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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013
domingo, 15 de dezembro de 2013
O Direito está nas ruas, na lei ou na
consciência?
Da
voz das ruas à consciência e assim por diante: as falsas “ditricotomias”
Durante o affair “Embargos Infringentes”, forjou-se uma falsa “ditricotomia”: ouvir a voz das ruas ou a voz da lei (ou a consciência individual, do tipo “faço o que acho o certo”). Nada mais ficcional do que isso. Além do fato de que os ministros do STF por vezes sustentam uma tese e, em outras, a tese inversa. Veja-se, nesse sentido, o voto do ministro Roberto Barroso no MS 32.326 (caso Donadon), em que apelou textualmente, como motivo para não chancelar a existência de um Deputado presidiário, cumprindo pena de mais de 13 anos, em regime inicial fechado: “A indignação cívica, a perplexidade jurídica, o abalo às instituições e o constrangimento que tal situação gera para os Poderes constituídos legitimam a atuação imediata do Judiciário”.
Durante o affair “Embargos Infringentes”, forjou-se uma falsa “ditricotomia”: ouvir a voz das ruas ou a voz da lei (ou a consciência individual, do tipo “faço o que acho o certo”). Nada mais ficcional do que isso. Além do fato de que os ministros do STF por vezes sustentam uma tese e, em outras, a tese inversa. Veja-se, nesse sentido, o voto do ministro Roberto Barroso no MS 32.326 (caso Donadon), em que apelou textualmente, como motivo para não chancelar a existência de um Deputado presidiário, cumprindo pena de mais de 13 anos, em regime inicial fechado: “A indignação cívica, a perplexidade jurídica, o abalo às instituições e o constrangimento que tal situação gera para os Poderes constituídos legitimam a atuação imediata do Judiciário”.
Dias
depois, ao aceitar os Embargos Infringentes, disse o contrário: “A verdade não
tem dono. A única coisa que um juiz pode fazer, em meio ao vendaval, é ser leal
a si mesmo e ao Direito tal como ele o compreende. À sua consciência.” Ou seja:
antes, a indignação cívica é fundamento; logo depois, não mais o é.
Só
por aí já poderia desenvolver páginas e páginas. Veja-se que o ministro Celso
de Mello, por exemplo, para sustentar seu voto de desempate e, com isso,
“anunciar” a vitória da lei sobre a voz das ruas, disse que o STF deve ficar
imune às pressões das ruas e ater-se apenas à tecnicidade da lei. OK, mas, o
que é isto, a tecnicidade da lei? A lei tem vida própria? O Direito é feito de
“normas gerais” que contém de antemão todas as respostas?
Vários
artigos foram publicados nas redes sociais, contendo argumentos com perguntas
do estilo “o STF deve julgar pela consciência, pelas ruas ou pela lei?”. Por
que essa “ditricotomia” (ou contraposição) é falsa? O professor Marcelo
Cattoni, da UFMG, e eu vimos discutindo isso há muito tempo. Com efeito.
As
oposições “voz da lei versus voz das ruas” ou “voz da consciência versus
voz das ruas”, ou ainda, “voz da lei versus voz da consciência”, são
reducionistas e fragilizam o Direito. É como discutir se a legitimidade vem do
pluralismo das ruas ou simplesmente do direito posto pelo parlamento (ou pelo
STF, no seu Regimento Interno) ou pelas consciências dos intérpretes autênticos
(ou inautênticos). Com efeito, se é certo que o Direito não deve ser reduzido à
vontade não-mediada institucionalmente de maiorias e/ou minorias conjunturais,
por outro não pode ser reduzido à mera estatalidade político-burocrática, muito
menos àquilo que dizem que ele é (Realismo Jurídico). Afinal, as decisões
estatais no Estado Democrático de Direito só são válidas se garantirem suas
pretensões democrático-constitucionais.
É
claro que todo o Direito é público, não resta dúvida quanto a isso. Mas o público
não se reduz ao estatal, no Estado Democrático de Direito, e está numa relação
pública de complementaridade e interdependência entre público e privado.
Assim
é que a coerência normativa exigida pela integridade do/no direito é de
princípios (exigências do hoje), e não meramente de regras (convenções do
passado). Disso se pode dizer que, se o Direito não nascer na(s) rua(s), se a
legalidade não nascer também das reinvindicações populares, a partir de
demandas sociais diversas, e não se sustentar com base em razões que sejam
capazes de mobilizar os debates públicos, pela atuação da sociedade civil e dos
setores organizados da sociedade, e assim, sem uma perspectiva generalizada,
universalizada, instaurada pelas lutas por reconhecimento e por inclusão social
e econômica, não ganhar os fóruns oficiais do Estado, não ganhar o centro do
sistema político, e não se traduzir em decisões participadas, como falar em
legitimidade democrática?
Dito
de outro modo: é na mediação discursiva entre a informalidade e a formalidade,
garantida num nível institucional pelos processos deliberativos constitucional
e democraticamente institucionalizados, legislativos, administrativos e
jurisdicionais, que o poder político/jurídico é gerado comunicativamente e a
legitimidade é gerada através da legalidade...
Portanto,
já de pronto afasto essa “ditricotomia”, pela incindibilidade entre direito e
fatos e entre interpretação e aplicação. Mas, quero avançar. E enfrentar outra
questão que corre paralela.
Legalistas
versus pragmatistas?
Leio em O Globo artigo de Eduardo Jordão e Diego Werneck Arguelles, intitulado O STF observado. O artigo é interessante, porque critica o modo como as votações são conduzidas, como, por exemplo, ocorre a incidência da pressão da opinião pública. Os articulistas mostram a instabilidade dos compromissos dos membros do STF, verbis: “Legalistas convictos buscam soluções muito além do texto da lei. Históricos pragmáticos, orgulhosos de sua flexibilidade e bom senso, tratam as palavras da lei como se delas não pudessem se desvencilhar”.
Leio em O Globo artigo de Eduardo Jordão e Diego Werneck Arguelles, intitulado O STF observado. O artigo é interessante, porque critica o modo como as votações são conduzidas, como, por exemplo, ocorre a incidência da pressão da opinião pública. Os articulistas mostram a instabilidade dos compromissos dos membros do STF, verbis: “Legalistas convictos buscam soluções muito além do texto da lei. Históricos pragmáticos, orgulhosos de sua flexibilidade e bom senso, tratam as palavras da lei como se delas não pudessem se desvencilhar”.
