terça-feira, 11 de novembro de 2014

Contra O Vento [COMPLETO]


Sobre árbitros e jogadores: quem é quem no Direito constitucional brasileiro?

Sobre árbitros e jogadores: quem é quem no Direito constitucional brasileiro?



“Juízes são servos do Direito e não o contrário. Juízes são como árbitros de esportes. Os árbitros não fazem as regras do jogo, eles as aplicam.
O papel de um árbitro ou de um juiz é crítico. Eles garantem que todos joguem de acordo com as regras.
Mas esse é um papel limitado. Ninguém vai a uma partida para ver o árbitro. (...) Meu trabalho é marcar as bolas e os pontos e não arremessar ou rebater”.[1]
Com essa analogia com o jogo de baseball, o então juiz John Roberts iniciou a sabatina na qual o Comitê Judiciário do Senado norte-americano avaliaria suas credenciais para o cargo de Chief Justice, que é por ele ocupado já há quase dez anos.
No contexto em que apresentada, a alegoria de Roberts dizia com a constante discussão envolvendo o ativismo judicial e procurava assegurar aos senadores que o futuro chefe do Judiciário norte-americano não contribuiria para tornar a Suprema Corte a protagonista da vida político-institucional dos Estados Unidos.[2]
Entretanto, para além dessa análise inicialmente superficial, a imagem relacionada com o baseball suscita ainda a disputa que se apresenta entre diferentes compreensões do direito constitucional, disputa essa que – com contornos peculiares — igualmente se faz presente nos ambientes institucional e acadêmico brasileiros.
Há quem, no direito constitucional brasileiro, insinue – ou afirme – a existência de duas compreensões: uma considerada conservadora, anacrônica, ora porque tida como positivista, ora porque classificada como dogmática, ora porque apegada às regras normativas (sejam elas constitucionais, sejam elas legais), ora porque avaliada como avessa ao diálogo com “o novo”; e uma outra compreensão, considerada progressista, moderna, justamente porque nega o positivismo, porque se liberta da dogmática, porque não se apega a regras, mas, sim, a princípios constitucionais, e dialoga com “o novo”, sobretudo aquele oriundo da doutrina estrangeira.
Por isso mesmo, a segunda compreensão autodenomina-se “neo” alguma coisa. A primeira compreensão, por sua vez, é adjetivada — acusada — de modo pejorativo pela segunda como conservadora e positivista.
A primeira compreensão ainda considera válida a ordem institucional democrática, sobretudo no que se refere a uma organização de poderes com Executivo (chefia de Estado e chefia de governo conjugadas ou não), Legislativo e Judiciário, eventualmente com Tribunal Constitucional. Para ela, o Estado de Direito pressupõe um governo de leis, não de individualidades. As leis são votadas no Parlamento – eleito pelo povo para representá-lo — e sancionadas pelo governo (também fruto de eleição). São aplicadas pelo Judiciário e eventualmente declaradas inconstitucionais pelo mesmo Judiciário (ou por um Tribunal Constitucional).
