisando-o e terminando por vê-lo em todas as suas relações) - estas
confissões parecem nos dar algumas pistas para o esclarecimento da
gênese metapolítica do pensamento maduro de Gramsci [18]. Restava a ele
somente a idéia de fazer algo que o deixasse eternizado:
A minha vida transcorre sempre igualmente monótona.
Mesmo estudar é muito mais difícil do que pareceria. Recebi alguns
livros e em verdade leio muito (mais de um volume por dia além dos
jornais), mas não é a isto que me refiro; falo de outras coisa. Estou
dominado (e este será um fenômeno comum aos encarcerados, segundo penso)
por esta idéia: que precisaria fazer alguma coisa für ewig,
segundo uma complexa concepção de Goethe que recordo ter atormentado
muito o nosso Pascoli. Em resumo, pretenderia, segundo um plano
preestabelecido, ocupar-me intensa e sistematicamente de algum tema que
me absorvesse e centralizasse a minha vida interior. Pensei em quatro
temas até agora, e este já é um indício de que não consigo me recolher
[19].
Encabeçando a lista, estaria a grande preocupação teórica de
Gramsci, a saber, a realização de um estudo sobre os intelectuais
italianos - interesse nascido como que colado ao desejo de aprofundar o
conceito de Estado. E, neste ponto, dois trechos das Cartas do Cárcere
parecem justificar amplamente aquilo que sustentamos no presente item.
No primeiro, Gramsci indica como pretende recuperar (ampliando) o seu
último escrito do período pré-carcerário:
Lembra o meu rápido e superficialíssimo escrito
sobre a Itália meridional e a importância de B. Croce? Pois bem,
gostaria de desenvolver amplamente a tese que então esboçara, de um
ponto de vista desinteressado, für ewig [20].
No segundo, relaciona seu estudo sobre os intelectuais italianos ao conceito de Estado:
Este estudo leva também a certas determinações do
conceito de Estado, que comumente é entendido como sociedade política
(ou ditadura, ou aparelho coercitivo para amoldar a massa popular ao
tipo de produção e à economia de dado momento) e não como um equilíbrio
da sociedade política com a sociedade civil (ou hegemonia através das
chamadas organizações privadas, como a Igreja, os sindicatos, as
escolas, etc.), e justamente na sociedade civil operam os intelectuais
(Benedetto Croce, por exemplo, é uma espécie de papa leigo e instrumento
eficacíssimo de hegemonia, ainda quando, vez por outra, esteja em
desacordo com este ou aquele governo, etc.) [21].
IV
O conceito de hegemonia em Gramsci nasce como corolário da
nova significação por ele dada à realidade estatal. Ao definir o Estado
como uma instituição formada por dois “grandes planos superestruturais”
(a “sociedade civil”, onde se constrói o “consenso”, e a “sociedade
política”, onde se exerce a “coerção”), ele constatou que o poder
estatal não mais se legitimava puramente através da “dominação”, mas
também por meio da “hegemonia” - o Estado transformara-se em “hegemonia
revestida de coerção” [22].
O marxismo, para Gramsci, reivindica a história ético-política,
o momento da hegemonia, como algo essencial, que constitui condição sine qua non
da sua concepção de Estado. Este fato está fecundamente enraizado, por
sua vez, na percepção historicamente localizada de que as chamadas
superestruturas, as ideologias “são uma realidade objetiva e operante”,
“são fatos históricos reais”, e não “pura aparência”, que se desenvolvem
intimamente relacionadas, sob um nexo de reciprocidade vital, com as
ditas estruturas, dando vida a um “bloco histórico”. A distinção entre
conteúdo (forças materiais) e forma (ideologias) seria apenas de caráter
didático, pois, de acordo com Marx, “os homens tomam conhecimento dos
conflitos de estrutura no terreno das ideologias”.
Assim, é realçada a importância do momento ideológico, do clima
cultural, na atividade prática coletiva. E é por isso mesmo que Gramsci
não tem o menor pudor em afirmar que a ciência e o próprio marxismo são
ideologias e que a filosofia é uma concepção de mundo, uma luta
cultural para transformar a mentalidade popular. Para ele, valorização
da cultura, crítica ao cientificismo e afirmação dos valores
democráticos no processo educacional (entendido num sentido amplo, para
além dos muros escolares) fazem parte de um corpo único, o que é
facilmente constatado na sua idéia de que “toda relação de hegemonia é
necessariamente uma relação pedagógica de vinculações recíprocas” [23].
