quarta-feira, 28 de março de 2012

SOBRE BUDISSMO EM ROO-MT

Boa tarde 28 de março!







Entrada

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Marcos Kouiti Sakamoto Kikuta kouitikikuta@yahoo.com.br

16:37 (1 hora atrás)







para Claudionor, Eduardo, Janailson, Antonio, douglas_roo7, Luciene, Claudio, Golberi, Sandro, Anderson, George, agnaldolima82, arildo, Pedro, cidaribeirobsgi, Katia, Fabio, Luciano, Yuly, milena_mini, Aline, Maria, Valdeci, Thatyana, Irene






Boa tarde à todos!!! Como vão??


Hoje vou mandar aos senhores um texto do BS. Espero que seja de grande proveito.


Melos, um jovem camponês, venceu as mais duras provas, inclusive a morte. Quando foi preso injustamente, ele pediu ao rei tirano que o deixasse ir ao casamento de sua irmã mais nova. Melos garantiu ao rei que retornaria à prisão após o casamento.
O rei não acreditando que o trato fosse cumprido, dispôs-se a fazê-lo mediante maldosa proposta. Ele lhe concederia o pedido, se houvesse alguém disposto a ser executado em seu lugar. Caso não retornasse dentro de três dias, antes de o Sol se pôr, essa pessoa seria executada. Seu fiel amigo, Serinuntius, voluntariou-se.
O rei, descrente, sugeriu a Melos que não voltasse, deixando que o amigo fosse morto, pois assim obteria sua liberdade.
Após assistir ao casamento de sua irmã, ele iniciou seu retorno. Venceu vários obstáculos impossíveis, para corresponder a um honrado amigo. A caminhada era demasiadamente penosa e, na metade da jornada, suas forças já haviam se esgotado. Não conseguindo dar um passo sequer, caiu ao chão, chorando. Em sua mente, surgia o pensamento:
Oh! Você chegou até aqui, venceu as correntezas e os bandidos terríveis que queriam lhe derrotar a todo o custo. Como pode ser tão covarde? Seu estimado amigo morrerá por ter confiado em você. Você será o homem mais mesquinho e covarde deste mundo. Será tal qual o rei desejou.
Melos repreendia a si mesmo. Seu corpo, exausto, não obedecia. Não conseguia nem mesmo se mover. E continuou refletindo:
Quando o cansaço é muito grande, atinge até a consciência. Os maus pensamentos, impróprios a um herói, tomam conta da pessoa. Eu me esforcei tanto! Jamais pensei em não cumprir minha promessa. Corri até não poder mais. Não sou covarde. Oh! Se pudesse, abriria meu peito e mostraria meu coração. Este coração que pulsa com o sangue do amor e da sinceridade. Porém, sou um homem infeliz.
Todos rirão de mim. Minha família também será desprezada. Eu traí a confiança de um amigo. Fraquejar no meio do caminho é o mesmo que ser derrotado desde o começo. Oh! Não há remédio. Talvez seja o meu destino. Serinuntius, perdoe-me. Você sempre confiou em mim. Eu também nunca o traí. Sempre fomos amigos. Nunca fomos atacados pela desconfiança, nem mesmo por um instante. Mesmo agora, creio que esteja me esperando. Obrigado, Serinuntius. Muito obrigado por ter tanta confiança em mim! Quando penso nisso, fico desesperado. Serinuntius, corri, jamais pensei em traí-lo. Creia-me, corri como um louco. Outra pessoa não conseguiria chegar aonde cheguei... Agora, nada mais me importa. Deixe-me. Fui derrotado. Sou mesmo fraco. Ria-se. O rei disse-me para que chegasse atrasado, pois assim mataria o refém e salvaria minha vida. Odiei a atitude sórdida do rei. Porém, agora estou agindo como ele queria. Cheguei tarde. O rei rirá satisfeito e me soltará sem implicar. Quando isto acontecer, sofrerei muito mais do que se morresse.
Serinuntius, morrerei também. Deixe-me morrer junto com você. Sei que acredita em mim, apesar de tudo, não é?
Ou será que isso é apenas otimismo da minha parte? Oh! Não! Talvez eu viva como um traidor. Tenho uma casa na aldeia. Quem sabe minha irmã não me expulse de lá.
Justiça, sinceridade, amor. Pensando bem, tudo isto é bobagem. Mate outra pessoa para viver. Não seria esta a lei deste mundo dos homens?
Tudo é bobagem. Sou um traidor desprezível. Faça como quiserem.
Desfalece, enfim, chorando, estendido ao chão. De repente, ouviu o barulho de uma correnteza ali perto. Levantou-se cambaleando e viu a água que surgia de uma rocha. Curvou-se um pouco como que absorvido pela mina. Tomou um gole. Deu um longo suspiro, parecia acordar de um sonho ruim. Conseguiu andar. Recobrando a energia, viu renovar a esperança, embora mínima. A esperança de cumprir o dever, de dar a vida pela honra.
Alguém me aguarda, confiante, sem duvidar um pouco sequer. Não me pertenço. Minha vida nada vale. Não posso pensar em ser perdoado se morrer aqui. Devo recompensar a confiança em mim depositada. No momento, isso é o mais importante. Corra, Melos! Alguém confia em você! Aquele pensamento que me ocorreu há pouco foi o sussurro de um demônio, um pesadelo que eu tive. Devo esquecer. Agora sim, poderei morrer como um herói. Oh! O Sol já vai desaparecer. Espere-me! Oh! Desde que eu nasci, fui um homem honesto. Quero morrer como tal.
Empurrando as pessoas, Melos corria desesperadamente.
— Guarda, sou eu! Sou eu quem deve morrer. Sou Melos, quem fez deste homem um refém. Estou aqui.
Gritando, ele subiu no cadafalso e agarrou-se aos pés de seu amigo.
— Serinuntius!, disse com os olhos marejados. Bata-me com força. No meio do caminho, tive um mal pensamento. Se não me bater, não terei o direito de abraçá-lo. Bata!
Serinuntius assentiu com a cabeça e o esbofeteou fortemente. Depois, sorrindo disse:
— Melos, bata-me também com o mesmo ardor que lhe bati. Nestes longos dias de espera, por um instante, duvidei de você. Se você não me bater, não poderei abraça-lo.
Melos esbofeteou-o com toda a força. Os dois amigos abraçaram-se chorando e falando ao mesmo tempo:
— Obrigado, amigo.
Depois, choraram de alegria. O povo chorava também. O rei Dionísio, o tirano, que assistia à cena do meio da multidão, aproximou-se e disse:
— Vocês venceram. Venceram meu coração incrédulo. Agora sei que a sinceridade não é mera ilusão sem fundamento. Por favor, façam de mim um companheiro de vocês. Peço-lhes de coração, permitam-me ser seu amigo.
O povo bradou, extasiado de alegria.


Fonte: BS, edição no 1.059, 18 de novembro de 1989, p. 5.
Abração à todos!
Câmbio Desligo!

Kouiti Kikuta

François Dosse

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Entrevista com François Dosse

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Escrito por História Agora Seg, 19 de Março de 2007 17:27

