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A derrota do socialismo contemporâneo e a questão democrática
Uma das grandes causas do fracasso do socialismo
contemporâneo - referimo-nos basicamente àquelas propostas construídas
ao longo do século XX, a partir da revolução russa de 1917 - foi o
declínio, que chegou em alguns casos à perda quase completa, de sua
popularidade nas sociedades em que realmente existiu.
Reconhecendo esta situação, M. Gorbatchev, o último reformador
do socialismo soviético, quando se iniciou a Perestroika sob sua
iniciativa, gostava de falar que era preciso, no caso da URSS, “reganhar
a alma” dos povos soviéticos para a causa, o programa e os valores do
socialismo [1].
Povos que haviam consentido os maiores sacrifícios e as maiores
perdas, humanas e materiais, e suportado inimagináveis tensões e
perigos, e os rigores de uma extrema repressão, estavam deixando de
confiar num sistema que, no passado, havia dado tantas provas de
vitalidade.
Este fenômeno, que se tornou muito evidente na URSS, e se
acirrou em virtude de fatores específicos (entre outros, aguda crise
econômica, rebeliões de caráter nacional contra o “centro” moscovita,
crise de confiança nas virtudes do socialismo entre as próprias elites
dirigentes), conduzindo à surpreendente desagregação da primeira pátria do socialismo internacional,
surgiu igualmente em outras sociedades socialistas, como as que
existiram na Europa Central, e subsiste, ameaçadoramente, em maior ou
menor escala, em Cuba e na China.
Por que o socialismo teria perdido a luta pela “alma” dos
povos, na curiosa e reveladora expressão de Gorbatchev? Sequer ele a
ganhara em algum momento? Em qualquer caso, como explicar a verdadeira
revolta popular contra o socialismo, este ingrediente explosivo que foi
responsável pela queda/derrubada do socialismo em várias sociedades e
que se constituiu num dos elementos centrais para explicar o declínio
da utopia socialista nos dias atuais?
A meu ver, uma das principais chaves para começar a responder
estas indagações é estudar de que maneira os partidos e as sociedades
socialistas trataram a questão democrática. Fracassou o
socialismo no tratamento desta questão crucial para a sociedade
contemporânea? Em caso de resposta positiva, qual o itinerário deste
fracasso? Seus fundamentos históricos, sociais e políticos? De que modo
será possível extrair daí referências para enfrentar, se houver chance,
os novos desafios e as novas possibilidades da aventura do socialismo
no século que ora se inicia?
O presente artigo chama a atenção para estas questões mas, até
por uma questão de espaço, não pretende esgotá-las, nem muito menos
abranger o conjunto da experiência socialista.
Propomos um recorte particular: numa perspectiva histórica,
colocar em evidência dois processos, considerados relevantes. Num
primeiro momento, considerar as tradições da social-democracia antes da I
Grande Guerra, e mais especificamente, as relações estabelecidas entre a
social-democracia e a questão democrática. Constituiu-se então um
padrão, um modelo, que muitos ainda hoje pensam ser uma base importante
para a construção de um projeto de socialismo democrático [2].
Em seguida, estudar o processo da revolução russa, considerada à
luz da experiência dos sovietes (conselhos), ou seja, de suas relações
com a questão democrática. No interior da experiência socialista do
século XX, a revolução russa e os sovietes constituíram o extremo oposto
da tradição social-democrata [3]. O modelo revolucionário em oposição ao modelo reformista.
Sei bem que estas experiências não esgotam, longe disso, a
reflexão sobre o socialismo contemporâneo. Houve tendências,
organizações políticas, revoltas e revoluções que, apesar de
compartilhando os ideais socialistas, não se identificaram, e mesmo se
opuseram, à social-democracia e ao socialismo realmente existente
na Rússia/URSS. Do estudo delas, sem dúvida, muito se poderá
beneficiar a formulação de alternativas socialistas para o próximo
século [4]. Entretanto, dada a inquestionável relevância das
experiências que vão ser consideradas, espero que as reflexões que se
seguem possam, de alguma forma, contribuir para a compreensão das
relações entre o socialismo do século XX e a questão democrática.