Tenho
“batido” nessa tecla de há muito. Tenho denunciado essas “idas e vindas” nas
posições dos ministros (e não só deles). Por vezes, a letra da lei... em
outras, os limites semânticos são implodidos... Em todos os meus livros denuncio
essa problemática. Mas não se trata apenas de opor, como de certo modo fizeram
os dois articulistas, “legalismo versus pragmatismo”, até porque não há
dados consistentes acerca de quem são os “legalistas” e quem seriam os
“pragmatistas”. Isso seria simplificar a discussão. Seguramente, há munição
para os dois lados, afinal, o decisionismo é um animal camaleônico e
imprevisível. Ele usa o Anel de Giges (quando quer, desaparece sem deixar
rastros). É o predador implacável da integridade e coerência do Direito. E sem
integridade e coerência dos intérpretes, de nada serve a Constituição. Talvez
fosse isso que os articulistas quisessem dizer. O que deve ser frisado é que há
algo mais profundo e que esconde essas falsas “ditricotomias” “consciência versus
voz das ruas versus lei.
Refiro-me
à ausência da discussão acerca de uma teoria da decisão. Ou seja, para além do
problema de “como se interpreta”, que por si já é um problema (basta ver o uso
abundante da metodologia de Savigny misturada com componentes da jurisprudência
dos valores e dos interesses), tem-se a questão de “como se decide”. Dessa
arte, quero registrar, de novo, que toda essa problemática da fragmentação das
decisões — e, portanto, da falta de coerencia e integridade detectável nessas
idas e vindas entre “legalismos e pragmatismos” — advém do fato de que
recepcionamos equivocadamente (no mínimo) cinco teses ou posturas, conforme
explitei na coluna passada (clique aqui para ler).
Mas
é a quinta recepção que me parece a mais perigosa, porque demonstra uma
algaravia mais explícita, uma espécie de “flambagem transteorética”. Refiro-me
à mera tentativa de superação do tal “legalismo” exatamente por posturas
pragmáticas ou proto-pragmáticas, algumas delas envernizadas sob o rótulo de
neoconstitucionalismo, em que simplesmente se (re)coloca a moral no direito a
partir dos princípios entendidos como...valores. Bingo. E o resultado é
desastroso, ou seja, na medida em que a moral é contingente, cada juiz ou
membro de tribunal “repõe” a moral no Direito a partir de seus pressupostos
pessoais (donde a minha crítica à questão da “consciência”...!). Despiciendo
lembrar que há centenas de dissertações, teses e livros que caem nessa
armadilha.
Veja-se
que para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina indica “o
caminho” para a interpretação, colocando a consciência ou a convicção pessoal
como norteadores do juiz, perfectibilizando essa “metodologia” de vários modos.
Ou seja, criou-se uma falácia naturalizada, pela qual é “normal” que o
judiciário decida conforme o que cada membro pensa a respeito do direito... E
isso “aparecerá” de várias maneiras, como na direta aposta na: a) interpretação
como ato de vontade do juiz ou no adágio “sentença como sentire”; b)
interpretação como fruto da subjetividade judicial; c) interpretação como
produto da consciência do julgador; d) crença de que o juiz deve fazer a
“ponderação de valores” a partir de seus “valores”; e) razoabilidade e/ou
proporcionalidade como ato voluntarista do julgador; f) crença de que “os casos
difíceis se resolvem discricionariamente”; g) cisão estrutural entre regras e
princípios, em que estes proporciona(ria)m uma “abertura se sentido” que deverá
ser preenchida e/ou produzida pelo intérprete.
Sigo,
então. Por vezes, parece — e isso me preocupa sobremodo — que pesquisadores do
Direito resvalam na aceitação-institucionalização da “vontade” como fundamento
da decisão (por exemplo, quando se coloca frente a frente “legalismo e
pragmatismo”, já se está, inexoravelmente, no olho do furacão). Algo do tipo
“já-que-os-ministros-decidem-como-querem,
segundo-e-seguindo-suas-ideologias-e/ou-preferencias-pessoais-ou-as-respectivas-consciências
(seja lá o que isso quer dizer)”, temos (nós, a doutrina) que estudar essas
suas preferencias para argumentarmos estrategicamente... Ou, ainda, “devemos
nos limitar a produzir as melhores condições para a livre emanação da vontade
do intérprete, ou entender os momentos inoportunos para sua manifestação...”.
Assim, se o juiz ou ministro gosta de estrogonofe, devemos fazer de tudo para
que a ele seja servido esse prato no dia do julgamento. Se ele torce para o
Flamengo, não devemos pedir liminar no dia seguinte à demissão do Mano
Menezes... Peço que me incluam fora dessa. Se a aplicação do Direito é um ato
de vontade, ele não é mais Direito. É um jogo de poder. E nesse banquete, a
choldra fica de fora. Só participam os do andar de cima, os que tem acesso à katchanga
(real). Como somos paradoxais no Brasil, pois não? Falamos tanto em democracia
e, no entanto, ao fim e ao cabo, jogamos tudo nos braços da moral, da política
e da economia. Do Direito, nada resta. Aliás, para quem não entendeu isso
ainda: quem sustenta que a interpretação jurídica é um ato de vontade ou coisa
do tipo “a decisão está na consciência do intérprete”, está dando um tiro no
pé... a não ser que o defensor da ideia tenha o poder de decidir. Se, por
exemplo, um advogado pensa assim, a pergunta que deve ser feita ao causídico é:
para que você serve, afinal? O mesmo se deve perguntar a quem escreve ou tem
pretensões doutrinárias... Afinal, se tudo se resolve na consciência ou na
vontade do sujeito-intérprete, tudo o que você fizer será supérfluo. Peço
perdão pela minha rudeza. Não quero retirar a ilusão de tanta gente...
Sigo.
E o faço para dizer que, pensar que a decisão judicial é (ou não passa de) um
ato de vontade (de poder), é, sem tirar nem por, dar razão à Kelsen (na parte
da aplicação do direito, ou seja, no “andar de baixo” de sua teoria — peço,
encarecidamente, que os leitores leiam as poucas páginas do famoso 8º capítulo
da Teoria Pura do Direito). E é também dar razão a juristas como Richard
Posner, um pragmati(ci)sta da cepa, que odeia princípios e acha que a autonomia
do Direito não serve para nada. Só que isso transforma o Direito em uma mera
racionalidade instrumental, algo à disposição do intérprete. Mais do que isso,
trata-se da derrota da teoria do direito e a vitória da retórica (ou da mera retórica).
O direito se transforma em um jogo de cartas marcadas, como já denunciava Warat
há décadas.
Decisão
é, mesmo, um ato de vontade?