Entrevista[1] com François Dosse - pesquisador do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP) e professor do IUFM de Créteil (Paris XII)
Apresentamos a nossos leitores uma exclusiva e inédita entrevista concedida pelo historiador francês François Dosse, pesquisador do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP, Paris) e professor do IUFM de Créteil (Université Paris XII). O historiador, com inúmeros trabalhos publicados no Brasil[2], aborda diversos temas e problematiza questões de ordem teórico-metodológico, caros ao historiador do tempo presente.
Trata-se de um dialogo instigante, em longa conversa na cidade parisiense, que temos o prazer de compartilhá-la com os nossos leitores. Boa Leitura!
Revista História Agora - Acreditamos que a Historia do Tempo Presente ou Próxima e Imediata, é, antes de tudo, história. Infelizmente ainda hoje essa afirmação precisa ser reiterada na maioria dos trabalhos que versam sobre este assunto.
História Imediata e História do Tempo Presente são sinônimos? Como o professor define os dois casos? E Como desenvolver uma narrativa histórica sobre os acontecimentos do presente diante da profusão de informações e do imediatismo dos meios de comunicação atuais?
François Dosse - Antes de falarmos sobre a História do Tempo Presente, vamos falar sobre a História Imediata. Estou me referindo efetivamente à contribuição de Jean Lacouture, na Nova Enciclopédia da História de 1978. Ele escreve um longo texto sobre a pertinência da História Imediata, que efetivamente é o ponto de união do jornalismo e da história.
Lacouture, ele mesmo sendo um jornalista que se tornou historiador e biógrafo ao mesmo tempo, é a interseção dos dois casos. E, em 1978, isso se justificava ainda mais pelo fato dos historiadores, nessa época na França, terem tendência a privilegiar de maneira exclusiva o período medieval e moderno, e de se desinteressar, de se desviar, do tempo presente.
Realmente não existia interesse. Era muito pouco o que havia de história sobre o momento, a história imediata. Dito isto, pode-se dizer também que a história imediata não é muito aberta, uma vez que a nossa sociedade já definia a história como qualquer coisa que não fosse imediata, já que o historiador, por definição, é alguém que vê as coisas, escolhe os testemunhos, das pessoas que viram.
Por isso, a partir daí, não poderia haver História Imediata e História do Tempo Presente. Aliás, foi assim que Heródoto deixou de ser visto como um mitólogo, um geógrafo. Na medida em que ele utilizava as lendas, desacreditava também os grandes impérios, como o império egípcio. Império este, fundado sobre o escriba, mas que para Heródoto não era história, era exclusivamente a instrumentalização política.
Podemos enumerar também uma série de diferenças – a História Imediata sendo simples, temente, fechada numa imediatez, enquanto a História do Tempo Presente, sendo já, por definição, estendida a um período maior.
Então trata-se de saber qual é esta extensão, e é aí que estão as discussões sobre como o Tempo Presente aparece. Alguns dizem que a História do Tempo Presente se dá a partir da última catástrofe datada. Esta é uma maneira de definir o Tempo Presente.
Outros dizem que a História do Tempo Presente é entendida enquanto ainda existam pessoas vivas para transmitir sua experiência. Isso porque a História do Tempo Presente seria escala de uma vida biológica, e com a expectativa de vida que aumenta, é uma temporalidade um tanto maior que a História Imediata.
E depois, há ainda uma maneira de definir a História do Tempo Presente que se desenvolveu na França, notadamente com o primeiro IHTP, que foi constituído por François Bédarida, depois por Robert Frank, em seguida por Henry Rousso, que é uma maneira de pensar a história a partir das interpelações do presente. E aí se falaria de uma história que não seria somente contemporânea, mas que interrogaria aquilo que em nosso espaço de experiência, para retomar um conceito de Koselleck, trabalha o presente.
então, teríamos uma coisa que poderia ser justamente tudo, salvo o presente. Porque se pode notar que, na conjuntura atual, há uma crise de horizonte - de espera - e do futuro, que foi conceitualizada pelos trabalhos de François Hartog, principalmente, autor da noção de “regimes de historicidade” (régimes d’historicité), no qual ele atribui ao presente um valor como todo historiador de hoje.
Sabemos muito bem que a história é um momento, de um lugar, e, de um presente. De um presente, de um historiador e da historiografia. Mas, ao mesmo tempo, estaríamos em um novo “regime de historicidade”, que seria caracterizado pela retomada do presente. Um presente estático, cortado de um futuro que não existe mais. Extrato de um passado, mas que seria “presentificado” de uma maneira totalmente anacrônica. E aí, há efetivamente um obstáculo, um perigo, ao qual François Hartog se refere, que é o perigo do presentismo.
Mas o que eu diria é que o presentismo é efetivamente um impasse, mas ao mesmo tempo é uma “sorte” extraordinária da História do Tempo Presente. Quer dizer, fazer da própria experiência, daquilo que é justamente o ato mesmo de escrever a história, em seu caráter indefinido, não determinado, com suas possíveis diferenças, etc. E eu digo que, por isso, a história do Tempo Presente esguichou sobre as hipóteses de uma outra maneira de escrever a história, uma outra problemática histórica, justamente graças às aquisições desta indeterminação que vivemos no presente, que desfocaliza o olhar que temos sobre o passado.
RHA - Qual seria então o marco do Tempo Presente, é possível fazer essa delimitação ou recorte cronológico? Essa certamente é uma questão complicada, alguns historiadores acreditam que o marco estaria em objetos que ainda estão em aberto, indefinidos, o que nos remete a uma longuíssima duração. O próprio IHTP de início marcava o fim da Segunda Guerra como início para os estudos em HTP, como o professor vê essa questão?
F.D. - Sim, para mim é isto, quer dizer, é difícil colocar os limites cronológicos sobre a história do Tempo Presente. Porque se eu digo que a Guerra da Argélia já é um fenômeno bastante antigo, ainda assim ela faz parte da História do Tempo Presente, evidentemente. Ainda nesse sentido, ao mesmo tempo eu falo de maio de 1968 e do 40º aniversário de maio de 1968, que também fazem parte da História do Tempo Presente, evidentemente.
Mas podemos ainda falar de Joana d’Arc, na medida em que ela é, ainda hoje, em certas correntes, não as mesmas do começo do século XX, ou do final do XIX, tomada como figura, com todos os traços principais, temáticos, de um certo número de valores, etc. Então, ela é primeiro operacionalizada pelo presente, bem diferente de como ela era. Por isso os limites cronológicos são impossíveis.
O que justamente permite esta abertura da História do Tempo Presente é hoje, do meu ponto de vista, a relação entre a história e a memória. Quer dizer que, efetivamente, há uma interrogação cada vez maior dos historiadores sobre sua evolução, sobre seus fenômenos que não são lineares, que são os fenômenos de todas as partes etc. E todos esses elementos são para serem levados em conta pelo historiador. Por isso, essa relação história-memória funda um curva, que hoje se diz que é uma curva historiográfica, e funda também a riqueza desta noção de Tempo Presente.
RHA - Serge Bernstein e Pierre Milza escreveram que, em termos de metodologia, a História do Presente ainda estava em construção. E que, de certa maneira, se trataria de situar um fenômeno de longa duração no seio do presente. Essa metodologia ainda está efetivamente em construção?
F.D. - Sim, enfim, eu penso que é sempre uma noção de obra pois, efetivamente não, existe ainda um consenso sobre a noção entre os historiadores. Como eu digo toda hora: última catástrofe datada, gerações, ou, ao contrário, tudo o que aflora no presente e no passado. Existem definições daquilo que poderia ser a História do Tempo Presente que não são as mesmas, pois existe ainda ambivalência, a incerteza sobre este objeto justamente do presente. Não existe a incerteza sobre a história imediata, mas exista a incerteza sobre o objeto.
Situar um fenômeno de longa duração no seio do Tempo Presente é, para mim, uma evidência. Isto é, a História do Tempo Presente, de todo modo, carrega os fenômenos de curta e de longa duração. E sobre a relação justamente entre acontecimento/memória do acontecimento/figura, biografa traços na memória coletiva, representações hoje desse passado.
De todo jeito, ela implica também, e este é um ponto importante, uma postura de domínio por parte do historiador. Isto quer dizer que o historiador não está mais numa posição divina, onde ele seria o mesmo que a expressão de uma verdade, daquele que é o suposto conhecedor da realidade, do saber. O historiador deve dizer que, a partir de seu “savoir-faire”, a partir de suas competências, a partir de seus arquivos, vai dar um ponto de vista, sem cair em um relativismo radical.
Questões, dúvidas, problemáticas, ou impasses que ele traduz para o seu presente, justamente de seu lugar de enunciação. E então há efetivamente uma postura que foi por muito tempo a do juiz da história, do historiador que julga, que dá, à maneira do juiz, um veredicto sobre o que se passou. O que é totalmente obsoleto, completamente ridículo, hoje temos muito mais modéstia na postura dos historiadores.
RHA - O estudo do presente teve sua cristalização, na França do final da década de 70, com a criação do IHTP, Instituto do qual o senhor inclusive faz parte. Entretanto, alguns historiadores bem antes da década de 70 já se arriscavam nesse movimento.
O historiador René Rémond, em um de seus trabalhos sobre o tema, alertava para a o risco da confusão entre o estudo do político com o estudo do imediato. Sobretudo pelo fato da criação do Instituto ter se dado em um momento de revalorização da (nova) História Política e que, muitas vezes, os professores que trabalhavam essas abordagens eram os mesmos, como o próprio Remond. Conte um pouco como se deu a criação do IHTP, quais eram as principais pesquisas, e comente esse alerta do professor Remond.
F.D. - É uma tensão absolutamente importante. Há uma figura que é muito emblemática desta tensão, do que é ao mesmo tempo engajamento histórico de um lado e, de outra parte, do engajamento como cidadão e como inquiridor da vontade, colando a serviço da sociedade sua competência de historiador.
É a figura de Pierre Vidal Naquet, que morreu há pouco tempo, que é para o tempo presente, uma figura exemplar. Ele era um historiador que renovou bastante o estudo da Grécia Clássica. Era um especialista em Atenas de um período extremamente recuado e, ao mesmo tempo, como cidadão, se opôs à Guerra da Argélia e ao uso da tortura.
A partir daí, ele se engajou fortemente, não somente escrevendo artigos contra o emprego da tortura, mas concretamente no Comitê Odin, que ele fundou. Foi militante na Argélia comunista, lutou pela independência do país com os argelinos e foi torturado até a morte.
Ele criou o Comitê fazendo valer sua acepção, sua função de historiador, com a pesquisa da verdade histórica, trazendo de volta a investigação e reconstituindo um inquérito. E podemos citar outros exemplos.
Eu penso também, evidentemente, naquele que fundou a Escola dos Annales, que é Marc Bloch. Ele se tornou uma grande figura tutelar justamente porque morreu como mártir. Morreu resistindo, torturado pela Gestapo na primavera de 1944.
Então, ele se engajou efetivamente, a partir de 1943, na resistência. Teve que pagar com a sua vida. Diz-se também que houve durante longo tempo na França uma desconfiança em relação à política e à instrumentalização política do saber nas ciências humanas.
E eu penso, entre outros, no pós 1ª Guerra Mundial e nos Annales. No começo, há um pouco essa tendência a colocar lado a lado a política e o engajamento político. Ao mesmo tempo em que eles eram engajados no processo de modernização da sociedade, eles eram levados a colocar suas contribuições à utilização de empresas, escritórios de trabalho internacional, instituições.
Quando se tratava de engajamentos políticos, eles se mantinham à parte pois, como dizia Lucien febvre, “uma história que serve é uma historia serva” (Une histoire qui sert est une histoire serve).
Visto que, de 1870 a 1914, a história estava terrivelmente instrumentalizada na França para reconquistar a Alsácia-Lorena, para a revanche contra os alemães, no momento seguinte, os historiadores ficaram verdadeiramente mobilizados, pode-se dizer, para fazer valer as teses francesas de 14 a 18, sob o plano histórico e sob o plano do conhecimento geográfico.
Depois, houve uma idéia de uma cidade sóbria, a parte da política, a parte do Estado, da política fora do Estado. E então Vidal Naquet exumou finalmente um modelo do qual ele reclamava, o modelo “dreyfusard explicitamente, do intelectual engajado, para a verdade, para a justiça, contra a razão do Estado, contra as injustiças etc.
Penso sobretudo na luta contra os “negacionistas” por exemplo, pois a necessidade do historiador de se engajar para fazer valer o saber, lá, por exemplo, da constatação, existiu. Os historiadores, em relação aos que negam, são forçadamente engajados para fazer valer seus saberes acerca desta questão. Os historiadores, agora, estão se engajando cada vez mais, em relação às leis memoriais, em relação a uma política de estado em matéria de memória, em matéria de dever de memória etc. Eles são, aliás, cada vez mais solicitados nos tribunais para dar seus testemunhos etc. Existe aí uma interrogação sobre até onde eles podem ir, o que eles podem dizer, sobre a esfera pública.
Em relação à genealogia do IHTP, é bastante simples. De fato, no início se tratava do Comitê de História da 2ª Guerra Mundial. Então, o trabalho do Comitê foi recuperar os arquivos, os documentos, os testemunhos, para fazer a história do que se passou entre 1940 e 1945. Então, ao mesmo tempo, a resistência, a colaboração, Vichy, a França livre, a França do interior e do exterior, etc.
Tudo isso foi feito e, então, é o Comitê de História da 2ª Guerra Mundial, criado no momento imediato do pós-guerra, que se transformou, em 1978, no IHTP. Em muitos países europeus, houve este gênero de instituição, com mais acesso à história contemporânea, que se estendia da 2ª Guerra até o fim dos anos 70, onde houve outros acontecimentos como 1968, o fim das figuras coloniais, etc. A configuração não era mais aquela do imediato pós-guerra.
Mas é certo que esta genealogia histórica pesou sobre a identidade do IHTP. Os trabalhos, eu diria, pesam ainda sobre os objetos privilegiados do IHTP. Porque não é por acaso, aliás, que durante muito tempo seu diretor tenha sido Henry Rousso, um especialista de Vichy. Ele é uma ótima tradução do que, fundamentalmente, o IHTP trouxe como consequência nessa filiação.
Filiação com os deslocamentos, já que Rousso fez a história de Vichy, fez a história da representação de Vichy, fez a história da representação depois de Vichy. Então, é bem sintomática a valorização deste objeto. Posteriormente, é mais ou menos isto que foi desenvolvido, por uma série de trabalhos do IHTP, como a Guerra.
E hoje, existem várias pesquisas que estão se desenvolvendo no IHTP, mas o que domina, ainda assim, são as questões de violência e de guerra, o que não é surpreendente. Não é somente o acesso à 2ª Guerra Mundial, evidentemente, é uma interrogação sobre a guerra em si, da violência em si na guerra. Isso pode ser sobre 14-18, pode ser sobre os conflitos mais recentes, mas a guerra e a violência são os elementos privilegiados na pesquisa do IHTP.
Tenho impressão que esta História do Tempo Presente é muito ligada aos deveres de memória e aos traumas da sociedade. Sim, é isso. Efetivamente, o lado traumático, o lado de curador, aquele que cura, do historiador. É verdade que se pode ver assim, quer dizer, podemos ver efetivamente o trabalho do historiador como alguém que acalma, de uma certa maneira, os sofrimentos e os traumas do passado, por um trabalho sobre a narrativa, sobre o relato. E como consegue efetivamente colocar em palavras, colocar em relatos, qualquer coisa que é da ordem de um traumatismo extremamente importante.
Eu creio que uma das funções dos historiadores é fazer ressurgir para apaziguar. Isso reúne, efetivamente, toda a temática do trabalho de luto de Freud. Trata-se de integrá-lo, de ultrapassá-lo, para se abrir o novo possível, neste trabalho de luto que não tem nada nem de mórbido, nem de complacente, etc. E que reúne também a função que Michel de Certeau designou à história, quer dizer essa reação aos mortos, a construção de um túmulo para os mortos.
Ele usou esta metáfora, o túmulo sendo uma espécie de figura, um tipo particular de criatividade, é também uma caixa para a morte. E o historiador é um pouco como um coveiro que ajuda a enterrar os mortos. E, de uma certa maneira, não no sentido mórbido, mas sim pra designar aos mortos um lugar, para que a morte não persiga os vivos, não seja hipotecada por traumas do passado.
Eu, ao contrário de Michelet, durante toda vida de historiador, acreditava num diálogo com esses mortos do passado. A história é um conhecimento que é mediado. Existem mediações que fazem com que historiador não esteja numa relação direta com o passado, com os mortos de seu passado. Ele está sempre com seus arquivos, seus documentos, que são os mediadores que permitem reconstituir aquilo que ele não conhecerá jamais, que ele nunca terá um contato direto.
RHA - No Brasil, diferentemente da França, os historiadores e cientistas sociais se encontram longe da vida pública do país. Há um grande descolamento entre academia e sociedade. O professor Ciro Flamarion, da UFF, cunhou a expressão Historiador Avestruz, aquele que enterra a cabeça no chão e prefere não ver o mundo a sua volta, se recusa a falar sobre outra coisa que não seu micro objeto de estudo e não parece preocupado com as questões públicas.
Em seu livro História em Migalhas o senhor retoma a importância de se discutir o papel do historiador como Intelectual público.
Comente um pouco essa relação entre Intelectual Público e História do Tempo Presente. Quais seriam, portanto, os limites da análise histórica para que o historiador não vire uma espécie de "historiador taumaturgo", segundo os termos de Henry Rousso, capaz de curar crises de identidade ou de legitimidade, individuais, sociais ou nacionais?
F.D. - Eu acredito que eles devem efetivamente responder a uma demanda social, pois é necessário esclarecer as coisas. E eu mesmo, aliás, fui solicitado, no fim do mês, para ser ouvido na Assembléia Nacional. Então, efetivamente, os historiadores são cada vez mais e mais solicitados, demanda-se suas opiniões.
Frente a esta comissão, passaram, por exemplo, Pierre Nora, Marc Ferro, etc. Eu creio que, a partir deste momento, as questões memoriais e históricas, as representações das consciências coletivas que tocam nas questões de identidade nacional, tornaram-se centrais para o plano judiciário.
Os historiadores são cada vez mais solicitados. Eles devem intervir com precaução, tentando se desprender dos filões das noções que utiliza, e, assim, através seus conhecimentos específicos, esclarecer os que decidem, pois não são eles os políticos. Mas, sabendo que a história não pertence aos historiadores, pois, em última instância, a história pertence aos cidadãos e à sociedade. Portanto, eles possuem uma certa “competência limitada” para dizer uma série de coisas ao mesmo tempo, preservando a autonomia de suas pesquisas. Isto quer dizer que suas pesquisas podem estar efetivamente em conexão com as demandas, com as necessidades daqui e de acolá, mas eles devem evidentemente preservar sua plena liberdade.
É, neste sentido, por exemplo, que eu, ou Nora, ou as pessoas de “liberdade para a história”, somos contra as leis memoriais, porque isto é algo que bloqueia, que fecha. A história, por definição, é aberta para as novas questões, para as coisas novas, para as novas configurações.
Então, é preciso dizer que existe efetivamente um trabalho de memória, mas que a idéia do dever de memória, de lhe dar uma forma jurídica, é extremamente perigosa. Isso porque, em última instancia, há a liberdade do historiador, liberdade esta que é também uma liberdade limitada, pois a história pertence a seus atores e não às pessoas diplomadas em história.
RHA - Com qual pesquisa o professor está trabalhando atualmente?
F.D. - No Instituto, realizei com meus amigos Christian Lacroix e Patrick Garcia, já há alguns anos, um seminário sobre as figuras de epistemologia histórica. Interrogamos as noções e figuras importantes, que marcaram. Por exemplo, o trabalho que fizemos sobre Michel de Certeau, foi produzido pelo nosso seminário no IHTP. Também tenho um outro trabalho pessoal onde a biografia intelectual de Michel de Certeau apareceu.
Da mesma forma, consagramos um ano de seminário após a morte de Paul Ricoeur sobre “Ricouer e as ciências humanas”, que se tornou um livro co-dirigido por Christian Lacroix, Patrick Garcia e eu. Isso se liga à pergunta que você colocou sobre o Tempo Presente. Fazemos vir especialistas de outros períodos, os da Antiguidade, os Modernistas, os de agora... Assim, colocamos em confronto a história do Tempo Presente em relação aos outros períodos, justamente para ver se existe uma especificidade da História do Tempo Presente em relação ao historiador medieval, da antiguidade, etc. Será que o presente de sua época coloca mais problemas que o presente dos historiadores da contemporaneidade, hoje?
Meu trabalho pessoal, é sempre no plano das interrogações epistemológicas. Estou nesse momento preparando um livro sobre o acontecimento, sobre a própria noção de acontecimento.
Estamos preparando um dicionário, Christian Lacroix, Patrick Garcia e eu, sobre as noções historiográficas e as controvérsias historiográficas, que aparecerá no início do próximo ano. E depois, temos também uma outra produção que estamos preparando sobre estes seminários.
Vamos publicar também em 2009 um livro que vai se chamar “Historicidades”, com textos inéditos de Ricoeur e de Kosselleck, mas que reserva também uma interrogação pluridisciplinar, com intervenções extremamente interessantes de psicanalistas, antropólogos, sociólogos, sobre a noção de historicidade em suas disciplinas. Ao mesmo tempo, evidentemente, que na disciplina histórica.
RHA - Qual a memória que está virando história nesses 40 anos dos eventos de maio de 68, celebrados com entusiasmo pelos mais variados atores da sociedade francesa, ano passado?
F.D. - O que nos mostra o 40º aniversário de Maio de 68 é que nos lembramos dele de maneira efusiva. Isto quer dizer que não há uma memória de 68, existem memórias 68. E o que é interessante de ver e, aliás, eu me remeto especificamente no pensamento anti-68, é que existem as genealogias de um pensamento que é o oposto.
Retomando Michel de Certeau, pode-se dizer que “um acontecimento é aquilo que ele se torna”. Então, não podemos afirmar, contrariamente ao que se diz bastante neste 40º aniversário, que passamos da memória à historia. Hoje, 40 anos depois, vemos trabalhos de historiadores que se desenvolvem, não apenas trabalhos memoriáveis, mas há um trabalho sobre arquivo bem mais crítico.
Mas, eu não faço este corte entre um momento memorial e um histórico, no qual o objeto passaria à história de acordo com a distância temporal do acontecimento. Eu diria que a história de hoje só pode ser pensada no momento historiográfico de onde se fala. É preciso fazer uma articulação entre a história e a memória, pois não existe história sem memória.
Então, todos os trabalhos sobre 68 são trabalhos de memória individual, que falam das relações com o país. Todos esses trabalhos participam da construção do sentido do acontecimento, os prós e os contras. Esse sentido é ambivalente, ele não cessa de mudar, ele se transforma.
Mas, o que demonstram todos esses trabalhos é que este é um acontecimento rico, uma mina de sentido particularmente fecundo. Do contrário, não se falaria tanto e não haveria tantos escritos sobre este período.
Portanto, o trabalho de memória participa deste trabalho de história. Há, então, várias histórias possíveis.
<>

