Gandhi, em nome da paz
Há mais de 60 anos, a Índia se libertou do domínio
inglês graças à luta de um homem que nunca aceitou a injustiça - e
provou ao mundo que uma revolução podia ser feita sem armas
Eduardo Szklarz | 02/10/2012 15h14
Silêncio na sala de aula. Começa o ditado. "Uma das palavras era
chaleira, que eu escrevi errado. O professor tentou me avisar com a
ponta da bota, mas não entendi que ele estava me dizendo para colar a
palavra do colega ao lado. (...) O resultado foi que todos escreveram a
palavra corretamente, menos eu, considerado estúpido. O professor
procurou me alertar sobre minha estupidez, mas nunca consegui aprender a
arte de colar. Mais tarde, soube de outras falhas cometidas por esse
professor, mas minha admiração por ele nunca diminuiu."
Com essa pequena história, narrada por Gandhi em sua autobiografia,
talvez seja possível começar a entender quem ele era. Alguns dizem que
ele foi um político muito religioso, outros o vêem como um religioso
extremamente político. O mais provável é que tenha sido ambas as coisas:
para Gandhi, religião e política eram dois lados da mesma moeda.
Normalmente nos lembramos dele como o velhinho careca e seminu, tão
frágil quanto seus óculos redondos, que há 60 anos botou o Império
Britânico para correr sem precisar de fuzis ou canhões. Pouco se diz,
entretanto, sobre como Gandhi desenvolveu essa estratégia e a capacidade
de respeitar os outros, não importa o que fizessem (característica que
lhe valeu o título de Mahatma - "grande alma", em sânscrito).
Foi na África do Sul, onde viveu por mais de 20 anos, que Gandhi
percebeu que o mundo podia ser mudado com a resistência pacífica.
Depois, na Índia, tornou-se o principal líder do processo de
independência. Mas, como veremos, nem ele foi capaz unir um povo
dividido por disputas políticas e intolerância religiosa.
Para inglês ver
Mohandas Karamchand Gandhi nasceu em 2 de outubro de 1869 na cidade
indiana de Porbandar, filho de um político influente e de uma mulher
muito religiosa - que costumava jejuar dias seguidos, seguindo um ritual
hindu de purificação. Aos 13 anos, o jovem Mohandas se casou com
Kasturbai, da mesma idade. Aos 18, foi estudar Direito em Londres. No
início, se esforçou para ser um gentleman, pois achava que as roupas e
os costumes ingleses lhe trariam sucesso. Com o tempo, porém, voltou-se à
vida espiritual: passou a recitar de cor o Bhagavad Gita, um dos
principais textos hindus. Também leu a Bíblia, adotando como lema os
versos do Sermão da Montanha - aquele que diz: "Se vos esbofeteiam,
oferecei a outra face".
Em 1891, o advogado Gandhi voltou à Índia. Por causa da timidez em
falar em público, sua carreira não engrenava. Mesmo assim, foi convidado
para ajudar a defender uma firma de comércio indiana num processo na
África do Sul - assim como a Índia, uma colônia do Império Britânico.
Nem bem pisou o solo sul-africano, em 1893, Gandhi sentiu na pele a
discriminação contra "homens de cor". Durante uma viagem, foi jogado de
um trem por se recusar a sair da primeira classe, exclusiva para
brancos. Era um exemplo claro de que, mesmo que se vestisse como um
inglês e tivesse estudado em Londres, ele nunca poderia ser livre numa
colônia.
Após um ano na cidade de Pretória, o trabalho de Gandhi terminou. Mas
ele decidiu ficar e lutar pelos direitos de seus conterrâneos que
viviam na África do Sul - a maioria deles trabalhadores rurais. Em 1894,
por exemplo, Gandhi percorreu o país reunindo milhares de assinaturas
contra um projeto de lei que impedia os indianos pobres de votar. A
medida foi aprovada do mesmo jeito, mas a atitude virou manchete na
imprensa européia.
Em 1906, pai de quatro filhos, Gandhi fez um voto celibatário. O
objetivo era aumentar o autoconhecimento e se aproximar de Deus. No
mesmo ano, lançou a doutrina do satyagraha (ou "força da verdade").
Gandhi dizia que seu método exigia muita ação e coragem - contrariando
uma idéia comum, ele não pregava a "resistência passiva". O pilar
fundamental é a não-violência: protestar sempre, revidar nunca (muitas
vezes, isso significava apanhar quieto da polícia). A regra era se
recusar a seguir leis injustas, seguindo o princípio da "desobediência
civil".
O satyagraha estreou contra uma lei feita para controlar imigrantes,
que obrigava os indianos a se registrar com impressões digitais. Gandhi
reuniu seguidores num teatro e declarou: "Por meio da nossa dor, nós os
faremos perceber sua injustiça. Podem me torturar e até me matar. Terão
meu corpo, não minha obediência". Como o governo não revogou a lei,
Gandhi queimou seus registros e foi preso. Sempre que era levado a
julgamento, acusado de desafiar o domínio colonial, Gandhi dizia que era
isso mesmo que ele estava fazendo. Em vez de tentar escapar da prisão,
concordava que merecia a pena máxima. Mas, como suas prisões geravam
protesto, Gandhi costumava ser solto rapidamente.