Socialismo e democracia no século XIX: as tradições social-democratas
Desde meados do século XIX, e mais precisamente, a
partir dos grandes movimentos sociais populares que, nos anos 40 deste
século, se desdobraram na Inglaterra, e que passaram à história como o movimento cartista, criou-se, progressivamente, uma associação entre socialismo e democracia [5].
No medo dos liberais, adeptos do voto censitário e do poder das
oligarquias, na violência policial, nos documentos e discursos das
direitas, democracia e socialismo eram perigos a serem evitados e,
sempre que fosse o caso, perseguidos.
Inversamente, entre os movimentos sociais populares, que
protestavam e lutavam contra a Ordem Liberal, as reivindicações
democráticas, a saber, a universalização do voto, a democratização das
instituições e do Estado, as liberdades sindicais e políticas, de um
lado, e, de outro, as políticas socializantes ou socialistas de
expropriação ou controle do Capital, tenderam a estabelecer laços de
crescente intimidade.
Os socialistas tornaram-se os campeões da democracia. E a
democracia transformou-se em bandeira central dos socialistas. Criou-se
inclusive a convicção, compartilhada por liberais (com medo) e por
socialistas (com esperança), de que a universalização do voto
conduziria, quase que automaticamente, os socialistas ao poder, já que,
pelo seu programa e seus valores, pretendiam representar os anseios e
reivindicações das grandes maiorias.
Não gratuitamente, a Internacional Socialista que se (re)fundou
em 1889, em Paris, em comemoração ao centenário da Revolução Francesa,
era também conhecida como Social-Democrata e os partidos que dela
participavam eram chamados, para além de denominações específicas, como
partidos social-democratas. Para muitos, pelo menos, parecia inquestionável a fusão harmoniosa entre socialismo e democracia.
Entretanto, havia elementos que perturbavam esta harmonia.
As críticas anarquistas denunciavam tendências centralistas e ditatoriais no marxismo dos social-democratas. Outros, como os conselhistas, apontavam tendências evidentes de oligarquização
no seio mesmo dos partidos social-democratas (predominância dos quadros
profissionais, enfraquecimento da capacidade de controle dos dirigentes
políticos pelas bases dos próprios partidos, mandatos prolongados ou
que se sucediam indefinidamente, imprensa partidária controlada de cima
para baixo, perda completa de autonomia das organizações
social-democratas em relação aos espaços institucionais existentes
etc.).
De fato, independentemente do valor que se atribua a estas críticas, alguns elementos centrais do credo
marxista social-democrata tinham uma dinâmica inegavelmente autoritária
como, por exemplo, entre muitas outras, a idéia da supremacia histórica
da classe operária, a do partido único da classe operária (título
reivindicado, em cada país, pelos partidos social-democratas), a crença,
sem reservas, no determinismo econômico, o relativo desprezo por tudo e
todos que fossem considerados atrasados ou não civilizados,
e sobretudo a perspectiva de transformar a política em ciência,
autodefinindo-se os social-democratas como únicos guardiões desta
ciência [6]. No mundo dos últimos anos do século XIX, dominado pelo mais
exacerbado cientificismo, pode-se imaginar as derivas autoritárias
contidas nestes postulados.
Por outro lado, e igualmente decisivo, o fato de os partidos social-democratas terem optado por organizações nacionais,
e investido grande parte de seus esforços políticos e organizativos no
interior de suas fronteiras nacionais, os fez, em grande medida, reféns
das problemáticas de ordem nacional.
A opção nacional foi, sob muitos aspectos, positiva para
o fortalecimento político dos partidos social-democratas [7].
Aproximou-os das sociedades respectivas que viviam uma conjuntura de
grande ascenso da questão nacional. Dificultou, no mesmo movimento, a contra-propaganda anti-socialista que procurava caracterizar o socialismo como antinacional e os socialistas como traidores da pátria,
em resumo, contribuiu decisivamente para que os social-democratas se
tornassem populares e passassem a ser, cada vez mais, bem votados para
as instituições que, então, se democratizavam, por pressão inclusive dos
socialistas.