<NOTAS>
[1]Realizada pela historiadora Ana Carolina Fiuza F. na Ecole de Haute Etudes, Paris, França. Tradução: Célia Torres. Revisão Técnica: Pedro Henrique C. Torres
[2] Entre os quais História do Estruturalismo (Edusc, 2007), A História (Edusc, 2003), História a prova do tempo (Unesp, 2001), A História em Migalhas (Edusc, 2003).
Última atualização em Ter, 18 de Agosto de 2009 18:01

artigos de história VII

Revista Brasileira de História

Print version ISSN 1806-9347

Rev. Bras. Hist. vol.29 no.57 São Paulo June 2009

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882009000100007

ARTIGOS

Lévi-Strauss, Braudel e o tempo dos historiadores

Lévi-Strauss, Braudel and the time of the historians


Henrique Estrada Rodrigues
Historiador (UFMG), doutor em filosofia (USP), pós-doutor em Culturas Políticas (Projeto República/UFMG). Rua Apucarana, 85, apt. 103. Bairro Ouro Preto. 31310-520 Belo Horizonte – MG – Brasil. henriqueestrada@hotmail.com



RESUMO
O artigo analisa a crítica de Fernand Braudel a Lévi-Strauss quanto à relação entre estrutura e tempo histórico. Exposta no ensaio "História e ciências sociais: a longa duração", essa crítica explicita os fundamentos conceituais de uma historiografia que suspeita das rupturas radicais na história.
Palavras-chave: Braudel; Lévi-Strauss; longa duração.

ABSTRACT
This paper analyzes Fernand Braudel’s criticism of Lévi-Strauss concerning the relation between the structure and the historical time. Presented in the essay "History and the Social Sciences: the long duration", it makes explicit the conceptual fundaments of a historiography that suspects from the radical ruptures in history.
Keywords: Braudel; Lévi-Strauss; long duration.



