Por ANTONIO OZAÍ
DA SILVA Docente na Universidade Estadual de Maringá, doutorando na Universidade de S. Paulo e autor de História das Tendências no Brasil (São Paulo, Proposta Editorial) |
O Marxismo no Brasil:
múltiplas trajetórias, utopias, decepções
e contribuições
História do Marxismo no Brasil (Volume V), organizado por Marcelo
Ridenti e Daniel Aarão Reis Filho, trata dos partidos
e organizações dos anos 1920-1960. Nos seis capítulos
que compõem O livro, aborda-se, de maneira sucinta,
a história das esquerdas marxistas no Brasil:
o Partido Comunista do Brasil (PCB), o trotskismo,
o Partido Socialista Brasileiro (PSB), a Organização
Revolucionária Marxista-Política Operária (ORM-POLOP)
e a Ação Popular (AP).
Inicialmente, Marcos del Roio analisa a atuação dos
comunistas, nas décadas de 1920-1940. Trata-se
dos primeiros passos do Partido Comunista: as
dificuldades objetivas e subjetivas em se firmar
enquanto organização política autônoma dos trabalhadores;
as debilidades teóricas, próprias da nossa exígua
tradição marxista (ao contrário dos congêneres
europeus – onde, em geral, os partidos comunistas
surgiram de cisões da social-democracia –,o comunismo
brasileiro deita raízes no anarquismo, com o partido
se constituindo a partir da conversão de militantes
libertários, influenciados pela Revolução Russa,
ao bolchevismo); a interferência do movimento
comunista internacional, através do Bureau Sul-Americano,
que resultou no afastamento do grupo dirigente
original (Astrogildo Pereira,Octávio Brandão e
Cristiano Cordeiro), abortando os esforços, particularmente
de Octávio Brandão, em formular uma teoria da
revolução brasileira; e, as relações conflituosas
com o positivismo, o liberalismo e o prestismo.
O período analisado pelo autor abrange as origens,
consolidação e o quase aniquilamento do Partido
Comunista, vítima da onda repressiva durante o
Estado Novo getulista.
Segundo a tradição egípcia, existiu uma ave mitológica que
vivia por séculos e, mesmo queimada, ressurgia
das cinzas. Esta ave maravilhosa é conhecida como
Fênix. Seu nome passou a ser usado enquanto sinônimo
de persistência, tenacidade, referência às pessoas
e instituições que sobrevivem às mais duras provas.
Assim foi o Partido Comunista em vários momentos
da sua história. Nos idos dos anos 1940, renascido
das cinzas, tal qual a Fênix, o partido cresce
excepcionalmente, tornando-se um partido de massas,
com considerável influência sobre a política brasileira.
Este período, marcado pelos estertores do regime
varguista, o final da II Guerra Mundial, e a reconquista
da liberdade e da democracia no Brasil, termina
com o golpe militar de 1964. Nesta fase o PCB
conquistou a legalidade, e perdeu-a, cassado no
clima da fria; teve inflexões à esquerda e à direita,
oscilando entre uma política de colaboração e
alianças de classes a uma retórica esquerdista
e revolucionária para, nos anos 50, com a Declaração
de Março, se definir pelo caminho pacífico
da revolução brasileira. Todo este percurso tortuoso
é analisado por Daniel Aarão Reis Filho.
Da aurora de todos os sonhos (a redemocratização do
Brasil a partir de 1945), à longa noite sombria
(iniciada com o despotismo militarista de 1964),
o PCB se bateu entre reforma e revolução. Este
é o mote deste segundo capítulo. É um período
que, guardada as devidas proporções conjunturais
e históricas, nutre semelhanças com o processo
de lutas sociais de finais de anos 70 e inícios
dos anos 1980, com a reconquista das liberdades
democráticas, o crescimento do movimento sindical
e popular e o surgimento de uma organização política
dos trabalhadores, que se afirma como novidade,
mas que também incorpora a herança histórica do
passado pecebista e das esquerdas marxistas.
No terceiro capítulo, Dainis Karepovs e José Castilho
Marques Neto resgatam a trajetória dos trotskistas
brasileiros, das origens aos anos 1966. O trotskismo
se caracterizou por historicamente se restringir
a pequenos agrupamentos sem inserção de massas,
em geral composto por intelectuais e estudantes.