Vou tentar mostrar isso de outro modo. Há algum tempo, fiz um debate com o penalista da escola crítica do Direito Penal brasileiro, o estimado Paulo Queiroz. Ele havia publicado um artigo (O que é direito? — clique aqui para ler) que me assustou sobremodo, em que dizia: “sempre que condenamos ou absolvemos, fazemo-lo porque queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atos de verdade, mas atos de vontade”.
Vou tentar mostrar isso de outro modo. Há algum tempo, fiz um debate com o penalista da escola crítica do Direito Penal brasileiro, o estimado Paulo Queiroz. Ele havia publicado um artigo (O que é direito? — clique aqui para ler) que me assustou sobremodo, em que dizia: “sempre que condenamos ou absolvemos, fazemo-lo porque queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atos de verdade, mas atos de vontade”.
E
disse mais o penalista baiano: “parece evidente que, ordinariamente, por mais
que tenhamos motivos, legais ou não, para condenar, condenamos porque queremos
condenar e porque julgamos importante fazê-lo; inversamente: por mais que
tenhamos motivos, legais ou não, para absolver, absolvemos porque queremos
absolver e julgamos importante fazê-lo”.
Veja-se:
embora substancialmente a contribuição crítica de Queiroz seja inegável, neste
ponto corre o risco de provocar retrocessos democráticos nas manifestações
processuais de Promotores, Juízes e Ministros do STF. No livro O Que é isto
– decido conforme minha consciência, rebato essa tese de Queiroz, que,
aliás, não difere daquilo que o ministro Marco Aurélio tem dito acerca do
interpretação do Direito (a de que a interpretação é um ato de vontade — por
exemplo AI 252.347 e AI 218.668, ou seja, nem mais, nem menos do que diz Kelsen
no 8º Capitulo de sua TPD).
Como
contraponto, sustento que acreditar que a decisão judicial é produto de um ato
de vontade (de poder) nos conduz inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo
depende(ria) da vontade pessoal (algo do tipo “se-o-juiz-quer-fazer,-faz;
se-não-quer, não-faz...!). Logo, a própria democracia não depende(ria) de nada
para além do querer de alguém...!
Eis
o meu repto, meio solitário, bem sei. Tudo o que venho escrevendo serve para
dizer: “Fujamos disso”! Aliás, a hermenêutica surgiu exatamente para superar o
“assujeitamento” que o sujeito faz do objeto (aliás, isso é o que é a filosofia
da consciência... – ou a sua vulgata voluntarista!). Toda a minha aula de
terça-feira à noite foi sobre isso: sobre o paradoxo que representa o Direito.
Se se achar que a decisão é um ato de vontade de poder, então não deveríamos
apostar no Direito. Deveríamos apostar na política, na sociologia, nas
estratégias, na guerra, em qualquer coisa. Ora, o Direito foi feito justamente
para se opor e controlar o poder, a política, etc. Se ele for um instrumento de
poder, pessoal ou coletivo, ele não é Direito... Ele é arbítrio. E arbítrio é o
contrário de Direito. Por isso, ser jurista é ser otimista. Meu amigo Paulo
Queiroz e os que pensam como ele (por exemplo, o ministro Marco Aurélio), são
pessimistas. Fatalistas. Kelsen também foi um pessimista. Por isso ele relegou
a aplicação do direito a um ato de segundo nível, a mera “política jurídica”.
Não penso que deva ser assim. Ou sejamos todos políticos. Azar será daqueles
que não tem poder... Se me entendem o que quero dizer!
Por
que o Direito é, hoje, a soma de todos os nossos medos?
Ao longo dos anos, minha preocupação tem sido exatamente com o debate contemporâneo “democracia-constitucionalismo”. São compatíveis? Orgulhosamente, digo: Sim! Porque sou um otimista. Mas disso exsurge um dilema: para impedir que a jurisdição constitucional, pelo qual se controla a constitucionalidade, seja transformada em uma judiciariocracia, é fundamental que controlemos as decisões judiciais. Isso implica abandonar as teses que sustentam o poder discricionário (que não passa de um ato de vontade). Democracia e discricionariedade são incompatíveis. Daí que é espantoso — mas muito espantoso — que os projetos dos Códigos Processuais mantenham esses anacronismos (como, por exemplo, a livre apreciação da prova). É espantoso que se queira commonlizar o direito brasileiro sem uma adequada teoria que trate da decisão judicial.
Ao longo dos anos, minha preocupação tem sido exatamente com o debate contemporâneo “democracia-constitucionalismo”. São compatíveis? Orgulhosamente, digo: Sim! Porque sou um otimista. Mas disso exsurge um dilema: para impedir que a jurisdição constitucional, pelo qual se controla a constitucionalidade, seja transformada em uma judiciariocracia, é fundamental que controlemos as decisões judiciais. Isso implica abandonar as teses que sustentam o poder discricionário (que não passa de um ato de vontade). Democracia e discricionariedade são incompatíveis. Daí que é espantoso — mas muito espantoso — que os projetos dos Códigos Processuais mantenham esses anacronismos (como, por exemplo, a livre apreciação da prova). É espantoso que se queira commonlizar o direito brasileiro sem uma adequada teoria que trate da decisão judicial.
Para
ser mais claro e simples: de que adianta (ou de que adiantou) colocar na
Constituição (e na legislação) as conquistas de todos os matizes se, no momento
da concretização, dependemos da vontade individual ou de uma dada vontade
individual (ou do que diz a consciência)?
Pergunto:
tem sentido o país parar e ficar em suspenso esperando que um ministro
desempate uma votação e não sabermos o que ele irá dizer? Suspense!
Pergunto:
que Direito é esse que não nos fornece o mínimo de previsibilidade? Quer dizer que,
se estivéssemos discutindo o aborto e o placar estivesse em 5x5, teríamos que
ficar torcendo — dependendo de que lado estivéssemos — pelas crenças pessoais
de sua excelência? Ou torcer para que seu almoço ou seu dia tenham sido do seu
agrado? Torcer pela bondade dos bons?
Demo-cracia
é isto? Mas, então, o que é isto, a democracia?
PS:
se me perguntarem o que é isto, a dogmática jurídica dominante, respondo, em
uma linha: é a soma de todos os nossos medos!
Felicidades.
E boa sorte. De novo!