Em 1958, Fernand Braudel publica um artigo no qual procura definir o lugar da história no interior das ciências sociais e, sobretudo, o papel do conceito de estrutura no interior da pesquisa historiográfica. O texto em questão veio à luz na revista dos Annales, no interior de uma seção chamada "Debates e Combates". Intitulado "História e ciências sociais: a longa duração", marcou um ponto de inflexão no debate historiográfico, assinalando uma tomada de consciência decisiva diante da virada estruturalista que conhecera, na obra de Claude Lévi-Strauss, um dos seus principais pontos de referência e difusão. Particularmente, Braudel reagia a um texto do antropólogo sobre "História e etnologia", publicado em 1949 na Revue de Métaphysique et Morale. Em 1958, Lévi-Strauss retomaria esse mesmo texto, inserindo-o como o capítulo I do livro Antropologia estrutural. Braudel, então, decide responder a algumas das questões ali levantadas.1
No ensaio de 1949 - e agora capítulo de livro -, três pontos, ao menos, chamaram a atenção do historiador: em primeiro lugar, o antropólogo defendia um espaço interdisciplinar de pesquisa a partir do qual criticava os saberes tradicionais encerrados em si mesmos; em segundo, essa defesa recorria a um modelo sincrônico de análise que, inspirado na linguística, investigava invariantes para além da superfície fortuita dos acontecimentos; por fim, Lévi-Strauss reconhecia na etnologia uma nova protagonista no interior das ciências sociais, diferente de uma historiografia ainda presa aos eventos contingentes ou de curta duração. Se esses pontos estiveram na base das futuras discussões entre o antropólogo e os historiadores, a reação de Braudel tivera o mérito de explicitar, desde 1958, os pressupostos historiográficos do debate. Esses pressupostos foram evocados, sobretudo, seguindo a tradição delineada em torno da revista dos Annales, fundada em 1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre. Tratava-se, no caso, de evocar os passos de uma historiografia que, havia muito, vinha revogando a superfície dos acontecimentos em proveito das estruturas de longa duração. No interior das ciências sociais, defendia Braudel, nem tanto a etnologia, mas a história fora a protagonista nessa tarefa de revogação.
Entretanto, pode-se atribuir esse protagonismo apenas aos historiadores? A sociologia não nascera, antes mesmo dos Annales, como denúncia dos acontecimentos e do tempo curto das revoluções? Que se recorde, por exemplo, a própria admiração de Marc Bloch pela escola sociológica de Durkheim e pelo periódico Année Sociologique, publicado pela primeira vez em 1898. "À velha revista L’Année os historiadores de minha geração devem mais do que confessam", dissera em 1935.2 Pouco depois, confessava: era preciso trazer para o campo historiográfico o que a escola durkheimiana quisera reservar à pesquisa sociológica - estudos sobre hábitos, costumes e dados inconscientes da vida social, mais profundos e duradouros que a trama dos acontecimentos superficiais e fortuitos. Bloch recuperava, especialmente, a crítica de François Simiand aos "três ídolos da tribo" da história dita tradicional - ênfase nos fatos políticos, busca das grandes personalidades e o hábito cronológico. Contra esses ídolos, Simiand evoca - em "Método histórico e ciência social", publicado em 1903 na Revue de synthèse historique - uma metodologia de pesquisa derivada de princípios sociológicos. Para o autor, que também colaborara em L’Année Sociologique, crenças, regras morais, maneiras de agir e de pensar não são obras dos indivíduos isolados, mas emanam de manifestações coletivas que os ultrapassam e os determinam.3
Fernand Braudel, em boa medida, retoma essa perspectiva. Já em seu livro sobre O mundo mediterrâneo à época de Filipe II, editado em 1949, desdobrava a contribuição de Simiand em novas direções. Um desses rumos, ao menos, fizera fortuna: sob a perspectiva da longa duração, Braudel elabora uma abordagem da história capaz de isolar um instantâneo em meio à diversidade do mundo, sondando as permanências e as repetições da história, as constâncias e os constrangimentos da vida social.4 E, quando publica "História e ciências sociais: a longa duração", o autor explicita as razões de uma historiografia que, ao buscar os aspectos novos e imprevistos da história, encontra, antes de tudo, continuidades e raízes. Nesse sentido específico, essas razões seriam tributárias de uma ciência que, desde o século XIX, fazia do tempo curto - da revolução ou das ações individuais - o berço das ilusões modernas. Mais ainda. Sob o pano de fundo de um debate com Lévi-Strauss, o texto de Braudel recorre a uma concepção da temporalidade que, dotada das medidas do espaço e das escalas da duração, reorienta para o coração da pesquisa historiográfica as desconfianças da sociologia perante o tempo curto das revoluções. E isso não teria sido de pequena monta, de resto, no ano em que publicou seu artigo.
É também no ano de 1958 que surge, por exemplo, o ensaio "O conceito de história - antigo e moderno", de Hannah Arendt, testemunho de uma vertente teórica radicalmente contraposta à matriz sociológica da historiografia. Arendt dotava de densidade conceitual o tempo curto dos acontecimentos, fundamentando sua ideia de revolução como ruptura, como novo começo. O político, pensado sob a perspectiva das ações contingentes e individuais, circunscreveria uma esfera própria de inteligibilidade, não derivada da infraestrutura econômica ou das estruturas sociais. Esse também é, aliás, o ano em que Soboul publica seu livro sobre Os sans-culottes parisienses, no qual estudou o papel das classes populares durante o processo revolucionário. O autor pensa o político a partir dos movimentos da economia e da sociedade, destacando a esfera das ações individuais como protagonista de uma crise revolucionária. O curso dos acontecimentos, porém, antes de lhe parecer contingente, seguiria um caminho passível de determinação racional. Diferentemente de Arendt, a concepção da história em Soboul, sob inspiração marxista, não deixa de se apresentar sob um ponto de vista teleológico.5
Mas, por que evocar esses autores? Busca-se, tão-somente, lembrar que, do ponto de vista da teoria da história, os problemas do tempo, do acontecimento e da revolução provocavam, no final da década de 1950, modalidades de conceituação bem diferentes. Assim, o ensaio de Braudel é exemplar de uma tradição historiográfica específica, que, embora problematizasse qualquer indiferença às mudanças na história, se precavia contra uma noção de acontecimento pensada sob o selo da ruptura radical. Para isso, Braudel mobiliza o conceito de longa duração, fundamentando-o, em 1958, a partir de uma reação às provocações de Lévi-Strauss. Este, portanto, seria um dos principais resultados dessa fundamentação: permitir que se reconstituam posições teóricas decisivas no interior da tradição dos Annales, posições essas que teriam consolidado uma história social em detrimento da história política.
Então, que se comece refazendo, neste artigo, o sentido daquelas provocações de Lévi-Strauss. A partir desse pano de fundo inicial, seria possível desvendar, numa segunda etapa, a armação teórica da "longa duração", com a qual Braudel reage ao estruturalismo do antropólogo ao mesmo tempo em que explicita a referência sociológica de sua conceituação. Essa reação deixou herdeiros, especialmente no interior da chamada "Nova história", cuja análise corresponderá à terceira parte deste artigo. Afinal, desconfiados do tempo curto das ações conscientes e individuais, interlocutores de Braudel continuariam mobilizando a categoria do social contra uma ideia de acontecimento político ligado à instauração do novo ou à imprevisibilidade da história.
Ao final dessas três etapas, caberia uma última constatação: quando os herdeiros de Braudel desdobram a pesquisa historiográfica para novos objetos e novas abordagens, o dissenso com Lévi-Strauss não seria mais um episódio fundamental da tradição annaliste. O próprio antropólogo, como aqui se verá, tornou-se ocasional colaborador da revista dos Annales. Desde então, o debate muda de foco: alguns autores começam a questionar a própria categoria do "social" como princípio de inteligibilidade da historiografia.6 O político e o tempo curto das ações individuais ganhariam, assim, novas e imprevisíveis configurações. Entre essas, destaca-se o próprio reencontro entre a teoria da história e a teoria política. Mas, de que maneira esse reencontro interpelou o referencial sociológico da herança braudeliana? Uma resposta possível para esta última interrogação será indicada, neste artigo, em suas considerações finais.