A segunda compreensão não acredita nessa mecânica de coisas. Ou não tem paciência de esperar que ela funcione, que ela amadureça. Num caprichoso voluntarismo, quer ver de pronto realizado um programa que considera ser o constitucional e, para tanto, admite colocar em segundo plano a organização de poderes, passando o protagonismo das políticas públicas para agentes não eleitos, sobretudo juízes, promotores, procuradores, advogados. Minimiza a importância dos agentes eleitos, que são genericamente considerados por essa segunda compreensão como inapetentes – quando não nocivos ou, até mesmo, criminosos – para os negócios públicos.
O discurso encanta desde os bancos acadêmicos. O estudante de Direito é inoculado com a perspectiva de mudar o mundo, fazendo a revolução que a política teima em não fazer.
O resultado disso, por mais paradoxal que seja, é uma cultura contrária ao próprio Estado de Direito, contrária à forma própria do Direito, que é a lei votada no Parlamento, nunca no Judiciário ou no Tribunal Constitucional. Contrariar esse esquema de coisas implica reação imediata e bem concertada: trata-se de discurso de conservador, de positivista.
Esse é um engodo grosseiro cuja falácia é de fácil demonstração.
Em tempos de Copa do Mundo, entremeada com eleições iminentes, pode-se fazer a seguinte comparação, adaptando as palavras do chief justice Roberts acima transcritas: a relação entre Política e Direito é análoga à relação havida entre os times que disputam uma partida de futebol e a respectiva equipe de arbitragem.
Os torcedores, no futebol, desejam ver os gols de Neymar, Robben, Klose e Messi. Da mesma forma, os cidadãos, enquanto eleitores, na política, desejam ver boas políticas públicas realizadas pelos sujeitos em que eles – eleitores – votam nas eleições.
Da mesma forma como nenhum torcedor deseja ver um gol feito pelo árbitro da partida (hipótese risível e que se afigura absolutamente inconcebível), nenhum cidadão deseja – ou deveria em sã consciência desejar – ver uma política pública ser concebida por um juiz ou tribunal em detrimento das políticas públicas concebidas pelos agentes eleitos.
Da mesma forma como no futebol o árbitro deve limitar-se a assegurar o exato cumprimento das regras do jogo, o Poder Judiciário também deve limitar-se a assegurar o exato cumprimento da Constituição e das leis. Não é sua tarefa elaborar normas constitucionais e legais que porventura repute melhores que aquelas estabelecidas pelo constituinte ou pelo legislador.
Ora, é exatamente isso que pretende a compreensão “neo” alguma coisa.
Enquanto não houver clareza sobre a nocividade desse maniqueísmo, que relega a segundo plano a boa doutrina, por mais tradicional e conservadora que seja (como se isso, por si só, fosse pecado), o direito constitucional brasileiro permanecerá aberto à manipulação ideológica, que faz com que os árbitros possam ser mais importantes que os jogadores.