Isto fica ainda mais evidente quando comenta o papel desempenhado pelos
intelectuais como “funcionários das superestruturas”. Seus serviços
seriam “elemento de hegemonia”, “de democracia no sentido moderno”, pois
realizariam “nexos nacionais entre governantes e governados” [24].
Entretanto, a idéia gramsciana de hegemonia não se limita -
como, por exemplo, no pensamento de Lenin - ao campo restrito da
política. Diferentemente, ela invade profundamente o espaço da cultura,
até então bastante ignorada pelos marxistas, que é definida como:
[...] uma coerente, unitária e nacionalmente
difundida “concepção da vida e do homem”, uma “religião laica”, uma
filosofia que tenha se transformado precisamente em “cultura”, isto é,
que tenha gerado uma ética, um modo de viver, uma conduta civil e
individual [25].
Uma definição quase idêntica àquela dada à ideologia:
[...] uma concepção de mundo que se manifesta
implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas
as manifestações de vida individuais e coletivas [26].
E à hegemonia:
[...] uma unidade intelectual e uma ética
adequadas a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se
crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos [27].
Por isso, a necessidade de a “filosofia da práxis” lutar não
apenas no nível especificamente político, mas também por uma nova
cultura, por um novo humanismo, com base na crítica dos costumes, dos
sentimentos, das concepções do mundo, da estética e da arte [28].
Para Gramsci, esta nova cultura deve expressar todo um processo
de renovação intelectual e moral, um processo difusor de uma
contra-hegemonia, enraizado no húmus da experiência nacional-popular. E,
a fim de se tornar nacional-popular, um movimento intelectual deve
trazer em si um viés “Renascimento” (alta cultura) e outro “Reforma”
(cultura popular).
E foi, justamente, a ausência da “ida ao povo-nação” por parte
da classe culta italiana - a falta de uma íntima solidariedade
democrática entre intelectuais dirigentes e massas populares, entre
elite de escritores e público comum - que levou Gramsci a caracterizar a
literatura feita no seu país como cosmopolita. Ela nunca adquiriu
historicidade de massa e nunca se tornou uma fato nacional [29]. Assim,
devido à inexistência de identidade de concepção de mundo entre letrados
e povo italiano (a presença de um “Renascimento elitista”, sem a
concomitância de uma “Reforma popular”), este último encontrar-se-ia
subordinado à hegemonia intelectual e moral de outros povos:
Na Itália, o termo “nacional” tem um significado
muito restrito ideologicamente e, de qualquer modo, não coincide com
“popular”, já que os intelectuais estão afastados do povo, isto é, da
“nação”, estando ligados, ao contrário, a uma tradição de casta, que
jamais foi quebrada por um forte movimento político popular ou nacional
vindo de baixo [...] o termo “nacional” de uso corrente está ligado na
Itália à tradição intelectual e livresca [30].
Contra os dois extremos compreendidos pelo “elemento popular”,
que sente “mas nem sempre compreende ou sabe”, e pelo “elemento
intelectual”, que sabe “mas nem sempre compreende e muito menos sente”,
Gramsci propõe, então, uma nova relação entre intelectuais e povo-nação,
dirigentes e dirigidos, governantes e governados: “uma adesão orgânica,
na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, saber
(não de uma maneira mecânica, mas vivencialmente)” [31].
Caberia ao “moderno Príncipe” - “aquele determinado partido que
pretende (e está racional e historicamente destinado a este fim) fundar
um novo tipo de Estado” [32] - a realização dessa tarefa, o dever de
ser o responsável pela propaganda e organização de uma “reforma
intelectual e moral” orientada no sentido da formação de uma “vontade
coletiva nacional-popular”. Uma “reforma intelectual e moral” que não
pode estar desvinculada dos ideais de “reforma econômica”, pois a
hegemonia é ético-política mas também econômica. Só assim será edificado
um bloco histórico alternativo, isto é, uma outra “unidade entre a
natureza e o espírito (estrutura e superestrutura)” [33].
Por exercer uma função essencialmente hegemônica, o “moderno
Príncipe” é percebido como tendo a tarefa de defender o desaparecimento
do Estado, ou seja, “a reabsorção da sociedade política pela sociedade
civil” [34].