Contudo, o trotskismo também se caracteriza por
sua radicalidade e capacidade de interpretar a
realidade social brasileira. Segundo os autores,
isto permitia aos trotskistas “observar e enunciar
realidades que escapavam a outras organizações
políticas contemporâneas.” O trotskismo contribuiu
ainda para romper com o monolitismo do partido
único, dando um caráter pluralista à historia
do movimento operário e fornecendo chaves teóricas
para a discussão dos impasses e derrotas dos projetos
da esquerda. (pp. 103-04)
As raízes do trotskismo brasileiro estão nas polêmicas e
enfrentamentos no seio do Partido Comunista da
União Soviética e na III Internacional. A derrota
de Leon Trotsky, o profeta assassinado, determinou
a reconfiguração do movimento comunista internacional
com a formação da Oposição Internacional de
Esquerda e, posteriormente, a IV Internacional.
É neste contexto que Mário Pedrosa e outros militantes
assumem a tarefa de construir a alternativa trotskista
no Brasil. Os autores analisam as contribuições
e dificuldades desta primeira geração de trotskistas
e das posteriores: suas formulações teóricas,
a difícil convivência com os comunistas do tronco
pecebista e seus embates internos, influenciados
pela conjuntura nacional e pelas polêmicas no
interior da IV Internacional.
Chegamos ao capítulo 4, escrito por Margarida Luiza de
Matos Vieira. A autora estuda a contribuição
do Partido Socialista Brasileiro, no período 1947-1965.
um primeiro elemento que chama a atenção é que
o PSB não se afirmava como um partido marxista,
embora influenciado pelo pensamento de Karl Marx
e de outros teóricos marxistas. O PCB reconhecia
esta contribuição e se pretendia um espaço aberto
a todos que desejassem lutar por uma sociedade
fundada no socialismo e na liberdade. No PSB,
mescla-se o socialismo democrático, desvinculado
da tradição stalinista, com um socialismo inspirado
no pensamento de Rosa Luxemburgo, e uma concepção
liberal sobre o Estado e a sociedade.
Analisando o programa do PSB, sua prática política e sua
trajetória, a autora conclui que o mesmo se constituiu
num “partido-semente”, agitador de uma nova concepção
política e cultural que deu base a um projeto
de cidadania coletiva que, ao contrário dos projetos
dos liberais orgânicos e mesmos dos comunistas,
combinava as dimensões políticas e sociais da
democracia.” (pp. 181-82)
Também aqui, é possível verificar semelhanças com o Partido
dos Trabalhadores, em especial na fase da sua
formação e nos primeiros anos. Em ambos confluíram
várias vertentes do pensamento social. Também
o PT assumiu-se como alternativa ao marxismo oficial
do PCB e ao trabalhismo e, especialmente a partir
do seu VI Encontro Nacional, no clima da queda
do muro de Berlim, assumiu a democracia como centro
da sua política, propugnando um resgate do socialismo
democrático. Como o PSB do período estudado na
obra, o PT terminou por enfatizar a estratégia
eleitoralista, reservando para o socialismo o
lugar das calendas.
A radicalização do movimento social nos anos 1960 gerou condições
propícias para o surgimento de uma esquerda desvinculada
tanto da tradição stalinista quanto da alternativa
trotskista atuante à época, o Partido Operário
Revolucionário (POR). Nesta conjuntura, acrescenta-se
mais um ingrediente: o crescimento da esquerda
católica, em especial no movimento estudantil.
É neste contexto que surgem as duas organizações
políticas analisadas, respectivamente, por Marcelo
Badaró Mattos e Marcelo Ridenti: a
POLOP e a AP.
Para a formação da POLOP convergiram militantes descontentes
com o reformismo do PCB, setores radicalizados
da Juventude Socialista do PSB (Guanabara), parte
da Juventude Trabalhista (em Minas Gerais) e outros
marxistas independentes. Em sua formação inicial
participaram militantes destacados na política
e na intelectualidade brasileira: Theotônio dos
Santos, Moniz Bandeira, Ruy Mauro Marini, Juarez
Guimarães, Emir e Eder Sader, Michel Lowy e Eric
Sachs, mais conhecido pelo pseudônimo de Ernesto
Martins. A POLOP também é reflexo de uma dissidência
a nível internacional, que se distanciara tanto
do stalinismo quanto do trotskismo. Neste sentido,
seus militantes bebem em fontes luxemburguistas
e no pensamento de autores poucos conhecidos no
Brasil, como Brandler e Talheimer.