[1] Para a declaração integral de Roberts, ver: http://www.cnn.com/2005/POLITICS/09/12/roberts.statement/
[2] Ainda que, para muitos críticos, Roberts não tenha cumprido a promessa. Nesse sentido, há manifestações de integrantes da Suprema Corte, como demonstra a seguinte entrevista da Justice Ginsburg ao The New York Times: http://www.nytimes.com/2013/08/25/us/court-is-one-of-most-activist-ginsburg-says-vowing-to-stay.html?pagewanted=all&_r=0

Jurista deve entender teoria dos signos para combater totalitarismo

Jurista deve entender teoria dos signos para combater totalitarismo




 
Um dos pilares do Estado de Direito é a garantia das liberdades civis, bandeira do constitucionalismo moderno que se coloca na linha de frente no combate a formas absolutistas de governo. Liberdade implica em responsabilidade e preserva o direito de resistência contra formas autoritárias.
No entanto, a banalização das interceptações telefônicas e da violação das comunicações eletrônicas nas investigações policiais, muito facilitada pelo expressivo desenvolvimento tecnológico atual, tem aumentado consideravelmente os quadros paranoicos que produzem sentido na lógica do investigador, aniquilando as chances de defesa. Pior, se tal controle deveria ser o último recurso, tem se tornado o primeiro, promovendo sucessivas violações dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade.
Esse totalitarismo digital condena os cidadãos a viverem em um Estado de não-direito. Tudo é ou pode ser controlado — basta você se insurgir contra a ordem instituída, seja ela qual for, e será incriminado.
Para agravar a situação, reina o despreparo para lidar com as manifestações discursivas que deveriam ser interpretadas/decifradas. Palavras soltas, sem o contexto: a que se ligam? Diretamente a um dado da realidade? Não. Já superamos a semântica realista e a tese da verdade como correspondência ao fato (adequatio intellectus ad res — Aristóteles). Também não mais se sustenta a racionalista tese da verdade como elucidação da consciência (Ockham/Descartes). O laço de produção de sentido é muito mais profundo e complexo.
Uma palavra ou frase pode significar algo diametralmente oposto ao que foi falado. E os atores jurídicos precisam ter conhecimento suficiente das noções de linguística e de filosofia da linguagem na interpretação dos casos jurídicos (envolvendo o direito, os fatos e as provas produzidas em uma complexa unidade de compreensão). O primeiro passo é entender as contribuições de Ferdinand de Sausurre, em especial sua teoria do signo.
Saussure e a linguística sincrônica
Em seu curso de linguística geral, ministrado entre 1906 e 1911 na Universidade de Genebra e publicado posteriormente com base nas anotações de seus alunos[1], Ferdinand de Saussure promove uma importante inovação ao notar que os estudos anteriores da matéria focavam a evolução histórica e as análises comparatísticas entre as línguas, com objeto mais próximo da filologia. Faltava um estudo da língua enraizado no tempo de cada sociedade, lacuna que ele se propôs a preencher através do que chamou de linguística sincrônica.
O objeto dessa nova ciência — a língua — é compreendida como “um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos”[2].
Nessa perspectiva, língua e linguagem não se confundem, pois esta é multiforme e heterogênea, possui um domínio individual e social e não se classifica em nenhuma categoria de fatos humanos à medida que depende de aspectos físicos, psicológicos e psíquicos. Já a língua é a parte social da linguagem, manifestação exterior independente do indivíduo, que existe em razão do pacto dos membros da comunidade, o que lhe daria a homogeneidade para que pudesse formar um todo e orientar a classificação das condições de fala (parole).
A língua (langue) forma um sistema normativo em que uns signos ganham sentido em relação aos demais que constituem essa totalidade. Opera como uma infraestrutura social, uma rede de conexões e regras que permite os atos de fala, garantindo as convenções previamente estabelecidas e a lógica que possibilita a comunicação. Já a fala é o ato linguístico individual, concreto, historicamente localizado[3] e mediado por aspectos hermenêuticos e psicanalíticos.
Saussure faz sua reflexão a partir de experiências do dia a dia, entre elas o jogo (jogar e comunicar-se através de língua historicamente dada envolve interação com outras pessoas). O exemplo do xadrez é elucidativo por mostrar que a essência do jogo se revela naquilo que não se observa de imediato: as regras que permitem certas jogadas e que se tornam condição de possibilidade do jogar, da mesma maneira que a língua é condição de possibilidade do comunicar-se. A preponderância do “regulamento do jogo” permite também que uma peça seja substituída por qualquer outro objeto, desde que haja convenção de que o objeto a representa[4].