Entretanto, a opção nacional também teve seus impactos
negativos. O maior deles, sem dúvida, foi o enfraquecimento dos valores e
ideais internacionalistas com a corrrespondente captura dos
social-democratas pela questão nacional, deixando-os à mercê das
influências autoritárias, nacionalistas e mesmo chovinistas que passaram
a predominar gradativamente no quadro da expansão dos grandes estados
capitalistas (Europa Ocidental, EUA e Japão) pelo mundo, sobretudo na
África (scramble for África) e na Ásia (break up of China) [8].
Assim, pouco antes da I Grande Guerra, eram ambíguas as
tradições social-democratas no que se refere à questão democrática. De
um lado, do ponto de vista programático, fusão harmoniosa entre
socialismo e democracia. De outro lado, tendências autoritárias
vicejando na organização interna partidária e na reconstrução do
pensamento de Marx (o marxismo da II Internacional). Finalmente, em
virtude da opção nacional, outras ambigüidades: dividendos políticos
extraordinários, aquisição de uma crescente legitimidade, e, ao mesmo
tempo, imersão em tendências chauvinistas e ditatoriais.
Heranças contraditórias, mas plurais, abertas a diferentes interpretações e caminhos.
As revoluções russas e os sovietes
Entre 1905 e 1921, ao contrário da legenda bolchevique,
houve muitas revoluções na Rússia. Outubro de 1917, sem dúvida, foi um
elo absolutamente crucial, mas é preciso acrescentar outros, sem os
quais o panorama de conjunto se torna incompreensível: o ano vermelho de
1905, fevereiro de 1917 e, finalmente, a revolução esquecida de
Kronstadt, em março de 1921 [9].
Do ponto de vista da questão democrática, a grande novidade
destas revoluções foi a emergência dos sovietes (conselhos), a sua
aparente consolidação, o papel decisivo desempenhado por eles e,
finalmente, de modo surpreendente, o seu rápido declínio e
desaparecimento enquanto órgãos ativos no exercício e no controle do
poder político.
Desde 1905, quando surgiram pela primeira vez, os conselhos
foram saudados como uma grande contribuição ao pensamento e à prática da
democracia.
De fato, apesar de reconhecidos positivamente, havia muitas
críticas às limitações dos parlamentos até então conhecidos nos grandes
Estados capitalistas. Certo, havia eleições periódicas, oportunidades
amplas para o debate e a propaganda políticas, partidos políticos
organizados em escala nacional, mandatos definidos, apoiados pelo
conceito da imunidade parlamentar, e uma importância crescente do
parlamento na fiscalização e na crítica das políticas governamentais e
na denúncia das eventuais exações dos Estados. Entretanto, os poderes
efetivos dos parlamentos, embora variassem muito, de país para país,
eram, em geral, relativamente diminuídos. Muitas vezes, intermináveis e
inúteis debates, sem nenhuma conseqüência prática, levaram alguns a
criticar o fenômeno do cretinismo parlamentar, espécie particular
de ilusão que acomete deputados e senadores que tendem a supervalorizar
o impacto e o papel histórico de suas palabras [10].
Alternativamente a este modelo, os sovietes inventados pelos
russos em 1905, e reinventados entre 1917 e 1921, quando deram seus
últimos suspiros, caracterizavam-se, entre muitas outras, pelas
seguintes inovações: não se organizavam na base de eleições periódicas,
não definindo, em conseqüência, e de modo geral, mandatos fixos;
tendiam a concentrar os poderes de formular leis e executá-las,
quebrando o conceito de separação de poderes (legislativo e executivo)
que se consolidava nos grandes Estados capitalistas; primavam pela
autonomia, em relação às instituições existentes, inclusive ao governo
central, e mesmo em relação aos partidos, revolucionários ou não; eram
restritos às camadas populares (operários, trabalhadores em geral,
soldados), embora os populares pudessem eleger, e o faziam freqüentemente, pessoas de origem social distinta.
Os sovietes de operários, trabalhadores em geral e soldados,
essencialmente urbanos, irromperam de forma súbita, surpreendendo os
contemporâneos. Tinham uma contrapartida rural: os comitês de
camponeses, que, no entanto, por guardarem origens e características
próprias não serão aqui abordados [11].