Lenio Luiz Streck
é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
Revista
Consultor Jurídico, 26 de setembro de 2013
Redução Da Maioridade Penal
Gustavo Bregalda[1]
Particularidade própria de
países compostos de instituições em fase de
desenvolvimento é a discussão
de temas que em tempos de normalidade social ficam
esquecidos. Esses temas acabam
eclodindo com determinados acontecimentos que
atingem fulminantemente o
senso comum e exigem do Estado justificativas e respostas
imediatas. Assim, é objeto de
diversos debates a redução da maioridade penal como
solução para a epidemia de
práticas criminosas envolvendo menores.
Os defensores da tese em
questão apresentam fundamentos que, por mais que
acalentem a animosidade social
com discursos politicamente corretos, se apresentam
ineficazes. Não se pode partir
da análise da conseqüência antes de passar pela gênese do
problema. Deve-se apresentar
uma solução para a origem da questão e, posteriormente,
criar soluções para os atos
subseqüentes.
A redução da maioridade não é
a resposta adequada para a onda de violência
crescente que assola os
grandes centros nacionais. A ineficácia da solução apresentada
pode ser visualizada por meio
do estudo de algumas legislações alienígenas, cuja
maioridade varia de acordo com
os valores sociais adotados. No contexto social, verificase
que a redução da maioridade
não seria uma saída consistente para os fins a que essa
proposição é destinada. A
violência não se aquietará, mesmo se a maioridade fosse fixada
no limite inicial da
existência humana. A posição pela redução alicerça-se mais em um
viés político do que,
necessariamente, na resolução do problema social de criminalidade.
A diminuição da violência na
sociedade não ocorrerá com a simples redução da
maioridade penal. É necessário
que haja o fortalecimento de instituições fundamentais à
implementação do mínimo
existencial garantido constitucionalmente ao cidadão. A
Constituição Federal (CF) de
1988 confere ao Estado, por intermédio de normas
programáticas, o dever de
implementar direitos por ela estabelecidos, materializando-se
por meio de atos de gestão
administrativa e elaboração de normas infraconstitucionais
como meio regulador de seu
exercício.
A violência, dentre outros
motivos, está ligada à pobreza, à miséria cultural e ao
enfraquecimento do Estado
Democrático de Direito. Sabe-se de antemão que a maioria
dos internos de instituições
que visam à reeducação de menores é habitante de regiões
marginalizadas socialmente e
de alta periculosidade criminosa. Regiões essas que
ultrapassam os limites
temporais da história.
A redução da maioridade penal
em nada vai modificar a nossa realidade atual.
Sabemos que o sistema
prisional não vem contribuindo muito para a ressocialização do
criminoso adulto, tendo,
muitas vezes, efeito contrário a esse intento. Ao adolescente, os
efeitos serão ainda mais
danosos, uma vez que ele não possui o mesmo poder de
discernimento de um adulto,
por se constituir pessoa em formação, em estágio de
desenvolvimento físico e
mental.
Para tanto, faz-se necessária
uma boa aplicação dos institutos e das leis já existentes,
como o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA). Vale esclarecer, ainda, que são
indispensáveis a promoção e a
efetivação dos direitos fundamentais e sociais previstos na
Constituição, fortalecendo-se,
assim, o Estado Democrático de Direito, e também garantir
o mínimo existencial ao
cidadão. Isso pode ser feito por meio de políticas públicas,
conseguindo-se, desse modo,
atingir o desígnio, esperado pelos cidadãos, de habitar uma
sociedade mais justa e,
conseqüentemente, menos violenta.
Dessa forma, não basta a
simples redução da maioridade como o remédio de todos os
males. Deve haver sim uma
influência positiva na formação cultural de cada cidadão, em
especial dos marginalizados,
promovendo o seu desenvolvimento e a sua integração
social.
A imputação criminosa ao
adolescente não é a melhor saída para que se promova o
recuo dos números da violência
em nosso País. Além de ineficaz aos fins a que se propõe,
pode ser vislumbrada a
inconstitucionalidade do ato legislativo o qual traga em seu bojo
esse específico conteúdo de
redução.
Ninguém nasce criminoso. O
meio amolda seus integrantes de acordo com as
circunstâncias de vida que
lhes são proporcionadas. Essas circunstâncias, no entanto, não
compõem motivo legítimo para
justificar práticas delituosas, mas também não podemos
olvidar o fato de que a maior
parte dos adolescentes que têm ou já tiveram passagens
criminosas é a mesma que ocupa
os quadros da indigência, da injustiça social.
Ao Estado, foi imposto o dever
de zelar pelo cidadão, em especial por intermédio das
políticas públicas, geralmente
elencadas nas inúmeras normas programáticas transcritas
no corpo da Constituição, cuja
efetividade está pendente da edição de atos
infraconstitucionais, e também
da gestão administrativa. Todas essas normas e deveres
previstos no diploma
constitucional têm por escopo impor ao Estado o dever de
materialização do conteúdo do
princípio da dignidade da pessoa humana, sendo esse
fundamento da nossa República
(art. 1.º, III, da CF).
O valor implícito do princípio
da dignidade da pessoa humana consiste na imposição
ao Estado do dever de
abstenção (não violar ou restringir injustificadamente direitos
fundamentais) e do dever de
práticas positivas (complementação das normas
programáticas de modo a garantir
o mínimo existencial).
Tem-se, de longa data, a
omissão do Estado no que se refere à prática de atos de
viabilização das normas
constitucionais garantidoras de direitos fundamentais. Grande
parte da população é excluída
do digno convívio social, criando, assim, o desnivelamento
de classes e ferindo, por via
conseqüencial, o objetivo estampado no art. 3.º, III, da CF.
Diante desse quadro, surgiu,
na camada marginalizada da população, um núcleo de
violência que atinge toda a
coletividade. Esse fenômeno é a reação promovida pelos
esquecidos perante o desprezo
a eles manifestado pelo Estado.
Com efeito, a redução da
maioridade penal, em contraponto com a Constituição
Brasileira, configura uma
restrição ao direito fundamental da liberdade, previsto no art.
5.º da Lei Suprema. Cumpre
ressaltar, também, que é direito fundamental do cidadão,
além de todos aqueles
arrolados no art. 5.º da CF, outros decorrentes de princípios e
regras por ela adotados.
O Prof. René Ariel Dotti
manifesta-se pela inconstitucionalidade da redução da
maioridade, uma vez que, para
ele, a previsão da inimputabilidade prevista na CF
constitui uma das garantias
fundamentais da pessoa humana, embora topograficamente
não esteja incluída no
respectivo Título II do diploma constitucional. Incabível, portanto,
ser objeto de emenda, pois
constitui cláusula pétrea, visto que o § 4.º do art. 60 prescreve
não ser objeto de deliberação
a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e as
garantias individuais.