Ou seja, não importa o material, o objeto da peça. O sentido está na função que ela exerce no jogo: a dama não é a peça, mas uma função. No limite, poderíamos jogar com uma pedra ou tampa de garrafa no lugar da peça que a represente, desde que antes fizéssemos o acordo de que ela desempenha a mesma função.
Da mesma maneira, uma vez retirada a ligação entre sentido e objeto, é possível alterar o significado de uma frase com a troca de apenas uma palavra cuja pertinência linguística seja diversa da palavra substituída. Isto faz com que, seguindo as reflexões de Rodolfo Ilari, a descrição de um sistema linguístico dependa, acima de tudo, da análise de funcionalidade e pertinência, o que traz as seguintes implicações:
i) a necessidade de distinguir entre diferenças de pronúncias, (por exemplo diferenças físicas e sotaque como em “mulé” ou “mulher”), das diferenças de função (como ocorre entre os fonemas "f" e "v" nas palavras “enfiar” e “enviar”) no momento de levantar a unidade fonológica de uma língua;
ii) a centralidade da noção de pertinência faz com que se exclua como não lingüística uma série de informações que tenham existência perceptiva, mas que não possuam relevância funcional ;
iii) serão objetos da análise apenas os elementos considerados pertinentes[5].
A teoria do signo
Saussure rompe com teorias marcadas pela iconicidade, as quais supunham que pudesse haver ideias completamente feitas que fossem preexistentes às palavras e que os conceitos (palavras) fossem etiquetas coladas às coisas, aos objetos. Para ele, a comunicação se realiza por meio de uma unidade linguística básica, o signo, entendido como uma entidade de duas faces que une um nome (significado) à sua imagem acústica (significante).
Segundo o mestre de Genebra, a imagem acústica, “não é som material, coisa puramente física, mas a impressão (empreinte) psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegamos a chamá-la material é somente nesse sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato”.[6] Ou seja, ela forma o conteúdo psiquicamente impresso (significante) que dará vida/matéria ao conceito (significado).
Saussure elenca, ainda, os princípios que levam às características do signo, quais sejam: i) arbitrariedade, que faz com que o laço entre o significante e o significado seja convenção, não possuindo caráter necessário, nem demandando motivação, ainda que seja admissível alguma ordem dada pela intervenção humana, como nos casos de substantivos e seus correspondentes[7]; e ii) a linearidade, pois se o signo possui uma natureza auditiva, o significante desenvolve-se no tempo e retém suas características.
Ainda, a imutabilidade do signo representa uma certa transcendência da língua, fazendo com que escape à vontade humana[8], fixando no tempo a convenção outrora arbitrária[9] em oposição à sua mutabilidade temporal, pois é admissível que, mesmo fixado, em razão de sua continuidade, ele possa sofrer alterações com o desenrolar dos processos históricos.
Essas características permitem duas reflexões importantes aos intérpretes do direito. A primeira, relacionada à arbitrariedade, reside no caráter convencional do significante que, como já demonstrado, não depende da ligação material com o objeto, mas antes com a sua impressão psíquica, rompendo com a clássica teoria da verdade como correspondência ao fato. Já a segunda, realçada pela imutabilidade do signo, indica que apesar do caráter convencional, o significante está além da vontade individual, é transcendente e depende da língua como dado coletivo para produzir sentido.
Isso significa que a convencionalidade não implica em relativismo lingüístico. Não cabe ao intérprete atribuir qualquer sentido ao conceito — ou seja, não é admissível juridicamente dizer, individualmente e arbitrariamente, qualquer coisa sobre o conceito. Ademais, os fatores de produção de sentido são complexos, dependem do contexto, da intencionalidade da fala, dos recursos lingüísticos, como a ironia, por exemplo. Assim, uma pedra no sapato pode significar somente uma pedra no sapato.
Certamente a linguística de Saussure é bem mais profunda, basta pensar na distinção que ele faz entre as relações de combinação e de seleção entre eixos da linguagem. Contudo, considerando as problemas relacionados ao Direito e à sua interpretação, desde já é possível perguntar: teria o policial investigador condições de decifrar todas essas variáveis? E os promotores e magistrados? Estamos preparando os estudantes de Direito para compreender a complexidade dessas questões? Inclino-me a pensar que a resposta seja negativa.
Enfim, já passou da hora dos juristas compreenderem a teoria do signo e os ensinamentos da filosofia da linguagem. Sem eles, quadros mentais paranoicos passam imperceptíveis e rumamos ao totalitarismo inquisitorial/policial, no qual todos são culpados pelas palavras. O Estado de Direito precisa de mais Saussure e dos filósofos da linguagem. As liberdades civis agradecem.