Como naquela sociedade de tradições autoritárias e fechadas,
que contaminavam até mesmo os partidos socialistas existentes, obrigados
a operar na mais rigorosa clandestinidade, de modo nenhum propícia a
debates e controles democráticos, como puderam emergir aquelas formas
de organização ágeis, plásticas, permeáveis aos humores da sociedade,
sensíveis às bruscas variações das tendências políticas, abertas às
camadas sempre desvalorizadas, oprimidas e exploradas? [12]
O debate sobre as origens do fenômeno permanece em aberto,
sujeito a controvérsias. O fato é que os sovietes se impuseram de forma
avassaladora. Nenhum partido ou grupo político poderia ignorá-los,
todos os reconheciam e lutavam dentro deles e de seus comitês especiais
para obter e exercer influência.
Construiu-se assim uma rede de parlamentos plebeus e rede é o termo mais apropriado porque, de fato, embora órgãos com pretensões centralizadoras tenham sido criados no universo soviético a partir de junho de 1917, e apesar do prestígio incontestável do Soviet de Petrogrado, capital política do país, os parlamentos populares, formalmente, não obedeciam senão as suas própria deliberações.
Neste sentido, dizia-se, na época, e com alguma razão, que o poder estava nas ruas, ou seja, disseminado, descentralizado, não se submetendo, nem reconhecendo, nenhum poder central.
Foi este processo que levou V. Lenin, na sua famosa polêmica
com K. Kautsky, que criticava as derivas ditatoriais do poder dos
conselhos (soviético), a sustentar que os sovietes eram “mil vezes mais
democráticos” do que os parlamentos burgueses [13].
O argumento de V. Lenin, quando foi enunciado, em 1918, era duplamente impróprio: primo, porque ele fingia ignorar que os sovietes já estavam em processo acelerado de declínio; secundo, porque os parlamentos aos quais se referia não eram burgueses,
tendo resultado de um processo complexo de contradições e lutas
sociais, nas quais, aliás, as camadas populares e o proletariado
industrial em particular tinham exercido papel chave.
Para além destas impropriedades, porém, V. Lenin acertava ao
enfatizar que as formas organizativas novas dos sovietes eram
particularmente sensíveis às aspirações e aos sentimentos das massas deserdadas. Sendo assim, ao menos em certa medida, podia-se sustentar que eram “mais democráticas” do que os parlamentos então existentes.
Entretanto, como se disse, os sovietes já estavam declinando
como poder efetivo. A Guerra Civil que devastou a Rússia desde 1918, e
até 1921, seus rigores e exigências, não constituía mesmo um terreno
propício para instituições democráticas.
A revolução de Kronstadt foi um último canto de cisne da
estrutura soviética enquanto poder autônomo. Reintroduzindo a palavra de
ordem “todo o poder aos sovietes”, que fora tão mobilizadora ao longo
do ano de 1917, reivindicando liberdade de organização e de expressão
para todos os partidos políticos, anistia para os presos políticos
revolucionários, e autonomia frente às instituições governamentais
dominadas pelos bolcheviques, os marinheiros da histórica base naval
próxima à então Petrogrado empenharam a vida na defesa da democracia revolucionária que não sobreviveu à sua derrota.
A derrota dos revoltosos de Kronstadt assinalou o fim de um
ciclo e de um horizonte de possibilidades. Na União Soviética, criada
formalmente um ano depois, em 1922, e apesar da homenagem do nome, a democracia soviética,
inventada em 1905 e reconstruída em 1917, tornou-se uma ficção, um
espectro, tendendo, de fato, a desaparecer, subordinada a estruturas
rigidamente colonizadas e centralizadas nas mãos dos bolcheviques. Isto
não quer dizer, como sustentam muitos, que a tirania específica de
Stalin, com todos os seus horrores já estivesse prefigurada nos
detalhes. Mas fora construída uma estufa propícia para toda a espécie de
tiranias e de tiranos.
Vida e morte da democracia soviética nas revoluções russas
A vida da democracia no contexto das revoluções russas
existiu enquanto mantiveram vitalidade os sovietes. Por que definharam
tão rapidamente estas estruturas que despertaram tantas esperanças?
A propósito do assunto, a polêmica, evidentemente, está em
aberto, mas muitas explicações, desde a irrupção do período
revolucionário, foram já avançadas por políticos e estudiosos,
Há o argumento das tradições autoritárias [14].