Nesse sentido, ensina-nos o
Prof. Damásio de Jesus que a menoridade penal constitui
causa de exclusão da
imputabilidade, estando abrangida pela expressão “desenvolvimento
mental incompleto”. Assevera
ainda que “[...] se a imputabilidade consiste na capacidade
de entender e de querer, pode
estar ausente porque o indivíduo, por questão de idade, não
alcançou determinado grau de
desenvolvimento físico ou psíquico, ou porque existe em
concreto uma circunstância que
a exclui”.
Para alguns doutrinadores, em
que pese a existência de texto expresso de nossa
Constituição referente à
maioridade penal, esse fato não impede, caso haja vontade
política para tanto, de ser
levada a efeito tal redução, uma vez que o art. 228 da Carta
Política não trata de matéria
considerada irreformável por meio de Emenda
Constitucional, pois não se
amoldaria ao rol de cláusulas pétreas dispostas nos incs. I a
IV do § 4.º do art. 60 da CF.
Ocorre, no entanto, que o rol
de direitos e garantias individuais previstos, em
especial, no art. 5.º da CF,
e, conseqüentemente, abrangido como cláusula pétrea pelo art.
60, § 4.º, é meramente
exemplificativo. Qualquer ato antagônico ao princípio da
dignidade da pessoa humana
consiste na violação a um direito fundamental, esteja ele
topograficamente descrito ou
não no art. 5.º ou mesmo na própria Constituição do Brasil.
José Afonso da Silva trata a
dignidade da pessoa humana como o valor supremo que atrai
o conteúdo de todos os
Direitos Fundamentais do Homem.
O recuo nos números da
criminalidade envolvendo menores infratores, seja nos
grandes centros, seja no
interior do Brasil, ocorrerá com a eficaz implantação das
políticas que promovam a
valorização do indivíduo como um verdadeiro cidadão. A
redução da maioridade em nada
influenciará no sistema com o qual nos deparamos
hodiernamente. Pelo contrário,
pessoas em desenvolvimento psíquico terão o mesmo
tratamento penitenciário
dispensado àqueles com capacidade de discernimento pleno e
com personalidade já maculada,
proporcionando certa confusão de valores e gerando um
círculo vicioso de erros e
conseqüências futuras. É notório que o sistema penitenciário
brasileiro tem um baixo índice
de ressocialização. Verifica-se que, caso seja adotada a
aludida medida, teremos um
verdadeiro retrocesso em relação aos direitos e às garantias
conferidos ao menor pela
Constituição, destacando-se, dentre eles, o art. 227, o que
produzirá um específico grau
de invalidade da norma perante o sistema constitucional.
A solução das mazelas sociais
e, em especial, dos atos criminosos praticados por
menores de 18 anos envolve um
conjunto de atos efetivos de alçada, simultaneamente, do
poder público e da sociedade
em geral. A precipitação e a discussão infundada,
enfatizada por argumentos
desarrazoados, podem desestruturar ainda mais a sociedade. A
redução da maioridade penal
pode consistir em um verdadeiro retrocesso na política
penitenciária brasileira. Ao
menor, cabe a aplicação do ECA, que prevê regras
específicas, proporcionais e
adequadas à reeducação de pessoas em estágio de
desenvolvimento mental
personalíssimo incompleto.
[1] Juiz Federal em São Paulo
e Professor no Complexo Jurídico Damásio de Jesus.
Acesso em: 23 de agosto de 2007
Senso
Incomum
Juiz não é gestor nem gerente. Ele deve
julgar. E bem!
Um
pouco de história
Como pensávamos antes de 1988? O que mudou no imaginário dos juristas desde então? Esta é uma pergunta que os alunos costumam fazer. Veja-se que, por exemplo, promulgada a nova Constituição em 1988, a composição do Supremo Tribunal Federal continuou a mesma. Repetimos o que já havíamos feito na Constituição de 1824, recepcionando os conselheiros da Casa de Suplicação. E repetimos o que fizemos em 1891, quando, já na República, sob a égide da nova Constituição constituímos o Supremo Tribunal com os antigos conselheiros do velho Superior Tribunal de Justiça. Com isso, tornaram-se ministros do STF republicano dois “nobres”, com título e tudo.
Como pensávamos antes de 1988? O que mudou no imaginário dos juristas desde então? Esta é uma pergunta que os alunos costumam fazer. Veja-se que, por exemplo, promulgada a nova Constituição em 1988, a composição do Supremo Tribunal Federal continuou a mesma. Repetimos o que já havíamos feito na Constituição de 1824, recepcionando os conselheiros da Casa de Suplicação. E repetimos o que fizemos em 1891, quando, já na República, sob a égide da nova Constituição constituímos o Supremo Tribunal com os antigos conselheiros do velho Superior Tribunal de Justiça. Com isso, tornaram-se ministros do STF republicano dois “nobres”, com título e tudo.
Na
verdade, nunca tivemos grandes rupturas. Acostumamo-nos a ver o novo com os
olhos do velho. Imaginemos os velhos conselheiros, novéis ministros do STF da
República, julgando inconstitucionalidades, coisa que não existia no Império.
Pouco pode nos surpreender, quando falamos em “questões paradigmáticas”.
Antes
da CF 88, a não democracia. A ditadura. O regime autoritário. A luta do jurista
crítico era contra essa estrutura jurídica “que aí estava”. Se ele não fosse
para a política (ou para outro tipo de luta), tinha que lutar dentro da
institucionalidade. Ou seja, nas brechas da institucionalidade, o jurista “de
oposição” (não partidária, mas de oposição ao autoritarismo) tinha que se
desdobrar para levar adiante e ter êxito nos seus pleitos (habeas corpus,
mandados de segurança etc.). Correntes críticas de várias tendências se
formaram. O realismo jurídico deu azo às posturas ditas alternativas. Um certo
marxismo concebeu o “direito achado na rua”. As correntes linguísticas buscavam
nas brechas do texto legal, repleto de vaguezas e ambiguidades, o direito de
seus clientes. Outras posturas, sem maior filiação epistêmica, faziam do
axiologismo um modo de ultrapassar as barreiras ônticas da estrutura
autoritária do sistema implantado pelo regime militar. Veja-se, por exemplo, a
importância (até) de um positivista-axiologista como Recasens Siches, para
mostrar as insuficiências do positivismo formal(ista). No fundo, qualquer um
que se colocasse contra o formalismo legal era considerado aliado, desde que,
teleologicamente, suas posições fossem contra o establishment.