O principal rival de Gandhi era o general Jan Christian Smuts,
administrador da África do Sul. Aos poucos, contudo, ele foi conquistado
pelo teimoso indiano. "Nunca o vi deixar-se contaminar pelo ódio. Seus
métodos me irritavam, mas reconheço que minha situação era difícil. Eu
tinha que aplicar uma lei que não contava com respaldo popular. Quando
foi embora da África do Sul, me deu sandálias que ele mesmo tinha feito.
Eu as devolvi: não me considerava merecedor de usar o mesmo calçado de
um homem tão grande", escreveu Smuts em 1939.
Volta para casa
Em 1914, Gandhi voltou à terra natal. Graças à repercussão de sua
atuação na África, logo se tornou um dos líderes do movimento pela
independência da Índia. Mas ele percebeu que não seria fácil convencer
os grupos religiosos do país a se unirem para lutar de modo pacífico.
Naquela época, os indianos estavam divididos em 300 milhões de hindus,
100 milhões de muçulmanos e 6 milhões de sikhs. Unidos pela revolta
contra os ingleses, eles tinham muitas diferenças entre si.
No início de 1919, Gandhi evocou a resistência não-violenta contra
leis que davam aos ingleses poderes ilimitados contra a oposição. O
movimento virou uma greve geral que paralisou o país, mas descambou para
a violência. Gandhi então interrompeu a ação e começou um período de
jejum para expiar sua culpa e se opor ao derramamento de sangue. No dia
13 de abril, tropas inglesas reprimiram a tiros uma multidão que
protestava pacificamente na cidade de Amritsar, matando cerca de 400
pessoas e ferindo 1100. Depois do massacre, Gandhi interrompeu a
cooperação com os britânicos. Começou mudando a própria imagem: raspou
totalmente o cabelo e nunca mais usou trajes que não fossem vestimentas
indianas tradicionais. Incitou o povo a fabricar suas roupas em casa e
parar de comprá-las da Inglaterra- ele mesmo dava o exemplo, fazendo
tecido com sua roca.
Os protestos arrancavam concessões dos britânicos, mas a
independência ainda parecia distante. Em 1930, Gandhi inovou: em vez de
fazer jejum, resolveu queimar algumas calorias numa marcha. Seguido por
milhares de indianos, caminhou quase 400 quilômetros rumo ao mar da
Arábia para fazer sal.
Aparentemente banal, o ato era uma violação do
monopólio britânico sobre a fabricação do produto. Indianos de todo o
país seguiram o exemplo, vendendo sal nas ruas. A repressão prendeu
desde políticos até pessoas comuns. Com as cadeias lotadas, o vice-rei
lorde Irwin, governante inglês da Índia, se dispôs a negociar. Em 1931,
foi quebrado o monopólio sobre o sal. Sinal de que a independência seria
questão de tempo.
Sonho partido
Enquanto dobrava os britânicos, Gandhi não conseguia conter os
radicais hindus e muçulmanos, que realizavam atentados terroristas.
Durante a Segunda Guerra, iniciada em 1939, a tensão cresceu. Gandhi
disse que a Índia só apoiaria a Inglaterra se, ao fim do conflito,
ganhasse a independência. Não houve acordo. O líder prosseguiu com seus
protestos e foi preso em 1942. Dois anos depois, com a rivalidade entre
hindus e muçulmanos beirando o caos, Gandhi começou a jejuar contra as
hostilidades. Com medo de que ele morresse, os grupos rivais se
acalmaram.
Gandhi voltou a comer, mas logo a violência recomeçou. Em maio,
sofrendo de malária, ele foi solto pelos ingleses. Tentou, então, fazer
com que os radicais hindus depusessem as armas. Fracassou. Por meio de
cartas, tentou convencer Mohammed Ali Jinnah, maior líder muçulmano da
Índia, a apoiar a criação de um só país após a independência. Mas ele
tinha outros planos: exigia a divisão do território e a criação de um
país islâmico, o Paquistão (ou "terra dos puros").
Após a Segunda Guerra, a Inglaterra estava frágil demais para manter
sua maior colônia. Em março de 1947, desembarcou na Índia Louis
Mountbatten, nomeado o último vice-rei. No dia 1º de abril, Gandhi se
reuniu com ele e propôs que a colônia virasse um país só. Mal sabia que
seu discípulo Jawaharlal Nehru, um dos líderes do Partido do Congresso,
já havia dito a Mountbatten que os hindus, assim como os muçulmanos,
preferiam a divisão.
Em 14 de agosto, o Paquistão declarou sua independência. À 0h do dia
seguinte, a Índia fez o mesmo. Nehru virou primeiro-ministro da Índia e
Jinnah assumiu o poder da nação vizinha. Gandhi nem foi aos festejos.
Tinha 78 anos e viu que era tempo de dedicar-se à vida religiosa. Em 30
de janeiro de 1948, por volta das 5 da tarde, quando chegava para rezar
num jardim de Nova Délhi, Gandhi foi morto a tiros por um extremista
hindu. Suas últimas palavras foram "He Ram" - "Oh, Deus" no dialeto
devanagari.