Numa sociedade como a russa, a democracia não tinha mesmo
chance. Séculos de tsarismo combinados com alguns poucos anos de um
parlamento raquítico não abriam mesmo grandes possibilidades.
A guerra civil devastadora e o cerco das forças hostis à
revolução vitoriosa vêm em seguida: como uma sociedade ameaçada em sua
sobrevivência poderia dar-se ao luxo de abrir consultas e debates
democráticos, que minam sempre a coesão social e política? Aberturas
democráticas fariam o jogo do inimigo, abrindo brechas que enfraqueceriam a vitória da revolução [15].
Não deixa também de ser mencionada, sobretudo numa certa
historiografia anglo-saxônica, a responsabilidade crucial do pensamento
marxista e, em particular, do pensamento e da ação bolcheviques,
essencialmente autoritários [16].
Eis, em resumo, o coquetel de ingredientes que teria
inviabilizado a democracia nas revoluções russas e na construção do
socialismo na União Soviética: tradições históricas autoritárias,
circunstâncias imediatas inescapáveis que fortaleciam tendências
autoritárias e ditatoriais (guerra civil e cerco inimigo) e pensamento e
ações do partido revolucionário hegemônico, comprometido com doutrinas
centralistas.
São respeitáveis argumentos. Não gratuitamente, sustentam-se há tantos anos. Mas, creio, não esgotam o assunto.
A força das tradições não foi capaz de impedir a irrupção da
democracia soviética que surpreendeu o mundo. Ou seja, havia brechas ali
para o imponderável e para a invenção, filha legítima do imponderável.
Quanto aos perigos e às circunstâncias, sem que seja possível
subestimá-los, nem sempre é lembrado o fato de que, apesar dos pesares,
mesmo nos piores momentos da guerra civil, houve então mais debates e
democracia na Rússia revolucionária do que depois, quando os perigos e
as circunstâncias dramáticas tinham sido afastados.
A vocação centralista e colonizadora do partido bolchevique, em
grande medida tributária das tradições social-democratas, como se
referiu, é também, a meu ver, inquestionável. Mas duas ressalvas devem
ser formuladas: primo, estas tradições tinham, como também se
viu, uma grande dose de ambigüidades. É revelador que o partido
bolchevique, mesmo antes de alcançar o poder, e também depois, apesar
dos rigores da guerra civil, manteve, nas difíceis condições que eram as
suas, um grau alto de debate interno, de questionamentos e de
contestações. Sobretudo em suas direções, mas não apenas, os
bolcheviques formavam um partido de homens e mulheres livres, e não um
bando de carneiros tangidos por lideranças carismáticas. Secundo,
frente à estrutura soviética, enquanto foi viva e cheia de vitalidade, o
partido bolchevique freqüentemente submeteu-se. É conhecido o episódio
em que os bolcheviques, sob liderança de V. Lenin, redefiniram seu
programa agrário para atender às aspirações e reivindicações dos
sovietes agrários. Também são conhecidas outras evoluções mediante as
quais os bolcheviques se ajustaram aos ritmos e às orientações da
democracia soviética (por exemplo, a recuperação da palavra de ordem
“todo o poder aos sovietes”, depois da derrocada do golpe do general
Kornilov em agosto de 1917). Ou seja, em não raros momentos, os
bolcheviques, apesar das tendências ditatoriais, renunciaram a seus
projetos e acompanharam as decisões tomadas no âmbito dos sovietes.
Em síntese, sem desprezar nenhum dos argumentos invocados
acima, o que se deseja é relativizar seu impacto. E voltar os olhos para
as próprias estruturas soviéticas, sua organização e dinâmica internas,
seus ritmos. Sempre celebrada, por quase todas as tendências de
esquerda, até mesmo pelos bolcheviques que, paradoxalmente,
contribuíram poderosamente para a sua eliminação, os sovietes aparecem
como se fossem estruturas virtuosas, vítimas de forças incontroláveis
(tradições, circunstâncias e algozes - no caso, os acusados são os
bolcheviques) [17].
A indagação que se quer formular é a seguinte: eram realmente favoráveis à democracia as estruturas soviéticas?