E
chegamos à democracia
E assim conquistou-se a democracia. E construímos a Constituição, que albergou a expressiva maioria de nossos pleitos. Na dúvida, emplacamos tudo no texto da Constituição. Afinal, se nem a lei se respeitava, quem sabe o novo regime pós/88 respeitaria o texto da Constituição? Veja-se que, já então, apostava-se em uma nova textualidade. Claro que não uma textualidade exegética, e, sim, uma nova, daquelas que fizeram com que, na Europa, os juristas progressistas que se forjaram no direito pós-bélico (pós 1945) passassem a apostar em um certo objetivismo do texto constitucional, aquilo que Elias Diaz chamará, depois, de “legalidade constitucional”.
E assim conquistou-se a democracia. E construímos a Constituição, que albergou a expressiva maioria de nossos pleitos. Na dúvida, emplacamos tudo no texto da Constituição. Afinal, se nem a lei se respeitava, quem sabe o novo regime pós/88 respeitaria o texto da Constituição? Veja-se que, já então, apostava-se em uma nova textualidade. Claro que não uma textualidade exegética, e, sim, uma nova, daquelas que fizeram com que, na Europa, os juristas progressistas que se forjaram no direito pós-bélico (pós 1945) passassem a apostar em um certo objetivismo do texto constitucional, aquilo que Elias Diaz chamará, depois, de “legalidade constitucional”.
Passados
25 anos, como estamos? Continuamos com o velho Código Penal, que tantas vítimas
já fez e vem fazendo. Sim, esse mesmo CP que privilegia a propriedade em
detrimento da vida e que pune com mais rigor os crimes interindividuais do que
os crimes metaindividuais. O velho CPC, que sempre apostou no protagonismo
judicial (ah, o dano causado pelo instrumentalismo processual!), depois de todo
o estrago já causado, agora será substituído por um novo código, repristinando
os velhos defeitos, com a agravante de querer a duras penas “commonlizar” nosso
sistema — tido ainda como da família romano-germânica. O novo texto não
conseguiu se livrar, por exemplo, do livre convencimento e dos embargos
declaratórios, só para falar desses dois sintomas do “problema paradigmático”
que aflige nosso direito. Já o velho Código de Processo Penal não tem jeito
mesmo. Nos últimos tempos, a grande inovação (positiva) não vem sendo cumprida
pelo Judiciário. Ou seja, o artigo 212, ao institucionalizar o sistema
acusatório, acabou letra morta, com os juízes continuando a produzir prova,
como no tempo de Abrantes. O projeto do novo CPP? Repete os mesmo erros do
velho, como se o tempo não tivesse passado... Nem vou falar do Código Civil,
paraíso das cláusulas abertas, espaço privilegiado da discricionariedade. Nem
vou falar do Código do Consumidor, que “colocou” o call center dentro do
Poder Judiciário (palavras do ministro Luis Salomão, do STJ). E o Direito
Tributário? Virou o paraíso das invenções hermenêuticas. Tem até “ponderação de
regras”, postulados, “normas-regras” (o que seria isso?), para dizer o mínimo.
A
ressaca teorética
Isso tudo porque, promulgada a Constituição, passamos por uma ressaca. Ainda inseridos no antigo imaginário (formalismo versus “qualquer postura apta a derrotar esse inimigo comum), demoramos a perceber a necessidade de uma (nova) teoria das fontes, uma (nova) teoria da norma, uma nova teoria que desse conta da interpretação da Constituição e, finalmente, uma teoria da decisão, para impedir que, nesse novo patamar, passássemos a decidir de qualquer modo, ainda com o olho nos velhos dilemas.
Isso tudo porque, promulgada a Constituição, passamos por uma ressaca. Ainda inseridos no antigo imaginário (formalismo versus “qualquer postura apta a derrotar esse inimigo comum), demoramos a perceber a necessidade de uma (nova) teoria das fontes, uma (nova) teoria da norma, uma nova teoria que desse conta da interpretação da Constituição e, finalmente, uma teoria da decisão, para impedir que, nesse novo patamar, passássemos a decidir de qualquer modo, ainda com o olho nos velhos dilemas.
Nesse
contexto, importamos, de forma equivocada (porque descontextualizada), a
jurisprudência dos valores, a teoria da argumentação jurídica (cuja vulgata
possibilitou o uso indiscriminado da ponderação, essa doença contemporânea da
interpretação) e o ativismo judicial de origem norte-americana (como se os
ativismos de lá fossem “sentimentos constitucionais” e não meramente
contingenciais em face das composições da US Supreme Court).
Resultado
disso: uma aplicação do direito fragmentada, dando vazão aos “sentimentos
pessoais” de cada julgador. No STF, não é difícil perceber isso, a partir da
tese, repetida ad nauseam, de que “o juiz primeiro decide e depois busca
o fundamento” ou que “a interpretação da lei é um ato de vontade”, como se isso
fosse uma novidade e não fosse algo dito por Kelsen em contexto totalmente
diferente (com efeitos colaterais desastrosos!).
Claro
que o establishment deu uma resposta darwiniana a esse estado de
natureza interpretativo, em que uma portaria ainda vale mais do que a
Constituição e em que não é difícil ver decisões que, em um dia, negam a
insignificância em R$ 80 e, dias depois, a deferem em valores superiores a R$ 1
mil. E qual foi ou tem sido a resposta? Súmulas vinculantes, repercussão geral,
recursos repetitivos, “commonlização” do sistema e criação sistemática de
mecanismos conhecidos como “jurisprudência defensiva”, como alertado
recentemente por José Miguel Garcia Medina aqui mesmo na ConJur (clique aqui para ler), para evitar que a malta leve seus
pleitos aos Tribunais Superiores.
A
crise da Justiça é questão de “gestão”? Não! Juiz não é gestor!
Esse terreno é fértil para o surgimento de soluções no plano das neoteorias jurídicas, como por exemplo, apostar na “indústria” das efetividades quantitativas. Tudo para que se julgue teses e não mais causas. Tudo para que se julgue por atacado. Eis o campo para o florescimento das teorias da “gestão”. Solução mágica que “vende muito por aí”. Sim, a solução é a gestão dos processos. Há problemas na aplicação do Direito? Bingo: venha estudar gestão em pós-graduação. Tem agora até MBA. “Juiz deve ser gestor”, como tenho lido em muitos textos e folders propagandeando novos cursos de especialização e mestrados profissionalizantes.