LÉVI-STRAUSS E OS HISTORIADORES
"História e etnologia", de Lévi-Strauss, foi publicado, originalmente, no mesmo ano do seu livro pioneiro sobre as Estruturas elementares do parentesco. Em boa medida, os dois textos apresentavam os resultados de pesquisas desenvolvidas nos Estados Unidos, para onde o pesquisador se dirigira durante a guerra. É certo que levara para a América uma larga experiência em estudos etnográficos, desenvolvidos, desde a década de 1930, ao longo de sua permanência no Brasil. Entretanto, em contato com o ambiente acadêmico americano, o antropólogo desenvolve e consolida um modelo estrutural de pesquisa e análise dos dados etnográficos. Para a elaboração desse modelo, reconhece o alcance das pesquisas linguísticas de Jakobson, que destacava a importância da sincronia saussuriana nos estudos da linguagem. O linguista russo era outro exilado em solo americano, onde se tornou amigo e colaborador de Lévi-Strauss.
Foi Jakobson quem teria intermediado o encontro de Lévi-Strauss com Franz Boas, havia muito radicado nos Estados Unidos. Boas, antropólogo de origem alemã, construíra, desde o final do século XIX, uma das mais influentes obras no interior das ciências humanas. Sua obra abarcava múltiplos aspectos, incluindo etnografia, linguística, mitologia e folclore, entre outros. Também fora o autor de diversas gramáticas de línguas indígenas, e sua noção de que as leis da linguagem funcionariam num nível inconsciente chamara a atenção tanto de Jakobson quanto de Lévi-Strauss. Foi durante um almoço no Faculty Club da Columbia, na presença do antropólogo francês, que Boas veio, subitamente, a falecer. Restou, para Lévi-Strauss, o intenso convívio com sua obra, particularmente com sua crítica ao racismo, com seus estudos sobre os indígenas e com sua articulação entre a linguagem e a cultura.7
Sob a influência de Boas e Jakobson, Lévi-Strauss retornou, no final de 1947, para a França. Na bagagem, levava o manuscrito de As estruturas elementares do parentesco, no qual o tema da proibição do incesto, regido por uma noção de cultura como universo da regra, constitui a base de sua reflexão. Em 1948, o livro foi apresentado como tese na Sorbonne. Um ano depois, enquanto Braudel lançava seu trabalho sobre o mundo mediterrâneo à época de Filipe II, Lévi-Strauss veria sua tese ser publicada e bem recebida no meio intelectual, chegando a ganhar, da parte de Simone de Beauvoir, uma resenha favorável em Les temps modernes. Assim, em 1949, as obras de Braudel e de Lévi-Strauss se cruzavam de maneira fortuita. Mas, em 1958, quando "História e etnologia" é reeditado, o historiador lança os primeiros passos de um intenso debate ao reagir àquilo que lhe parecera, no ensaio do antropólogo, profundamente problemático: a caracterização proposta para o trabalho historiográfico.
Segundo Lévi-Strauss, os historiadores seriam responsáveis pela formulação de um método monográfico que limitaria o horizonte de pesquisa e de análise. Que se recorde, continua o autor, a caracterização de Henri Hauser sobre a sociedade romana, cujos fatos se explicariam "uns pelos outros muito melhor do que a evolução da família romana se explica pela evolução da família judaica, chinesa ou asteca" (Hauser apud Lévi-Strauss, 2003, p.31). Declarações análogas poderiam ser encontradas ainda em H. Berr, L. Febvre e H. Pirenne. Entretanto, o que é verdadeiro para a evolução da sociedade não o seria para sua "estrutura". Por isso, conclui o antropólogo, a diferença fundamental entre a história e a etnologia
não é nem de objeto, nem de objetivo, nem de método; mas que tendo o mesmo objeto, que é a vida social; o mesmo objetivo, que é uma compreensão melhor do homem; e um método que varia apenas na dosagem dos processos de pesquisa, elas se distinguem sobretudo pela escolha de perspectivas complementares: a história organizando seus dados em relação às expressões conscientes, a etnologia em relação às condições inconscientes da vida social. (Lévi-Strauss, 2003, p.33-34)
A etnologia não prescindiria, necessariamente, da contribuição dos historiadores, desde que a historiografia, com sua narrativa cronológica dos acontecimentos, assumisse uma função propedêutica. Pois assim, sob o fundo de instituições que se transformam, talvez fosse possível apreender "a estrutura subjacente a formulações múltiplas, permanente através de uma sucessão de acontecimentos" (Lévi-Strauss, 2003, p.37). É bem verdade que Lévi-Strauss relembra, com admiração, a obra de Lucien Febvre sobre O problema da descrença no século XVI. Nesse livro, Febvre parecia se socorrer de todo um aparelho de elaborações inconscientes que apontava para o mesmo sentido do trabalho etnológico: a investigação de um inventário de possibilidades simbólicas, de hábitos e de uma utensiliagem mental que explicam ou informam os modos de ver, de sentir e de agir dos homens. Mas esse livro parece, ao antropólogo, uma exceção, uma vez que o próprio Febvre, em "História e etnologia", também seria lembrado, ao lado de Hauser e Berr, como exemplo de posturas ainda tradicionais.
Esse último comentário é particularmente interessante, uma vez que "História e etnologia" fora publicado, em 1949, no mesmo número da Revue de métaphysique et morale que vira aparecer, de Lucien Febvre, o artigo "Para uma outra história" (Vers une autre histoire). Enquanto Lévi-Strauss, em seu texto, avalia a historiografia a partir dos debates do início do século XX entre Simiand e Hauser, o historiador já comenta a Introdução à história, o livro inacabado de Marc Bloch, além de incluir o próprio Braudel e seu recente livro sobre o mundo mediterrâneo no contexto da tradição dos Annales. "Este adeus a Marc Bloch é também uma saudação dirigida a Braudel", lembraria, alguns anos depois, François Hartog. "Para uma outra história" valia como uma passagem de bastão:
Febvre exorta então os historiadores a sair da religião do documento escrito. "A história pode se fazer, deve se fazer sem documentos escritos caso eles não existam." E o historiador deve "fazer falar as coisas mudas, fazê-las dizer o que não dizem." Assim, esse livro recente, que fez do Mediterrâneo seu personagem central, vale como um "manifesto".8
Em outras palavras, conclui Hartog, Febvre e Lévi-Strauss, embora publicassem seus respectivos artigos num mesmo número de revista, não falavam sobre a mesma história. Por seu turno, a crítica de Braudel ao artigo do antropólogo assume e desdobra o ponto de vista delineado por Febvre. Mas, por que reagir somente em 1958, quase dez anos depois da primeira publicação de "História e etnologia"? Talvez isso se devesse a uma competição para captar as atenções do público, teria dito Lévi-Strauss, em 1988, a Didier Eribon (Eribon; Lévi-Strauss, 2005, p.100). Embora irônica, é possível que essa afirmação não seja totalmente destituída de sentido. Revendo esse debate, Hartog recorda que, em 1949, o antropólogo ainda era relativamente desconhecido, ao passo que, no final dos anos 50, era o reconhecido autor de Tristes trópicos - publicado em 1955 -, além de já ser lembrado para uma possível vaga no prestigiado Collège de France, onde, de fato, começou a lecionar em 1960 (Hartog, 2005, p.228). Suas palavras tinham, agora, uma dimensão que, provavelmente, não teriam alcançado anos antes. Nesse contexto, talvez fosse o caso de se travar um novo combate pela história.
Em seu ensaio de 1958, Braudel combateria dois pontos da argumentação de Lévi-Strauss, testemunhos de certa incompreensão, por parte do antropólogo, do próprio desenvolvimento da historiografia francesa ao longo da primeira metade do século XX. Em primeiro lugar, aquilo que Lévi-Strauss identificara como exceção - o livro de Febvre sobre o problema da descrença no século XVI - havia muito deixara de sê-lo, como testemunharia toda a herança dos Annales, modelo de interdisciplinaridade e de reação aos saberes tradicionais e estanques. Se a etnologia se articulara com a linguística, a história, havia muito, renovava seus procedimentos através de seus contatos com a sociologia de um Mauss, com a história econômica de um Simiand ou com a geografia da escola de Vidal La Blache. Em segundo lugar, os combates pela história pareciam ganhos, ao menos contra a chamada história tradicional, atenta, sobretudo, à narrativa dos grandes eventos políticos. Aquilo que Lévi-Strauss dizia ser a perspectiva do historiador - uma atenção privilegiada ao tempo curto dos acontecimentos, à feição visível e consciente da evolução política - parecia corresponder a uma historiografia já duramente criticada pela tradição dos Annales.

A REAÇÃO BRAUDELIANA
Entretanto, diante de "História e etnologia", Braudel levaria o debate mais adiante, sem deixar para trás o livro As estruturas elementares do parentesco. O antropólogo é citado logo no início de "História e ciências sociais: a longa duração", mais precisamente em seu segundo parágrafo, e de maneira bastante crítica. Se o autor reconhece, em Lévi-Strauss, alguém atento à construção de um espaço interdisciplinar de pesquisa - particularmente entre a antropologia e a linguística -, não é sem ironia que recorda a adoção, no livro sobre o parentesco, das matemáticas "qualitativas" (as aspas são de Braudel). Por enquanto, o historiador não se alonga muito sobre o tema, fazendo parte da estratégia da argumentação essa breve referência, com o intuito aparente de ganhar a adesão, para o seu ponto de vista, de cientistas sociais pouco afeitos a uma aproximação com modelos de cientificidade provenientes das ciências exatas.9 Braudel só voltaria a esse ponto mais adiante, na terceira e penúltima parte de seu longo ensaio.
No interior da primeira seção, o historiador faz referências, apenas, às teses desenvolvidas pelo antropólogo sobre o pensamento historiográfico. A bem da verdade, Lévi-Strauss não é citado nesse momento do texto, embora a argumentação de Braudel permita reconhecê-lo como um interlocutor nem tão oculto. Por exemplo: analisando a "dialética das durações", o historiador faz uma notação que traduz todo o seu desconforto diante de uma leitura sobre a ciência histórica muito semelhante àquela proposta em "História e etnologia". Depois de recordar a longa distância entre Marc Bloch e a história tradicional de um Langlois ou Seignobos, essa nota é dirigida contra cientistas empenhados
encarniçadamente em nos reconduzir à história tal como era ontem. Ser-nos-á preciso muito tempo e cuidado para fazer com que todas essas mudanças e novidades sejam admitidas sob o velho nome de história. No entanto, uma nova "ciência" histórica nasceu, e continua a interrogar-se e a transformar-se. Anuncia-se, entre nós, desde 1900, com a Revue de Synthèse Historique e com os Annales, a partir de 1929. O historiador quis-se atento a "todas" as ciências do homem. Eis o que dá ao nosso mister estranhas fronteiras e estranhas curiosidades. Além disso, não imaginemos, entre o historiador e o observador das ciências sociais, as barreiras e diferenças de ontem. Todas as ciências do homem, inclusive a história, estão contaminadas umas pelas outras. Falam a mesma linguagem ou podem falá-la. (Braudel, 2005, p.53-54)
Reconduzir os historiadores à história dita tradicional: esse fora, de fato, o procedimento de Lévi-Strauss diante do trabalho historiográfico. Conforme sugerido em "História e etnologia", a busca das razões inconscientes dos costumes e das crenças, a pesquisa das estruturas quase imóveis das sociedades seriam as melhores contribuições da antropologia estrutural. Aceita essa proposição, tanto a Revue de Synthèse Historique - da qual participava H. Beer - como os historiadores que gravitavam em torno dos Annales poderiam ser pensados como capítulos de uma mesma prática, pouco diferenciada da antiga história dos eventos, organizada de acordo com as "expressões conscientes" da vida. Braudel volta-se contra essa interpretação, da mesma maneira que Marc Bloch, em sua Introdução à história, voltava-se contra a escola de Durkheim quando esta quisera reservar à sociologia tudo o que fosse suscetível de análise racional, deixando, para a história, "um pobre cantinho das ciências", onde se precipitam os fatos considerados "mais superficiais e mais fortuitos" (Bloch, s.d., p.24).
Retomando essa antiga querela, Braudel, ao longo da primeira seção do seu artigo, relembra uma série de autores que, havia muito, se preocupavam com as estruturas do social, mais significativas que a superfície dos acontecimentos. Os recitativos das conjunturas, dos ciclos econômicos e da quantificação, caros à história econômica de um Ernest Labrousse; as sobrevivências ou permanências no domínio cultural, tal como analisadas por Ernst Robert Curtius ou Pierre Francastel; a discussão de Alphonse Dupront sobre a ideia de cruzada no Ocidente: esses seriam alguns exemplos de pesquisadores interessados em interpretar não a superfície dos acontecimentos, mas "uma atitude de longa duração ... isto é, velhos hábitos de pensar e de agir, quadros resistentes, duros de morrer, por vezes contra toda lógica" (Braudel, 2005, p.51).
E isso ainda não era tudo. O desafio teórico, para Braudel, não era apenas o de conciliar o ponto de vista estrutural com todo esse legado historiográfico, mas o de definir um conceito de estrutura próprio aos historiadores. Em outros termos, para uma perspectiva historiográfica, era o caso de explicitar a temporalidade da própria estrutura. Segundo Braudel, essa temporalidade seria a longa duração:
Por estrutura, os observadores do social entendem uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidades e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida, articulação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. (2005, p.49)
Uma estrutura corresponderia, pois, a "relações bastante fixas", mas não o suficiente para serem apreendidas segundo modelos estáticos, tal como operados, a princípio, por um livro como As estruturas elementares do parentesco. Talvez por isso, o debate com Lévi-Strauss, embora evocado na segunda parte do artigo braudeliano - "a querela do tempo curto" -, retorne, especialmente, na sua terceira seção, intitulada, precisamente, "comunicação e matemáticas sociais". Agora, o historiador começa lembrando a necessidade de certa cautela no preparo da realidade social através de esquemas inspirados nas matemáticas. Nesses esquemas, escolhe-se uma unidade estrita de observação: uma tribo primitiva ou um grupo demográfico, por exemplo; são estabelecidas, em seguida, todas as relações possíveis entre os termos dessa unidade; por fim, essas relações forneceriam subsídio para as equações, "das quais as matemáticas tirarão todas as conclusões e prolongamentos possíveis para chegar a um modelo que resuma todas, ou antes, leve todas em conta. Nesses domínios evidentemente se abrem mil possibilidades de pesquisas" (Braudel, 2005, p.65).
Não se trata, assim, de descartar totalmente modelos matemáticos para o estudo do social. Deve-se, apenas, confrontá-los, permanentemente, com o problema do tempo e da mudança. Para os historiadores, modelos seriam "feixes de explicações", no interior dos quais circularia, por rotas talvez obscuras, a longuíssima duração. Por isso, para uma teoria dos modelos, conclui o autor, "é preciso que os historiadores ocupem aí posições de vanguarda" (2005, p.64). Desse ponto de vista, o historiador investiga a relação entre teoria linguística e matemática social na obra do antropólogo, anotando as implicações da fonologia na elaboração de um modelo analítico estrutural. Braudel reconhece um traço fundamental da fonologia: destacar, aquém da palavra, o sistema dos "sons", ou seja, o "fonema", indiferente ao sentido ou ao contexto que circundaria a linguagem. A estrutura dos sons teria o mérito de indicar o "inconsciente" da língua. Assim, um novo trabalho matemático poderia ser aplicado sobre fonemas presentes nas mais variadas línguas do mundo. Lévi-Strauss, continua o historiador, não apenas contemplou essa possibilidade como estendeu o sentido da pesquisa linguística às estruturas elementares do parentesco, dos mitos, do cerimonial, das trocas econômicas. Esse procedimento fora realizado, por exemplo, em torno da troca matrimonial,
essa primeira linguagem, essencial às comunicações humanas, a tal ponto que não há sociedades, primitivas ou não, onde o incesto, o casamento no interior da estreita célula familiar, não seja proibido. Portanto, uma linguagem. Sob essa linguagem, ele procurou um elemento de base correspondente, se quisermos, ao fonema, esse elemento, esse "átomo" de parentesco, o qual nosso guia apresentou na sua tese de 1949 sob a expressão mais simples: entenda-se o homem, a esposa, a criança, depois o tio materno da criança. A partir desse elemento quadrangular e de todos os sistemas de casamentos conhecidos nesses mundos primitivos - e são numerosos - os matemáticos procurarão as combinações possíveis. Ajudado pelo matemático André Weill, Lévi-Strauss conseguiu traduzir em termos matemáticos a observação do antropólogo. (Braudel, 2005, p.66-67)
Posto isso, Braudel vai ao centro do problema: esse procedimento arriscava traduzir níveis de profundidade num tipo de "alfabeto Morse", aparentemente universal. Esse é, a rigor, o cerne da crítica braudeliana à obra de Lévi-Strauss. Mas seria, também, o ponto de partida de certa astúcia em sua interpretação, marcadamente sinuosa quanto à identificação do lugar ocupado pelo antropólogo no interior das "matemáticas sociais". Afinal, Lévi-Strauss teria preservado certo diálogo entre o modelo e a realidade social, em viagens de idas e voltas pacientemente renovadas. Braudel não se preocupa tanto em acompanhar os passos desse possível diálogo. Antes disso, essa última constatação serviria, apenas, para preparar outra indagação, votada a colocar a nova historiografia no centro do debate. Pois o que teria flexibilizado a rigidez de um modelo matemático? Para Braudel, a resposta é inequívoca: a perspectiva da longa duração. Tudo se passa, pois, como se a antropologia estrutural tivesse, em seus momentos mais fecundos, certo traço annaliste, mesmo que Lévi-Strauss não tenha teorizado ou reconhecido seus procedimentos nos termos dessa tradição historiográfica. Isso não é tudo: se a longa duração corresponde à temporalidade da estrutura, os historiadores deveriam ocupar um lugar de vanguarda nas práticas interdisciplinares entre a história, a etnologia e a linguística:
Se a história está destinada, por natureza, a dedicar uma atenção privilegiada à duração, a todos os movimentos da duração em que ela pode decompor-se, a longa duração nos parece, nesse leque, a linha mais útil para uma observação e uma reflexão comuns às ciências sociais. (Braudel, 2005, p.75)
Sob esse ponto de vista, o autor elabora a quarta e última seção do seu artigo - "tempo do historiador, tempo do sociólogo". Mas, agora, Lévi-Strauss não será mais evocado. A partir de então, outros serão os interlocutores do historiador, como Bachelard, Gurvitch ou a tradição marxista, para citar alguns exemplos. De fato, ao menos em relação ao antropólogo, mais um "combate pela história" havia terminado. Em 1966, na segunda edição do seu livro sobre o mundo mediterrâneo, Braudel até voltaria ao ponto, ao lembrar, mais uma vez, que "o estruturalismo de um historiador não tem nada a ver com a problemática que atormenta, com o mesmo nome, as outras ciências do homem. Ele não se dirige rumo às abstrações matemáticas" (Braudel apud Hartog, 2005, p.255). Mas esta última afirmação já pertence a um contexto em que os historiadores começavam a tomar a iniciativa da discussão, ao mesmo tempo em que desejam contemporizar as diferenças. Particularmente, interlocutores de Braudel tratam de reelaborar o que teriam em comum com a própria etnologia de Lévi-Strauss: de um lado, a mesma suspeita quanto ao tempo curto dos acontecimentos como eixo ordenador das práticas de pesquisa; de outro, o mesmo reconhecimento de que a categoria do social poderia ser tomada como o princípio de inteligibilidade das ciências do homem.