Não teria sido em virtude de debilidades internas que os sovietes resistiram tão mal, e tão pouco, aos assaltos
das circunstâncias e de partidos autoritários? Os sovietes não
cultivariam, em sua dinâmica interna, referências autoritárias que os
tornariam particularmente propícios a investidas colonizadoras de
partidos ditatoriais?
A hipótese que quero defender é que as tradições dos sovietes,
assim como já foi referido em relação à social-democracia, no que diz
respeito à democracia, são, no mínimo, ambíguas.
Já referimos as características inovadoras (elas são sempre
citadas), aportadas pela experiência soviética, do ponto de vista da
questão democrática.
Mas há outras que apontam em sentido contrário.
O voto a descoberto é uma delas, talvez a maior, porque, como
se sabe, torna-se muito difícil enfrentar abertamente maiorias
determinadas, sobretudo quando estão iradas, o que é comum em momentos
revolucionários. Do mesmo modo, não é fácil enfrentar os controles da
polícia política e das autoridades constituídas na base do voto a
descoberto.
A não fixação de um período para o mandato, por mais curto que
seja, também se tornou problemática, porque, assim como o mandato
imperativo, diminui drasticamente a margem de autonomia do
representante, sujeitando-o a reviravoltas imprevisíveis, não raramente
estimuladas pelos partidos com vocação autoritária.
A informalidade da estrutura soviética, a ausência de regras
claras e compreensíveis, consideradas por muitos virtudes, também são
armas de dois gumes porque favorecem toda a sorte de golpes e
contragolpes nos quais são esmerados virtuoses os partidos
centralizados.
Outro aspecto, com frequência celebrado: a fusão dos poderes
legislativo e executivo. Trata-se de um dispositivo que permite muita
agilidade e rapidez, sem dúvida, mas leva ao desaparecimento de
equilíbrios de força que são essenciais para a manutenção da democracia.
A estrutura soviética, uma vez tomada por um partido, tende a tornar-se um tanque, que ninguém, e nenhuma contra-estrutura, controlam mais.
Controle é uma palavra chave numa democracia que mereça este
nome. Para exercitar-se, ela precisa de instituições e da noção de que
nenhuma instituição pode ser absoluta ou total. Em seus últimos
momentos, em seu último combate, V. Lenin percebeu os perigos do
descontrole em que evoluía o poder do secretário-geral do Partido
Comunista (no caso, Stalin). Mas já era tarde [18]. As propostas
formuladas, a Comissão Central de Controle e a Inspeção Operária e
Camponesa, cedo se revelariam impróprias e ineficazes por uma condição
básica: não eram órgãos de controle externo. Criaturas do seu criador,
eram incapazes de controlá-lo.
Nesta altura, os sovietes eram já uma sombra do que haviam sido, convertidos agora em espectros de si mesmos.
O voto a descoberto, a informalidade e a agilidade soviéticas, a
inexistência de mandatos, a instabilidade criativa, a fusão entre as
atividades legislativa e executiva, a ausência de controles externos, em
síntese, todos os pontos fortes das estruturas soviéticas, responsáveis
pela sua notoriedade histórica e pela sua eficácia revolucionária, viabilizaram a democracia, no sentido etimológico da palavra, poder do povo,
enquanto existiram condições de elevada efervescência social e
política, marcada, como sempre acontece nestes casos, por altíssimos
índices de ativismo social e participação política.
Vivia-se então a fase épica da revolução. Enquanto
durou, a própria existência das estruturas soviéticas limitava os
partidos, obrigados a lutar em seu interior por prestígio, influência e
poder.
Mas esta fase não é permanente, como se pode perceber
historicamente. Como as grandes ondas, chega o momento da arrebentação. E
o participacionismo exacerbado tende, inevitavelmente, a refluir. No
tempo do refluxo, evidenciaram-se as vulnerabilidades dos sovietes às
tendências autoritárias. Algumas, derivadas dos partidos em luta
contínua para colonizá-los. Outras, intrínsecas aos próprios sovietes.
Sem a compreensão destas últimas, sem a elaboração de propostas
políticas específicas destinadas a superá-las, as próximas experiências
socialistas poderão voltar a estar à mercê de surtos autoritários e,
pior do que tudo, a ditaduras sangrentas que desfiguram o socialismo e o
desmoralizam.
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Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense.
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