Esse terreno é fértil para o surgimento de soluções no plano das neoteorias jurídicas, como por exemplo, apostar na “indústria” das efetividades quantitativas. Tudo para que se julgue teses e não mais causas. Tudo para que se julgue por atacado. Eis o campo para o florescimento das teorias da “gestão”. Solução mágica que “vende muito por aí”. Sim, a solução é a gestão dos processos. Há problemas na aplicação do Direito? Bingo: venha estudar gestão em pós-graduação. Tem agora até MBA. “Juiz deve ser gestor”, como tenho lido em muitos textos e folders propagandeando novos cursos de especialização e mestrados profissionalizantes.
Nesse
sentido, li na Folha de S.Paulo do último dia 3 de agosto, que juízes
devem investir em gestão para agilizar processos. O ilustre professor Pablo
Cerdeira, da FGV, considera que a saída para o problema da morosidade da Justiça
é os juízes aprenderem “gestão”. Como ninguém tinha pensado nisso antes? Para
que estudar Teoria do Direito, saber jurisdição constitucional, a diferença
entre regras e princípios, se a saída está em saber gerenciar os processos?
Claro que as neoteorias que apostam na gestão não se restringem à “questão da
agilização”. Na verdade, a onda é colocar a gestão para além disso, ou seja, a
aposta na gestão vem assumindo um caráter substancial. E nisso mora o perigo. O
meio se transforma em fim...
E
isso “pega”. O CNJ gosta dessas coisas. E estipula metas. Tudo vira
estatística. Ouvi falar que um juiz estadual precisa preencher todo mês nada
menos que 13 relatórios! E os cursos de pós-graduação em gestão aproveitam para
vender seu peixe. Ao invés de estudar Konrad Hesse e Gadamer, estudemos formas
de fazer o processo ir de estagiário a estagiário, passando por um
gerenciamento por temas. E como já há decisões padronizadas, basta que se
gerencie esse modelo aplicativo. Por exemplo, como diz o professor Cerdeira, protagonista
da matéria, na medida em que o TJ do Amazonas não alcançou as metas do CNJ,
isso foi assim porque não adotou processos integralmente digitais. Pronto. Eis
a solução para o Amazonas. E para todo o Brasil. Somando processos totalmente
digitais com gestão, teremos o nirvana processual. Nas Faculdades, nem
precisaremos mais estudar processos civil ou penal. Direitos fundamentais, nem
falar... O lema é: “Não precisamos mais de um bom juiz: precisamos de um bom
gestor”. Promotor de Justiça, defensor, procurador? Para quê? Basta um bom
“juiz gestor”! E se ele tiver pós-graduação em gestão, melhor ainda. Estará
treinado.
O
que quero dizer é que não estou dispensando ou menosprezando a importância de
que alguém faça uma otimização dos modos como se distribuem tarefas em um
determinado gabinete. Ninguém pode trabalhar de forma desorganizada. Não sou
ingênuo para não reconhecer a utilidade das novas tecnologias. Mas colocar
esses instrumentos como um fim é, exatamente, deslocar a discussão da qualidade
para a quantidade.
De
há muito perdemos o sentido do que seja “uma decisão jurídica adequada”. E já
vejo dissertações de mestrado e até teses de doutorado encantadas com esse
deslocamento. No fundo, mal sabem os adeptos dessas neoteorias que esses
modelos são meramente procedimentais. Kelsen era melhor que eles. A ele não
importava a qualidade da decisões. Aliás, para ele juízes não faziam ciência.
Faziam política jurídica. Então, para Kelsen — que ninguém mais estuda, porque
o melhor é, pós-modernamente (sem que saiba o que é essa palavra), estudar
coisas como “gestão” — não importa o acerto ou o erro ou o “justo ou o
injusto”.[1] Cada juiz, em
Kelsen, produz uma norma individual. Que vale, porque ele está autorizado para
isso. E se o sistema não corrigir, vale até mesmo a sentença mais absurda. Qual
é a diferença dessa cisão kelseniana (entre direito e ciência do direito) com a
total procedimentalização das decisões judiciais?
Aliás,
essa questão da ênfase na gestão assume ares de dramaticidade, se colocarmos a
discussão face aos recentes problemas do Exame de Ordem da OAB. Pergunto: Como
ficaria a tese da gestão aplicada à falta de qualidade das questões do Exame de
Ordem? Ou a tese da gestão não se aplica ao “sistema” de elaboração das
perguntas feitas à malta que quer ser advogado? Pergunto isso porque a mesma
instituição que aplica o Exame de Ordem é a instituição que mais aposta na
“questão da gestão”, como se pode ver na matéria assinada pelo professor
Cerdeira.
Fico
pensando na Medicina. O aluno, em vez de fazer uma tese sobre as complexidades
de uma operação cardíaca, é instado pelo seu professor-orientador a fazer uma
coisa mais gerencial, ou seja, escrever sobre o bisturi e sua eficácia (ou
sobre a entrada e saída de pacientes da UTI). Capítulo primeiro, a história do
aço; capítulo segundo, a sua invenção; capítulo terceiro, sua função; capítulo
final (conclusão genial): “sem bisturi não dá para operar”. Bingo!
A
crise do (e no) Direito decorre de falta de gestão ou falta de reflexão?
Em conversas com magistrados por todo o Brasil, os mais atentos já perceberam que esse discurso de juiz gestor é para anestesiá-los, para desfocar o real problema: a concentração de recursos nas cúpulas e o abandono, em especial, da Justiça de primeira instância. Na verdade, a Reforma do Judiciário só ajeitou o reboco do edifício. Não mexeu nas estruturas. E sem essa mexida não haverá resultados significativos. Transformar o juiz em gerente de entreposto judiciário, sem enfrentar a questão hermenêutica, é engodo. Serve para o exercício da vontade de poder das cúpulas e em benefício do estamento sempre próximo.
Em conversas com magistrados por todo o Brasil, os mais atentos já perceberam que esse discurso de juiz gestor é para anestesiá-los, para desfocar o real problema: a concentração de recursos nas cúpulas e o abandono, em especial, da Justiça de primeira instância. Na verdade, a Reforma do Judiciário só ajeitou o reboco do edifício. Não mexeu nas estruturas. E sem essa mexida não haverá resultados significativos. Transformar o juiz em gerente de entreposto judiciário, sem enfrentar a questão hermenêutica, é engodo. Serve para o exercício da vontade de poder das cúpulas e em benefício do estamento sempre próximo.
Não
sei se tenho paciência para continuar a discutir “coisas republicanas”.
Sinceramente, não sei. A cada semana, novas denúncias de uso de aviões,
passagens etc. Até o vice-presidente da Câmara usa jatinhos do Projeto Bolsa
FAB. E a desculpa: tem uma instrução normativa que autoriza (veja-se o modo
como são usadas e criadas “cotas de passagens aéreas” para ministros do STJ).