A REVOLUÇÃO FRANCESA DA HISTORIOGRAFIA
Em 5 de janeiro de 1960, Lévi-Strauss profere sua lição inaugural no Collège de France. Na ocasião, destaca a categoria do "social" como norte comum às ciências do homem, analisando esse horizonte em termos caros à própria historiografia annaliste. Seu argumento é inequívoco: refazendo os passos de constituição da Antropologia social como uma disciplina autônoma, Lévi-Strauss reconhece, no contexto francês, a contribuição decisiva de Durkheim e de Mauss. Durkheim "foi provavelmente o primeiro a introduzir nas ciências do homem esta exigência de especificidade que permitiria uma renovação da qual a maior parte - especialmente a linguística - se beneficia no início do século XX".10 Entretanto, continua o antropólogo, se Durkheim constitui o social como categoria independente, não reconhece que seus diversos aspectos - religiosos, linguísticos e artísticos, entre outros - indicam modos de existência que exigiriam, além da sociologia, campos específicos de conhecimento. Mauss teria sugerido essa exigência. Em seu conceito de "fato social total", a noção de totalidade seria menos importante do que sua forma de constituição: uma multidão de planos distintos e escalonados. A totalidade do social se manifesta não a priori, mas em ocasiões determinadas que não suprimem as características específicas desses diversos planos. Seria possível constituir ciências específicas para diferentes ordens de fenômenos. Ao mesmo tempo, sobre o horizonte comum do social, um trabalho interdisciplinar sempre poderia ocorrer.
Parte dessa lição foi publicada na revista dos Annales em 1960. Já em 1971, a mesma revista dedica um número ao tema "História e estrutura", com outra colaboração do antropólogo francês. No editorial da publicação, escrito por Burguière, anunciava-se: "a guerra entre história e estruturalismo não terá lugar", mas sim a busca por um "estruturalismo aberto", capaz de dar às formas culturais sua dimensão histórica específica. É certo que, aqui, Burguière também se refere ao estruturalismo radicalmente anti-histórico que alimentara, por exemplo, algumas perspectivas pós-modernas. Entretanto, quando pensa a relação entre "história e etnologia" no interior do debate estruturalista, o faz em termos braudelianos:
a etnologia procura cada vez mais atribuir às sociedades ditas primitivas a dimensão histórica que se acumula em seus mitos e instituições ... enquanto a história se mostra mais que nunca atenta aos movimentos de longa duração, ao que muda lentamente ... De uma disciplina a outra, tomou corpo a ideia de que não há no campo das ciências humanas informação pontual. Os fenômenos observáveis, as fontes disponíveis não são produtos de uma vontade mas fragmentos emersos de um sistema subjacente ... Se a análise estrutural consiste em revelar as permanências, a colocar em evidência, por detrás da aparente dispersão dos dados, "um sistema de transformações que comporta leis enquanto sistemas", os historiadores são forçados a reconhecer ... que esta perspectiva lhes é há muito familiar ... Essa vida anterior do estruturalismo se confunde com a história dos Annales ... E qual historiador se resignaria hoje à partilha de tarefas que propôs outrora Claude Lévi-Strauss afirmando que a história organiza seus dados "em relação às expressões conscientes, a etnologia em relação às expressões inconscientes da vida social"? Tudo o que a história integrou a seu saber há meio século ... ela conquistou ultrapassando as fronteiras dos dados conscientes. E quando ela retorna às expressões as mais conscientes ... é ainda além do sentido declarado que ela deve ancorar sua análise, nesta organização do inconsciente ou, ao menos, do implícito, que Lucien Febvre chamava utensiliagem mental.11
A nova geração de historiadores seguiu passos semelhantes, tratando de ampliar o privilégio acordado à longa duração e às estruturas sociais rumo a novos objetos e novas abordagens. Em 1978, uma síntese desses rumos era apresentada no volume A nova história, organizado por Jacques Le Goff. No livro, para citar alguns exemplos, Vovelle refaz a história do conceito de longa duração; Pomian discute a história das estruturas; Burguière investiga como o estruturalismo revelara os procedimentos de uma nova antropologia histórica; Ariès, por fim, explicita o território de um novo domínio na longa duração - as mentalidades.12 E enquanto a nova geração circunscreve esses passos, o próprio universo das ações conscientes é reabilitado como "objeto de uma interpretação sistemática", dizia François Furet, embora o político fosse pensado não como um "acontecimento", mas como um longo "processo de continuidade", atravessado por transformações moleculares pouco percebidas pelos sujeitos da história.13
A bem da verdade, todos esses autores são apenas alguns exemplos de uma contínua re-elaboração nos modos de se combinar o estrutural e a duração. Nesse sentido, talvez seja este um dos principais ganhos daquele debate iniciado entre Lévi-Strauss e Braudel: ter estimulado sucessivas práticas de justificação que permitem, hoje, reconstituir tomadas de posição e mudanças conceituais decisivas na tradição dos Annales. Além disso, esse debate fornecera alguns termos com os quais os historiadores justificariam uma condição de protagonista no interior das ciências sociais, especialmente na construção das suas práticas interdisciplinares. Pois, enquanto a história inclina-se do evento para a estrutura, depois da estrutura e dos modelos para o evento, "seria pedir muito, a nossos vizinhos, desejar que a um dado momento de seus raciocínios, reconduzam a esse eixo suas constatações ou suas pesquisas?" (Braudel, 2005, p.75).
Certamente, seria simplista avaliar essa historiografia apenas do ponto de vista da longa duração, apagando a multiplicidade de suas sucessivas contribuições. Seja como for, se houve uma "revolução francesa na historiografia", para recuperar os termos de Peter Burke, essa foi o resultado da colaboração interdisciplinar mantida por mais de sessenta anos, "um fenômeno sem precedentes na história das ciências sociais" (1992, p.126-127). Mas essa metáfora da "revolução" também aponta para outro sentido desse julgamento, uma vez que o "sem precedentes" da aventura interdisciplinar fora conquistado, paradoxalmente, com a desconfiança dos historiadores perante o "sem precedentes" do acontecimento político, perante uma ideia de ação tomada como "ruptura", como "novo começo". Afinal, a longa duração não se tornou uma base segura para o trabalho interdisciplinar ao construir seus fundamentos com a matéria do "social"? Essa matéria, alimentada pela contribuição durkheimiana, há muito considerava as ações voluntaristas e conscientes como as mais ilusórias da história.
Isto, particularmente, constituiria um fato social digno de observação: crenças, tendências e práticas tomadas coletivamente, fora das consciências particulares - "um estado que se repete nos indivíduos", para lembrar a definição de Durkheim, autor que desinvestiu a ação política, individual e voluntarista, como centro de gravidade de um saber cientificamente orientado.14 O social deslocara o acontecimento político como objeto privilegiado de conhecimento, não sem consequências para a nova história. Embora preserve seu "glorioso nome helênico, não significa que a nossa história seja igualzinha à que escrevia Hecateu de Mileto" (Bloch, s.d., p.24-25). Se o cânon que ordenava os acontecimentos e personagens era de natureza política, os temas recaíam sobre ações que, rompendo o movimento circular da vida, eram dignas de recordação. Porém, se o cânon da nova história é da ordem da sociedade, se o homem é pensado, sobretudo, como ser social, apagam-se as fronteiras entre o público e o privado, entre o econômico - o que diz respeito ao oikos, incluindo a intimidade e o trabalho - e a polis - a esfera da palavra compartilhada e da ação.15
Tudo, então, pode se tornar tema da história, embora as profundezas da sociedade sejam mais significativas que a superfície dos acontecimentos. Retome-se, nesse caso, o livro de Braudel sobre o mediterrâneo nos tempos de Filipe II, cujas metáforas descrevem toda uma topografia entre a agitação de "superfície" do tempo curto e individual - "ondas que as marés elevam em seu poderoso movimento" -, as "profundezas" de um tempo social e lentamente ritmado - "ondas do fundo", que levantam o conjunto da vida mediterrânea - e um tempo geográfico e quase imóvel - feito de retornos insistentes, ao contato das coisas inanimadas.16 Recorde-se, sobretudo, o final da terceira parte desse mesmo livro, quando o autor narra a morte do rei. Acontecimento dos mais vibrantes, dele, a rigor, pouco se fala - pouco mais de duas páginas, dentre as mais de mil e cem do livro. Como se, com esse episódio, o historiador dissesse sobre a morte nem tanto de Filipe II, mas de certa narrativa que, outrora, deslocaria esse evento como o principal da história. A morte real significa, portanto, que os acontecimentos morreram como centro da historiografia.17
O herói não é mais o indivíduo, mas o mundo mediterrâneo; não há mais a recordação dos feitos extraordinários, das rupturas na história, mas uma ciência social preocupada com a memória coletiva, cujas categorias - estrutura, conjuntura, duração - são construídas a partir de um diálogo com disciplinas como a economia, a demografia, a geografia, a etnologia e, sobretudo, a sociologia. E, no texto de 1958, Braudel concluiria:
o tempo curto, à medida dos indivíduos, da vida cotidiana, de nossas ilusões, de nossas rápidas tomadas de consciência ... não forma toda a realidade, toda a espessura da história sobre a qual a reflexão científica pode trabalhar à vontade. A ciência social tem quase horror do evento. Não sem razão: o tempo curto é a mais caprichosa, a mais enganadora das durações. Donde, entre alguns de nós, historiadores, uma viva desconfiança relativamente a uma história tradicional, dita ocorrencial, confundindo-se a etiqueta com a história política, não sem alguma inexatidão: a história política não é forçosamente ocorrencial, nem condenada a sê-lo. Entretanto, é um fato que, salvo quadros factícios, quase sem espessura temporal, de onde recortava as narrações, salvo as explicações de longa duração de que era preciso sorti-la, é um fato que, no seu conjunto, a história dos últimos cem anos, quase sempre política, centrada no drama dos "grandes eventos", trabalhou no e sobre o tempo curto. (Braudel, 2005, p.45-46)
A "revolução francesa da historiografia" corresponde ao longo processo de constituição de uma ciência na qual os "acontecimentos" desvendam sua verdade não em seu encadeamento, mas em sua relação com uma estrutura que os ultrapassa.18 Nesse caso, o ponto de vista da longa duração também fertilizou um antigo sonho da escola sociológica. Pois a sociologia durkheimiana veio à existência, sob o fantasma das revoluções, como denúncia da superfície enganosa das palavras e dos eventos. Pela via sociológica, os indivíduos, integrados a processos, estruturas ou relações sociais que os ultrapassavam, deixariam de ser compreendidos como sujeitos da história. Triunfo da integração, no qual o conflito e a alteridade seriam pensados sob o risco da desintegração social. E quando os acontecimentos batiam à porta da sociologia, ou melhor, quando as paixões revolucionárias tornavam-se objeto de conhecimento, era o caso de mostrá-las ora como anomalia, ora como superfície, tão superficiais e anômalas quanto o desejo de transformar radicalmente o mundo.19
Desse ponto de vista, o conceito de "acontecimento", como onda de superfície, talvez alimentasse novas críticas à ideia de revolução, pensada como um desejo ilusório e superficial de alteridade radical. Se em Lévi-Strauss a ação revolucionária, tomada como evento fundador, tem a tessitura de um "mito" - uma vez que a sociedade é feita de "costumes, de hábitos" (Eribon; Lévi-Strauss, 2005, p.168) -, um autor como François Furet, desde "O catecismo revolucionário" - publicado na revista dos Annales em 1971 (número de março-abril) -, relembra a revolução francesa para denunciar a superfície enganosa do acontecimento. Que se pense, agora, na morte de outro rei, ou seja, no episódio em que Luís XVI foi guilhotinado. Acontecimento maior no século XVIII, esse seria o ápice de uma longa ilusão, própria a sujeitos - ou a historiadores - incapazes de perceber que a obra revolucionária - o princípio da igualdade - fora lentamente veiculada pela obra centralizadora do Antigo Regime. Exceção feita, no campo historiográfico, ao Tocqueville de Antigo Regime e revolução, diria Furet. Esse antípoda de Michelet não se iludira. O evento revolucionário foi um "processo de continuidade: a Revolução estende e consolida, levando a seu ponto de perfeição o Estado administrativo e a sociedade igualitária, cujo desenvolvimento é a obra característica da antiga monarquia" (Furet, 1989, p.37).
Certamente, entre Braudel, o livro sobre A nova história e o retorno do político em Furet, o debate sobre a estrutura social, sobre os longuíssimos processos de mudanças - cuja lógica ultrapassa qualquer consciência individual - foi deixando de ser um foco exclusivo das atenções. Mesmo aquele dossiê sobre "História e estruturalismo", publicado na revista dos Annales, já tinha o tom de um balanço, e não de tomadas rígidas de posição. Enfim, do debate suscitado pelas provocações de Lévi-Strauss, restara tanto uma conceituação específica sobre diversos modos de temporalidade, como a explicitação de diferentes "regimes de historicidade" (Hartog, 2005, p.235). Uma história das ilusões políticas corresponderia, apenas, a um regime historiográfico bem específico, marcado pela inscrição sociológica da esfera política. Por que, então, destacá-lo especialmente? Trata-se, no caso, de lembrar que a própria "revolução francesa da historiografia", quando interpretou a alteridade radical como uma forma de ilusão, dera novo impulso àquele velho sonho sociológico. "Tempo curto das ilusões", "engano revolucionário", "superfície dos acontecimentos": sob estas premissas, as ações conscientes e individuais não seriam pacificadas no instante mesmo em que retornam como campo de interesse dos historiadores? E seria possível decretar que o acontecimento só reassume dignidade científica quando integrado a uma identidade coletiva ou a processos de continuidade?