O “moderno Príncipe”, de acordo com esse raciocínio, seria uma
organização política típica dos países do “Ocidente” (onde há “entre o
Estado e a sociedade civil uma justa relação”) e não do “Oriente” (onde
“o Estado era tudo e a sociedade civil era primordial e gelatinosa”),
apropriada aos países nos quais é travada uma “guerra de posição”
(estabelecida nas trincheiras da sociedade civil) e não uma “guerra de
movimento” (efetivada diretamente contra a sociedade política) [35].
Exclusivamente nestas nações “ocidentais”, o “moderno Príncipe”
conseguiria desenvolver uma luta pela “passagem do momento econômico ao
momento ético-político”, “a elaboração superior da estrutura em
superestrutura na consciência dos homens”, a migração do “objetivo ao
subjetivo”, da “necessidade à liberdade”: o “processo de catarse”. Um
movimento definido por Gramsci como “o ponto de partida da filosofia da
práxis”, que parece sintetizar tanto a “radicalidade democrática” como a
“subida ao sótão” contidas na sua filosofia:
[...] A estrutura da força exterior que subjuga o
homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de
liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em
fontes de iniciativa [36].
______________
Marco Mondaini é professor de História da UFF.
_____________
Notas
[1] Ver, por exemplo: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989) .
São Paulo, Unesp, 1991, p. 81. Em nota, o historiador britânico diz
que, segundo Michel Vovelle, a frase “do porão ao sótão” foi criada por
Emmanuel Le Roy Ladurie.
[2] LOWY, Michael. Ideologias e ciência social. São Paulo, Cortez, 1992, p. 14-7.
[3] Com isso, obviamente, não estamos defendendo a
idéia de que “liberdade” e “necessidade” estejam isoladas entre si na
realidade concreta, muito menos que Marx pensasse nesses termos. Ao
contrário, concordamos com a visão de Giambattista Vico (lido por Marx
com atenção) da história como uma espiral, síntese constante do encontro
entre liberdade e necessidade. O que queremos dizer é que o
privilegiamento inicial de uma das duas traz em si explícitos resultados
teórico-políticos.
A expressão “ampliando” foi empregada, ainda neste parágrafo, como
sinônimo de “concretizando”, isto é, “tornando mais complexo, mais
saturado de determinações”.
[4] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schucht” de 1/12/1930. In: Cartas do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, p. 178.
[5] Torna-se necessário sublinhar que, ao realçarmos a
importância de Gramsci no processo de renovação do pensamento marxista,
não desconhecemos o caráter significativo de reflexões não menos
renovadoras, como as desenvolvidas por outros membros do chamado
“marxismo ocidental” - principalmente aquelas implementadas pelos
filósofos da “Escola de Frankfurt” e pelo existencialista francês
Jean-Paul Sartre - e pelo genial agrupamento de historiadores marxistas
que romperam com o Partido Comunista Britânico, em 1956, por discordarem
das suas posições políticas e ideológicas, e que acabaram dando origem à
tradição do “marxismo inglês”: Christopher Hill, Eric Hobsbawm e Edward
Thompson.
[6] GRAMSCI, Antonio. “Crônicas teatrais”. In: Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 191-265
[7] Ib., p. 265.
[8] Ver os artigos de Gramsci: “Democracia operária”;
“Os sindicatos e a ditadura”; “Sindicatos e conselhos”. In: GRAMSCI,
Antonio e BORDIGA, Amadeo. Conselhos de fábrica. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 33-7; 49-56; 100-6.
[9] Ver os artigos de Gramsci: “Sindicatos e
conselhos”; “Sindicalismo e conselhos”; “O conselho de fábrica”. In:
Ib., p. 39-45; 61-6; 91-7.
[10] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Togliatti, Terracini e
C.”. Citada em: DE FELICE, Franco e PARLATO, Valentino. “Introdução”.
In: GRAMSCI, Antonio. A questão meridional. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 40, n. 53.
[11] GRAMSCI, Antonio. “A crise italiana”. In: Ib., p. 105.
[12] GRAMSCI, Antonio. “Alguns temas da questão
meridional”. In: Ib., p. 135-65. Torna-se necessário esclarecer que,
neste texto, Gramsci ainda não usa os termos “intelectual orgânico” e
“intelectual tradicional”, e escreve apenas “bloco” e não “bloco
histórico”.
[13] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schucht” de 20/10/1928. In: Novas cartas de Gramsci. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p. 49-50.