O autor do capítulo sobre a POLOP, intitula-o, apropriadamente,
Em busca da revolução socialista: a trajetória
da POLOP (1961-1967). Com efeito, a ORM-POLOP
é a primeira organização marxista, depois dos
trotskistas, que apresenta uma análise da revolução
brasileira contestatória à concepção etapista
hegemonizada pelo stalinismo e propõe um Programa
Socialista para o Brasil. O autor analisa esta
contribuição para o debate no seio das esquerdas,
suas origens, composição, inserção nos movimentos
sociais e faz um breve balanço.
O caso da Ação Popular é singular. Trata-se da síntese construída
nos anos 60 entre o marxismo e o cristianismo.
O estudo das origens da AP, suas propostas e sua
trajetória peculiar nos ajuda a compreender subjetividades,
potencialidades e contradições de projetos societários
construídos historicamente. As relações entre
religião e política, ou mais precisamente, entre
religião e marxismo, permanecem como um mistério
a ser desvendado: até que ponto a política é sacralizada?
Até onde podemos falar em secularização da religião
num sentido político?
O estudo desta experiência nos ajuda a entender esta difícil
relação que, diga-se de passagem, não se restringe
ao Brasil: esquerda católica e marxismo se mesclam
em toda a América Latina. Retornando com força
com força nos anos 1980, a partir da atuação das
pastorais e Comunidades Eclesiais de Base fundadas
na teologia da libertação, e também devido à experiência
da revolução nicaragüense, é um fenômeno
que mantém atualidade.
Neste capítulo, o autor também analisa as influências das
revoluções cubana e chinesa e a tensão vivenciada
pelos militantes da AP entre um humanismo cristão
em vestes marxistas e a plena adesão ao ideário
marxista, cujo significado pode ser medido por
quem experimentou crises religiosa, pois, em última
instância, trata-se da negação, não apenas da
religião, mas da própria idéia de Deus. Crise
semelhante vivenciaram os comunistas quando na
década de 1950, tiverem que romper com o mito
de Stalin, a partir das denúncias dos seus crimes.
A questão é emblemática: nestes casos pode-se
falar em superação plena da religião ou seria
o caso de pensarmos num sacerdócio racionalista
e secular, fundado em símbolos e na militância
marxista. Com isto, sugerimos temas indicados
pela leitura; o objetivo do autor, é claro, é
analisar a experiência política da AP, das suas
origens à sua completa dissolução
nos anos 1980.
Sabemos que boa parte dos militantes da AP terminaram por
abraçar a idéia de que o partido do proletariado
é único e, nos debates do período, pareceu-lhes
que este partido era o Partido Comunista do Brasil
(observemos que vários dirigentes deste partido
são originários da AP). Os organizadores da História
do Marxismo anunciam que o próximo volume da História
do Marxismo tratará, entre outros temas, do Partido
Comunista do Brasil. Está ótimo! Porem, em nossa
singela opinião, o presente volume, pelo período
abordado, seria o espaço mais apropriado, pois,
forneceria um quadro mais abrangente das esquerdas
até os anos 1960.
Sabemos que a História do Marxismo é uma longa história.
Quando, nos anos 1980, o prestigiado historiador
Eric J. HOBSBAWM organizou a História do Marxismo,
em âmbito internacional, abriu-se a possibilidade
de compreensão desta história sem os maniqueísmos,
sectarismo e dogmatismos presentes na trajetória
dos marxistas. Como escreveu HOBSBAWM, prefaciando
o primeiro volume da série:
“Comecemos
pelo pressuposto evidente de que a História do
Marxismo não pode ser considerada como algo acabado,
já que o marxismo é uma estrutura de pensamento
ainda vital e sua continuidade foi substancialmente
ininterrupta desde o tempo de Marx e Engels”.
(1983: 13)
Um projeto com esta amplitude só teria sucesso se partisse
do princípio de que o marxismo deve ser tratado
no plural, como também os temas e os autores devem
respeitar este pluralismo. Neste sentido, o correto
é mais correto nos referirmos aos marxismos
e não propriamente ao marxismo, no singular. Como
bem salientou Carlos Nelson Coutinho:
“Ao
admitir o fato real do pluralismo nas investigações
marxistas, não se está admitindo um relativismo
vulgar ou um ecletismo anticientífico. O que está
é se constatando outro fato real: que também
no interior do marxismo, a busca da verdade não
pode fugir à explicitação ampla e democrática
de um debate aberto, de um livre confronto de
idéias.” (Id., da apresentação)
Tudo isto parece óbvio, não fosse a tradição sectária, dogmática
e autoritária presente no movimento comunista.