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como pensar a descontinuidade a partir de uma tradição historiográfica que tomou o "social" como categoria orientadora? Dialogando com a tradição dos Annales, a década de 1970 assiste, na França, à difusão de abordagens que enfrentam essa questão de uma perspectiva muito específica: alguns autores reassumem a ação dos indivíduos como objeto privilegiado de investigação. Desse ponto de vista, buscava-se reinterrogar as possíveis relações entre o tempo da ação e os constrangimentos da sociedade e da longa duração. Três autores, ao menos, ancoraram suas obras nessa reinterrogação: Roger Chartier, Claude Lefort e Jacques Rancière. Ainda que esposando diferentes concepções teóricas, esses intérpretes poderiam ser consultados, no contexto francês, como fontes de reflexão para uma teoria crítica da história social, votada a interpretar o tempo das ações individuais a partir de outros marcos que aqueles erguidos pelas medidas da duração.
Do ponto de vista da longa duração, o curso da história se espacializou. Semelhante à geografia, a temporalidade foi dotada de escalas, de comprimentos distintos que se interpenetravam numa totalidade ordenada. Dessa maneira, um historiador como Braudel, que descarta modelos estáticos ou matemáticos, não abandonou, de todo, um sistema de referências mais ou menos imóvel para medir as relações de sucessão. Por sua vez, se a duração foi conduzida ao espaço, um autor como Chartier busca reconduzi-la às propriedades culturais, cujos múltiplos campos de negociação diversificam as escalas da duração reabilitando a dignidade do tempo curto das ações individuais. Com Chartier, essa perspectiva encontra um campo de elaboração no interior de um debate sempre renovado com a tradição dos Annales. Para esse autor, é o caso de flexibilizar os moldes rígidos da estrutura pelos caminhos de uma história cultural da sociedade. Em outros termos, as ações individuais e conscientes são pensadas como campo de negociação entre vontades particulares e constrangimentos sociais, entre a tradição e a inovação. O objeto da história cultural residiria, pois, na tensão entre capacidades inventivas e restrições ou convenções que determinam o que "é possível pensar, enunciar e fazer".20
Entretanto, as "práticas constitutivas do mundo social" (Chartier, 2002, p.90) continuam como uma moldura, circunscrevendo, para as ações individuais, um campo circunscrito de sentido ou significação. Em outras palavras, as ações dos homens ainda encontram seus moldes em propriedades sociais objetivas, "que caracterizam os diferentes grupos, comunidades ou classes que constituem o mundo social" (Chartier, 2002, p.91). Por essa razão, um autor como Rancière, que na década de 1960 participou da aventura estruturalista, ainda identifica, nesse conceito de cultura, a persistência de uma noção de tempo sociologicamente orientado, cujas medidas vieram ao mundo para combater o desmedido de uma ideia de alteridade radical (Rancière, 1992, p.177-208). Para Rancière, era o caso de reabilitar um conceito de tempo politicamente orientado, vale dizer, fundado sob a lógica de ações contingentes, determinadas por um excesso de sentido diante do já conhecido.
Esse autor não recupera os quadros de uma história tradicional, quando o político era pensado sob a lógica do Estado e de suas instituições, do poder e da administração, do mando e da obediência; quando o tempo era pensado segundo a lógica contínua dos progressos da civilização. Ele busca, antes de tudo, reconduzir o tempo da história ao encontro de acontecimentos que, muitas vezes, poderiam ser subtraídos da linguagem do poder, da utensiliagem cultural ou das medidas da duração. A nova história cultural seria pouco atenta às razões de uma ação que, antes de ser expressão de alguma cultura, poderia descortinar um caminho novo e imprevisível para a vida em comum. O conceito de cultura política, reenviando os caminhos da ação à identidade previamente constituída de algum grupo - grupos operários, por exemplo -, tipifica o que poderia ser pensado como ruptura de toda identidade, como desformalização de toda moldura cultural.21
Porém, às margens da tradição dos Annales, mas sem descartar o horizonte do social, um autor como Claude Lefort também buscou renovar os fundamentos da teoria da história. Semelhante a Rancière, compreende o político como campo das ações contingentes, como espaço do conflito e da criação de novos valores ou sentidos para o mundo. E como Braudel, reconhece a pluralidade de histórias presentes em toda vida social, embora critique a tendência do historiador em hierarquizar as sucessivas durações. Entretanto, se preserva a medida do social, não adere à orientação sociológica. Sob o selo da divisão originária da vida em comum, pensada como conflito e indeterminação, analisa as condições de possibilidade de uma instituição política da sociedade. Em outras palavras, Lefort pensa a ação política como a desformalização de toda identidade previamente dada, como a desordenação de toda medida segura para o curso do tempo. E isso, ao menos, desde o início da década de 1970, quando publica sua obra sobre Maquiavel. Já a partir dos anos 80, reavalia historiadores do século XIX como Jules Michelet e Edgar Quinet, autores de referência para uma teoria da história que procurasse reconciliar o conceito de acontecimento com o possível advento de novas e imprevisíveis configurações sociais.22
Posteriores à "revolução francesa da historiografia", esses três exemplos - Chartier, Rancière, Lefort - compõem, certamente, um inventário incompleto sobre os novos combates da história. Seja como for, e a despeito das diferenças entre os autores, esse percurso sugere os caminhos de certa desestruturação. Pois o retorno do político, quando pensado às margens de uma orientação sociológica, poderia confrontar a história com uma noção de tempo à revelia de toda medida ou precisão. Esse é o tempo da ação, cristalizado em sujeitos que sabem perturbar a uniformidade da vida social e cotidiana. A ação política não revela, apenas, um ser de raízes, mas, muitas vezes, alguém deslocado no tempo e no espaço. Nesse sentido, entre os diversos "retornos" da historiografia pós-braudelina - das ações conscientes, do tempo curto dos acontecimentos -, talvez fosse o caso de também retomar uma concepção do homem como "animal político".
A reapropriação do zôon politikon - privado, na modernidade, da antiga determinação normativa e teleológica - poderia, quem sabe, constituir uma importante fonte de reflexão sobre ações socialmente desestruturadas, culturalmente indefinidas e nem sempre apreendidas sob as teias do social ou sob as medidas de alguma duração.23 Inverter-se-ia, assim, uma antiga premissa de Durkheim, para quem as ações políticas pressupunham não apenas a diferenciação social, mas também a multiplicidade de práticas e de representações sobre os modos de ser da sociedade. Antes de pressupor, a ação não seria a própria raiz da diferenciação social, o momento inaugural de todo movimento e de toda história, a matriz de toda essa multiplicidade?24