[14] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Carlo Gramsci” de 19/12/1929. In: Cartas do cárcere, p. 142. A expressão utilizada por Gramsci é de autoria do escritor francês Romain Rolland.
[15] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schucht” de
29/5/1933. In: Ib., p. 348. Será justamente nesse período - segundo o
próprio Gramsci, a “fase catastrófica da sua vida”, na qual a única
coisa que restava era resistir - que ele afirmará ter sido condenado por
todos, não apenas pelo Tribunal Especial responsável pelo ato legal da
condenação (“Carta a Tatiana Schucht” de 27/2/1933, p. 335). E, também,
uma das declarações mais deprimentes sobre sua existência na prisão:
“[...] minha vida [...] é vazia, terrível e esqualidamente vazia de
qualquer conteúdo interessante, de qualquer estímulo cerebral ou
satisfação que torne a vida digna de ser vivida. Vivo apenas, e mal, a
existência animal e vegetativa” (“Carta a Giulia Schucht” de 15/8/1932,
p. 302).
[16] Lembremos rapidamente duas passagens do
epistolário gramsciano demonstrativas da sua firmeza de caráter: “Creio
ser simplesmente um homem médio, que tem suas convicções profundas e que
não as troca por nada no mundo” (“Carta a Carlo Gramsci” de 12/9/1927,
p. 81); “[...] eu não tenho vontade nenhuma de me ajoelhar diante de
quem quer que seja nem de mudar minha linha de conduta” (“Carta a Carlo
Gramsci” de 3/12/1928, p. 121).
[17] Sobre a relação entre a vida carcerária de Gramsci
e seus conceitos inovadores, ver: BADALONI, Nicola. “Prefácio”. In:
GRAMSCI, Antonio. Novas cartas do cárcere, p. 13-33.
[18] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Giulia Schuscht” de 9/2/1931; “Carta a Tatiana Schuscht” de 23/2/1931. In: Cartas do cárcere,
p. 187 e 192-3. Não estaria aí, inclusive, a chave para a explicação da
“simpatia” (estranha à maioria dos marxistas) de Gramsci pela
psicanálise? (“Carta a Tatiana Schuscht” de 20/4/1931, p. 200).
[19] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schuscht” de
19/3/1927. In: Ib., p. 50. Os outros três temas são a lingüística
comparada, o teatro de Pirandello e o romance de folhetim.
[20] Ib., p. 51. A expressão alemã significa “para a eternidade”.
[21] GRAMSCI, Antonio. “Carta a Tatiana Schuscht” de 7/9/1931. In: Ib., p. 224.
[22] Nesse sentido, parece-nos que a tese de Norberto
Bobbio (segundo a qual “a sociedade civil, em Gramsci, não pertence ao
momento da estrutura, mas da superestrutura”, “a sociedade civil
compreende, para Gramsci, não mais ‘todo o conjunto das relações
materiais’, mas sim todo o conjunto das relações ideológico-culturais;
não mais ‘todo o conjunto da vida comercial e industrial’, mas todo o
conjunto da vida espiritual e intelectual”) se mantém fiel à
textualidade gramsciana. Ver: O conceito de sociedade civil. Rio de Janeiro, Graal, 1994.
[23] GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989, p. 11-89 e 234-90. Neste
ponto, como em muitos outros, o historicismo de Gramsci é o antípoda do
estruturalismo de Louis Althusser, que pretendia expurgar da “ciência do
marxismo” todo e qualquer elemento ideológico ou humanístico.
[24] GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura, p. 153.
[25] GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional, p. 4.
[26] GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, p. 16.
[27] Ib., p. 21.
[28] GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional, p. 6.
[29] Sobre o conceito de “nacional-popular” e sua ausência na literatura italiana, ver: Ib., p. 61-138.
[30] Ib., p. 107-8. Em vários momentos dos Cadernos do cárcere,
Gramsci faz uma analogia entre Reforma protestante e marxismo, por um
lado, e Renascimento, liberalismo e idealismo, por outro lado. Enquanto
os primeiros realizaram uma reforma intelectual e moral em escala
nacional, os segundos atingiram apenas reduzidos estratos da população.
[31] GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história, p. 138-9.
[32] GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o estado moderno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989, p. 22.
[33] Ib., p. 8-12.
[34] Ib., p. 102.
[35] Ibid., p. 75 e 92
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