Ah, bom. Basta uma portaria ou uma resolução. Bingo! Feita por quem? E não há
teoria das fontes? Não há controle de legalidade-constitucionalidade? Ainda é
possível dizer que uma “norma” é legal, mas imoral? Para que serve o princípio
da moralidade? Estamos, por acaso, na era em que direito e moral estão
cindidos? Basta estar na lei que está “legal”? Então não serviu para nada a
virada copernicana ocorrida no Direito após o segundo pós-guerra? Veja-se,
pois, do que precisam saber nossos juízes e promotores... Estudar os grandes
conceitos do direito. É disso que precisamos.
Claro:
para que estudar isso? Parece que, segundo as neoteorias, melhor do que estudar
a boa doutrina e aprofundar-se na reflexão jurídica é estudar a informática no
Direito, novas formas de gerenciamento de processos, novas estatísticas e criar
mecanismos para impedir a subida de recursos. É isso. Tudo se transforma em
números: tenho um pé nas brasas e outro no gelo — na média, temperatura
ideal... Por sinal, o brilhante Otavio Luiz Rodrigues Junior, na sua Coluna do
dia 7 de agosto (clique aqui para ler), faz uma adequada crítica a uma
espécie de neoteoria que está se proliferando no país, que ele chama de “onda
da empiria”, isto é, feita por aqueles que pensam que só se pode falar do e
sobre o Direito a partir de dados empírico-jurisprudenciais. No fundo, trata-se
de um “gerenciamento de dados”, aproximando as teorias que apostam na gestão com
aquilo que é o seu instrumento: dados numérico-estatísticos. Em meu novo Jurisdição
Constitucional e Decisão Juridica (RT, 2013, páginas 290-295), mostro como
determinada pesquisa sobre os julgamentos do STF pode ser lida inversamente, ou
seja, com os mesmos números provo o contrário do que a autora queria
demonstrar. Esse problema também invade a ciência política, que, em muitos
casos, vem adotando a tática de check list para tentar demonstrar
determinadas teses (ou projeções).
Da
série “há algo mais nos céus do que os aviões de carreira”, poderia perguntar
se seria um problema de “gestão” ou “falta de gestão” a fragilidade com que
foram aplicadas, no julgamento da Ação Penal 470, teses como do domínio do fato
ou “o princípio da livre apreciação da prova”? Afinal, a crise do Direito é de
que ordem?
Quando
um banqueiro — que dá um “cano” de mais de R$ 3 bilhões — viaja para o
exterior, com autorização judicial e vai esquiar estroinando da malta, isso é
um problema de gestão ou um problema de decisão (ou decisão equivocada)? Juiz
deve aprender a gerenciar processos ou a julgá-los de acordo com o direito? Eis
a questão! Ainda: os mais de 8 mil homicídios por ano que não são sequer
investigados são um problema de gestão ou um problema de falta de estrutura,
desvirtuamento de função e incompetência individual? A humilhação daquele
estagiário e o consequente arquivamento do feito é um problema de gestão?
Esse
é o nosso país. Não estou, por óbvio, colocando “a culpa” da crise do e no
Direito em quem aposta na “gestão”. É claro que não. O que quero dizer é que
não devemos crer que, no meio de um grande tiroteio que é a crise da
operacionalidade do Direito, apareça alguém com uma solução de caráter
procedimental e queira “acabar com a discussão”. Se gestão resolvesse, a prova
da Ordem não seria desse nível. Então, por favor, não me tirem de bobo com
soluções mágicas. Perguntemos por aí como anda a operacionalidade do Direito...
O
que temos de fazer é estudar. Mudar os cursos jurídicos. Parar de ensinar
conceito prêt-à-porter, prêt-à-penser, prêt-à-parler.
Chega de simplificar livros. Paremos com a ficção. O maior exemplo do fracasso
disso tudo em terrae brasilis é o último exame de Ordem, em que, em um
exemplo de furto, apareceu um comprador, paraguaio, terceiro de boa-fé (sic)
e, em uma perseguição ininterrupta, a ladra teve tempo para esconder o carro
cleptado, indo depois até a fronteira do Paraguai, para vender o carro... Nada
mais precisa ser dito depois disso.
A
crise em três dimensões
Uma palavra final: há muito tempo, li um texto do Diogo Figueiredo Moreira Neto, em que ele mostrava que uma crise deve ser analisada sob três âmbitos: estrutural, funcional e individual. Vamos trazer isso para o caos do trânsito. Não adianta construir rodovias ou abrir novas ruas, se não cuidarmos da função, isto é, semáforos inteligentes, passarelas, túneis etc; mas também não adianta tratarmos da estrutura e da função, se tivermos péssimos motoristas...
Uma palavra final: há muito tempo, li um texto do Diogo Figueiredo Moreira Neto, em que ele mostrava que uma crise deve ser analisada sob três âmbitos: estrutural, funcional e individual. Vamos trazer isso para o caos do trânsito. Não adianta construir rodovias ou abrir novas ruas, se não cuidarmos da função, isto é, semáforos inteligentes, passarelas, túneis etc; mas também não adianta tratarmos da estrutura e da função, se tivermos péssimos motoristas...
Isto
é: não adianta abrir novos tribunais, contratar milhares de estagiários, novos
computadores, se não tratarmos do problema da funcionalidade do processo. Mas,
por favor, de nada adianta arrumarmos a estrutura e a função, se não tivermos
bons “operadores” desse sistema. E isso, lamento dizer àqueles que apostam em
“formulismos”, depende da ciência jurídica. Depende de um bom ensino jurídico.
De bons concursos. De provas do exame da Ordem sem pegadinhas. Depende, pois,
da reflexão. Depende da Teoria do Direito, da Constituição, do Processo... E
não de “gestão”. Vamos parar com esse neodiscurso “eficientista”. Vejam até
onde ele está nos levando. Juiz não é gerente. Juiz é julgador! Tem de aprender
a decidir. E bem. Quem faz mapa é cartógrafo. Quem faz estatística é matemático
(ou algo do gênero). Juiz tem de saber processo. Teoria. Tem de saber o que é
isto: o Direito. É isso!
[1] Na verdade, para que
estudar Kelsen, se ele era um positivista exegético, não? É o que se ensina por
aí. Diz-se que Kelsen era um positivista porque ele queria que o direito fosse
aplicado de forma pura... Não é de rir?
Lenio Luiz Streck
é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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Revista
Consultor Jurídico, 8 de agosto de 2013
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