NOTAS
1 BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. A longa duração. In: Escritos sobre a história. Trad. Jacó Guinsburg e Tereza da Mota. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2005; [ Links ] LÉVI-STRAUSS, Claude. História e etnologia. In: Antropologia estrutural. Trad. Chaim Katz e Eginardo Pires. 6.ed. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2003. [ Links ]
2 Apud BURKE, Peter. A escola dos Annales – 1929-1989: a revolução francesa da historiografia. Trad. Nilo Odália. 2.ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. p.26. [ Links ]
3 Cf. BLOCH, Marc. Introdução à história. Trad. Maria Manuel e Rui Grácio. 5.ed. Porto: Publicações Europa-América, s.d. cap. I; [ Links ] SIMIAND, François. Método histórico e ciências sociais. Trad. e Apresentação: José Leonardo do Nascimento. Bauru: Edusc, 2003. [ Links ] A este respeito, ver ainda: REIS, José Carlos. Nouvelle histoire e tempo histórico: a contribuição de Bloch, Febvre e Braudel. São Paulo: Ática, 1994. [ Links ] E sobre a relação entre a tradição dos Annales e a tradição sociológica, ver também: RANCIÈRE, Jacques. Les noms de l’histoire: essai de poétique du savoir. Paris: Seuil, 1992. [ Links ]
4 A relação entre esse procedimento e o método histórico de Simiand foi assinalada por LEPETIT, Bernard. Espace et histoire: hommage à Fernand Braudel. In: Annales: économies, sociétés, civilisations, Paris, n.6, nov.-déc. 1971, disponível em www.persee.fr/web/revues. [ Links ] Lepetit também recorda que, em 1960, com a revista dos Annales sob a direção de Braudel, o ensaio de Simiand foi novamente publicado.
5 ARENDT, Hannah. O conceito de história – antigo e moderno. In: Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro de Almeida. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992; [ Links ] SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en l’an II. Paris: Seuil, 2004. [ Links ]
6 CHARTIER, Roger. Le monde comme répresentation. In: Annales: économie, sociétés, civilizations, Paris, n.6, nov.-déc. 1989, disponível em www.persee.fr/web/revue. [ Links ]
7 Sobre o encontro entre Boas e Lévi-Strauss, ver: ERIBON, Didier; LÉVI-STRAUSS, Claude. De perto, de longe. Trad. Lea Mello e Julieta Leite. São Paulo: CosacNaify, 2005. p.59-64. [ Links ]
8 HARTOG, François. Le regard éloigné. In: Évidence de l’histoire. Paris: Gallimard, 2005. p.221. [ Links ]
9 Sobre a crítica ao "modelo matemático" em Lévi-Strauss, conferir: ERIBON; LÉVI-STRAUSS, 2005, p.147-154. Nessa obra, Eribon relembra que Claude Lefort, em artigo de 1952, censurava o antropólogo por apresentar o modelo como mais real que a realidade empírica. Esse artigo teria dado início às críticas sobre o formalismo ou abstracionismo de As estruturas elementares do parentesco.
10 Conforme a reedição do ensaio em: LÉVI-STRAUSS, Claude. Le champ de l’anthropologie. In: Anthropologie structurale deux. Paris: Plon, 1973. [ Links ] Nessa mesma obra, ver também: Ce que l’ethnologie doit à Durkheim, escrito, igualmente, em 1960.
11 BURGUIÈRE, André. Présentation. In: Annales: économies, sociétés, civilisations, Paris, n.3-4, mai-juin 1971, disponível em www.persee.fr/web/revues. [ Links ]
12 LE GOFF, Jacques (Org.). A nova história. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [ Links ]
13 FURET, François. Pensando a revolução francesa. Trad. Luiz Marques e Martha Gambini. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1989. p.32-33. [ Links ]
14 Cf. DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. 16.ed. Paris: PUF, 1967. p.3-5. [ Links ] A esse respeito, ver também: LUKES, Steven. Bases para a interpretação de Durkheim. In: COHN, Gabriel (Org.). Sociologia: para ler os clássicos. Rio de Janeiro: Azougue, 2005. [ Links ]
15 Conferir ARENDT, 1992.
16 BRAUDEL, Fernand. La méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Armand Colin, 1949. p.XIII-XIV. [ Links ] Conferir a tradução brasileira de um pequeno extrato do livro, no qual Braudel sintetiza seu conceito de duração: BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. Trad. Jacó Guinsburg e Tereza da Mota. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. p.14-15. [ Links ]
17 BRAUDEL, 1949. Sobre o curto episódio da morte do Rei como metáfora da morte de uma história tradicional, segue-se, aqui, RANCIÈRE, Jacques. Les noms de l’histoire: essai de poétique du savoir. Paris: Seuil, 1992. p.27. [ Links ]
18 LEFORT, Claude. Histoire et sociologie dans l’oeuvre de Fernand Braudel. In: Le temps présent: écrits 1945-2005. Paris: Belin, 2007. [ Links ]
19 RANCIÈRE, 1992, p.77. Sobre o ideal de integração num pensamento de matiz positivista, ver também, ainda que em outro contexto, dois pequenos ensaios de ADORNO, Theodor. Société; Résignation. In: Tumultes. Paris: Kimé, n.17-18, 2002. [ Links ]
20 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Trad. Patrícia Ramos. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002. p.91. [ Links ] Nesse livro, conferir especialmente suas análises sobre Foucault, considerado fonte inequívoca de reflexão sobre os novos rumos historiográficos.
21 A este respeito, ver: RANCIÈRE, Jacques. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. Trad. Marilda Pedreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. [ Links ]
22 LEFORT, Claude. Le travail de l’oeuvre – Machiavel. Paris: Gallimard, 1986; [ Links ] do mesmo autor, ver também: Quinet, Edgar: la révolution manquée. In: Essais sur le politique. Paris: Seuil, 1986. [ Links ] Ver, especialmente, a edição proposta e apresentada por Lefort para os diversos prefácios teórico-metodológicos escritos por Michelet. In: MICHELET, Jules. La cité des vivants et des morts: préfaces et introductions. Paris: Belin, 2002. [ Links ]
23 Sobre o zôon politikon, ver: ARISTOTE. Les politiques. Trad. Pierre Pellegrin. 2.ed. Paris: Gallimard, 1993 (I, [ Links ] 2, 1252-a / I, 2, 1252-b). Sobre a re-elaboração moderna dessa tradição aristotélica, ver os artigos reunidos no dossiê "L’animal politique", publicado na revista Épokhè, Grenoble, n.6, 1996.
24 Sobre o procedimento de inversão da premissa durkheimiana, ver, mesmo que em outro contexto, CLASTRES, Pierre. Copérnico e os selvagens. In: A sociedade contra o Estado. Trad. Theo Santiago. Pref. Tânia Stolze Lima e Márcio Goldman. São Paulo: CosacNaify, 2003. [ Links ] Para uma introdução geral ao argumento de Clastres, o prefácio dessa edição pode ser lido com proveito.


Artigo recebido em agosto de 2008.
Aprovado em fevereiro de 2009.