Gandhi foi logo transformado em mártir. Mas, recentemente, sua imagem
intocada se tornou alvo de críticas. Em um artigo na revista americana
Time, em 1998, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie citou o filme
Gandhi como exemplo da "santificação ocidental não-histórica" do
personagem: "Lá estava Gandhi, como guru, provendo esse produto da moda,
a sabedoria oriental. Gandhi como Cristo, morrendo para que os outros
pudessem viver". Segundo Rushdie, o culto ao líder parece insinuar que
sempre é possível ganhar a liberdade sendo mais ético que o opressor, o
que nem sempre ocorre. No fim da vida, o próprio Gandhi reconheceu que a
não-violência talvez não tivesse adiantado contra os nazistas.
Com a razão, contra a lei
Entenda o princípio da desobediência civil
Quando fazia seus protestos, Gandhi estava colocando em prática uma
idéia do século 19. A paternidade do conceito de desobediência civil é
atribuída ao pensador americano Henry D. Thoreau. Segundo ele, se uma
lei fosse "flagrantemente injusta", você poderia desobedecê-la. No
século 20, o filósofo americano John Rawls definiu a desobediência civil
como "um ato público, não-violento, contrário à lei e usualmente feito
para produzir uma mudança na lei ou em políticas de governo". Mas o que
isso significa? Em primeiro lugar, que a desobediência civil não
significa desprezo às leis em geral. "Você tem consciência de que está
desrespeitando uma lei porque deseja outra melhor. E, mesmo
desobedecendo essa lei, continua disposto a se expor às suas
conseqüências", diz o cientista político Cicero Araujo, da Universidade
de São Paulo. "Todo ato de desobediência civil também precisa ser
previamente avisado." Gandhi cumpria à risca essas condições:
declarava-se leal à Constituição inglesa, sempre avisava antes de cada
campanha e nunca resistia ao ser preso. Ao atuar abertamente, Gandhi
diferenciava suas manifestações de atos criminosos (quando um ladrão
rouba, ele faz isso escondido porque não pode justificar sua ação
publicamente). A desobediência civil só pode ser feita contra leis que
boa parte da sociedade ache injustas. Um bom exemplo foi a legislação
racista do sul dos Estados Unidos, combatida nos anos 50 e 60 pelo
pastor Martin Luther King - que agia da mesma forma que Gandhi e deixava
a polícia numa sinuca: como pode ser certo usar de violência para
reprimir manifestações pacíficas? "Civil vem da idéia de civilizado,
em contraponto ao armado", diz Araujo. Para quem quiser tentar, um
aviso: a desobediência civil só funciona em países que se comprometem
com o valor das leis - em ditaduras, ela não faz sentido.
Irmãos em luta
Separados, Índia e Paquistão se tornaram rivais
A maior derrota sofrida por Gandhi foi a divisão da Índia, em agosto
de 1947. Jawaharlal Nehru, um dos líderes do Partido do Congresso e
discípulo de Gandhi, passara muito tempo defendendo a unidade do país,
mas acabou temendo o que aconteceria com os hindus se o governo fosse
assumido pela minoria muçulmana. Já Mohammed Ali Jinnah, líder da Liga
Muçulmana, nunca abandonou a idéia de criar de um Estado islâmico
separado da Índia, o Paquistão. "Para ele, era legítimo o direito de
secessão das zonas em que a identidade muçulmana era majoritária", diz o
italiano Francesco D`Orazi Flavoni no livro Storia dell´India
("História da Índia", sem tradução no Brasil). Jinnah costumava dizer
que a Índia não era uma nação, e sim um subcontinente habitado por
nacionalidades, das quais as duas principais eram a muçulmana e a hindu.
A divisão prevaleceu, mas não houve uma separação cirúrgica. De
repente, milhões de pessoas estavam "do lado errado" e precisavam cruzar
centenas de quilômetros para chegar a seu novo país. Muitos nunca
chegaram. Segundo a pesquisadora indiana Sunil Khilnani, da Universidade
de Carleton, no Canadá, a divisão provocou o deslocamento de algo entre
12 milhões e 16 milhões de pessoas, além da morte de cerca de 1 milhão
em conflitos. As divergências entre os dois lados tampouco desapareceram
com a independência. Índia e Paquistão se enfrentariam em três guerras
(1947-1948 e 1965, pelo controle da Caxemira, e 1971, quando o Paquistão
Oriental se tornou Bangladesh) e desenvolveram armas nucleares.
Eduardo Szklarz | 02/10/2012 15h14
Saiba mais
Livro
Gandhi - Autobiografia, Mohandas K. Gandhi, Palas Athena, 2007
Traz relatos que vão da infância até os conflitos na Índia, passando por assuntos com vegetarianismo e vida conjugal.
DVD
Gandhi, Richard Attenborough, Inglaterra, 1982
Ganhador de oito Oscars, é uma boa introdução à vida do líder, apesar de exagerar na simpatia a ele.