Não por acaso, o próprio Marx recusou a alcunha
de marxista.
[1]
Não esqueçamos que nos tempos
sombrios as divergências eram superadas de uma
forma abominável: pelo aniquilamento físico (Trotsky
e os militantes dos POUM, durante a guerra civil
espanhola, são exemplos clássicos desta triste
memória histórica). Tempos em que se proibia a
amizade, namoro ou qualquer tipo de aproximação
com os inimigos da classe operária, ou
seja, os trotskistas. Prevalecia a lógica da política
amigo-inimigo.
Portanto, um dos aspectos mais relevantes desta História
do Marxismo no Brasil, desde o seu primeiro
volume, é o tratamento pluralista dos temas, seguindo
a trilha aberta pela obra organizada por Hobsbawm.
[2]
O leitor mais jovem ou menos
afeito à política marxista, no passado e no presente,
pode até mesmo considerar natural tamanho pluralismo.
Mero engano! Em outros tempos não muito longínquos,
uma obra com estas características seria impensável
e impraticável. Recordo-me por exemplo, das dificuldades
que tive quando, nos anos 1980, encetei a saborosa
aventura de escrever a História das Tendências
no Brasil. À época, ainda sob o rescaldo da
ditadura militar, este era um tema tabu: muitos
se recusaram a falar sobre ele; outros nutriam
uma desconfiança política-ideológica (afinal,
era um jovem sem militância nas organizações tradicionalmente
vinculadas ao marxismo); desconfiança no tocante
à segurança (ainda se tentava superar os insuperáveis
sofrimentos da ação repressiva e da clandestinidade).
A todas estas dificuldades, perfeitamente compreensíveis,
juntava-se a exígua disponibilidade de fontes
bibliográficas.
Em compensação, o raiar da liberdade aguçou o espírito da
nova geração sedenta de saber
[3]
; uma geração sem militância
nas organizações tradicionalmente vinculadas ao
marxismo e que estavam sujeitas a um anticomunismo
velado ou explícito, seja no interior de organizações
como o PT, em movimentos pastorais ligados à Teologia
da Libertação, no movimento sindical e social
em geral. Nunca esqueço os conselhos para
que me afastasse de determinado indivíduo, porque
este cometia o grave pecado de ser comunista.
Minha geração, em sua maioria, desconhecia a História do
Marxismo. E os marxistas não contribuíam muito
para se fazerem conhecer. Reduzidos às organizações
sobreviventes do ciclo ditatorial apegavam-se
em demasia a uma retórica que dificultava a aproximação
dos que ainda não haviam se iniciado nos mistérios
da militância em tendências. Tratava-se de marcar
posição, ocupar as trincheiras e fazer valer suas
verdades. Este clima favorecia o sectarismo, mas
não anulava os movimentos de tentativa de converter
as consciências e conquistar novos quadros. Eram
verdadeiros assédios às consciências em formação.
Converter-se
pressupunha conhecer – sob o risco de se tornar
um papagaio, repetidor de fórmulas e discursos
políticos memorizados pelas leituras fáceis e
a doutrinação dos líderes. E mesmo os não convertidos,
pouco a pouco, se deram conta de que era preciso
conhecer os marxistas, ainda que com o objetivo
de melhor combatê-los. Num e noutro caso,
o ato de conhecer estava vinculado ao agir, à
militância.
Embora a época atual testemunhe, para muitos, a crise das
utopias e o interesse acadêmico prevaleça sobre
a curiosidade militante, pensamento que se faz
ação, a obra História do Marxismo no Brasil
é uma contribuição fundamental a quem deseje conhecer
a trajetória dos partidos e organizações de inspiração
marxista. Hoje, quando o Partido dos Trabalhadores
governa cidades e Estados e se credencia para
dirigir o país, torna-se fundamental retomar e
aprender com a história. A História do Marxismo
também cumpre este papel. Seja por
objetivos acadêmicos, seja por desígnios militantes,
é essencial conhecermos o nosso passado histórico.
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