[1] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 25 ed. , trad. Antonio Chelini et all. São Paulo: Cultrix, 2003.
[2] Idem, p. 17.
[3] Cf. ILARI, Rodolfo. O estruturalismo lingüístico: alguns caminhos. In: MUSSALIN, Fernanda, BENTES, Anna Christina (orgs.). Introdução à lingüística: fundamentos epistemológicos. Vol. 3. São Paulo: Cortez, 2004, p. 57 e ss.
[4] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso..., p. 128.
[5] ILARI, Rodolfo. O estruturalismo linguistico…, p. 60 e ss.
[6] SAUSSURE, Ferdinand de. Curso..., p. 80.
[7] Cf. CARMELO, Luís. Semiótica: uma introdução. Mem Martins-PT: Publicações Europa-America, 2003, p. 143. (col. Biblioteca Universitária, n. 82).
[8] Idem.
[9] STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 127.

Uma decisão judicial que se tornou celebridade internacional

Uma decisão judicial que se tornou celebridade internacional



Em 15 de janeiro de 1958, o 1º Senado do Tribunal Constitucional alemão proclamou o que, para muitos, é a mais importante decisão de toda a sua jurisprudência sobre direitos fundamentais[1]. O famoso Caso Lüth (BVerfGE 7, 198-230) tranformar-se-ia rapidamente num dos mais extraordinários exemplos de sucesso da jurisdição constitucional da Alemanha, ajudando a explicar por que, a partir da segunda metade do Século XX, a corte alemã acabaria alcançando prestígio internacional superior ao da própria Suprema Corte norte-americana.
Dieter Grimm, consagrado jurista e professor alemão, hoje internacionalmente reconhecido, tendo ele mesmo sido juiz no Bundesverfassungsgericht, em artigo comemorativo aos 50 anos do Tribunal Constitucional de seu país, no periódico Die Zeit (40/2001, Politik), com o título “A carreira de um chamado ao boicote” (Die Karriere eines Boykottaufrufs), bem avalia a importância dessa decisão, considerando-a a mais importante já proferida pela Corte alemã. Em sugestiva análise, afirma o grande jurista que a ponderação de bens, a proporcionalidade, a irradiação dos direitos fundamentais sobre o direito ordinário e o dever de proteção que decorrem dos direitos fundamentais, a partir dessa decisão, tornaram-se “artigos de exportação” do Direito Constitucional alemão, oferecendo ainda justificativa para a estima que se costuma dedicar àquele Tribunal Constitucional.
Os contornos fáticos do caso são hoje bem conhecidos e por isso vou aqui apenas relembrá-los.
A provocação para a decisão proferida pelo Tribunal teve origem no recurso constitucional interposto por Erich Lüth, que se opunha à condenação que lhe havia sido imposta por um tribunal estadual (Landgericht) pelo fato de haver se expressado publicamente, por diversas vezes, convocando um boicote aos filmes de Veit Harlan, por seu suposto passado nazista, tendo considerado a Justiça ordinária, com base no parágrafo 826 do BGB (Código Civil Alemão), que a exortação de Lüth ao boicote seria contrária à moral e aos costumes, razão pela qual ele foi condenado a omitir-se de novas convocações a favor do boicote sob ameaça de uma pena de multa ou até mesmo de prisão[2]. A decisão da Justiça ordinária seria, entretanto, reformada pelo Tribunal Constitucional, sob o fundamento de que o direito fundamental à liberdade de opinião irradiava sua força normativa sobre o Direito ordinário, no caso o Direito Civil, impondo-se aos tribunais ordinários a necessidade de emprestar prevalência ao significado dos direitos fundamentais, mesmo nas relações entre particulares. Entendamos bem esses fatos.
Em 1940, já famoso como diretor de cinema, Veit Harlan realizou um filme de propaganda anti-semita, dando-lhe o título de Jud Süβ (o Judeu Süβ). Depois da Segunda Guerra, um tribunal ordinário da Justiça alemã considerou que Harlan, com aquele filme, teria praticado crime contra a humanidade, pois o filme, com sua influência tendenciosa sobre o público, segundo o tribunal, servira de causa para a perseguição aos judeus. Segundo o tribunal, o autor tanto sabia dessa específica finalidade perseguida pelo filme como também contava com suas consequências racistas. Não obstante tudo isso, ao final, o autor acabou absolvido por sua conduta, considerando aquele tribunal que ele não poderia recusar uma ordem do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, sem colocar sua própria vida em perigo nem poderia realizar o filme de forma menos impressionante ou eficaz para o público (weniger wirkungsvoll)[3].
Depois da sua absolvição e logo após o início do primeiro filme de pós-guerra de Veit Harlan, Erich Lüth, o presidente de clube de imprensa de Hamburgo, dirigiu-se, em uma palestra, a empresários e a produtores cinematográficos, convocando-os literalmente a boicotar o realizador do filme Jud Süβ. Afirmou, então, que a absolvição do realizador teria sido apenas formal, pois existiria na fundamentação da sentença uma condenação moral, com o que se podia e devia exigir dos empresários e dos proprietários das salas de cinema um comportamento moralmente digno. A uma interpelação da produtora do filme e da empresária do diretor, Lüth, reafirmando sua antiga posição, respondeu com uma carta aberta, na qual afirmava, entre outras coisas, ser um direito e uma obrigação de todo alemão decente colocar-se à disposição da luta contra estes indignos representantes do filme alemão (...) como também a favor do boicote[4].
Depois disso, em razão de uma ação promovida pela produtora e pela empresária do novo filme de Veit Harlan, Unsterbliche Geliebte (Amada Imortal), na qual se pedia a condenação de Erich Lüth a omitir-se de expressar suas opiniões, ele foi proibido pela Justiça estadual de Hamburgo a manifestar-se a favor do boicote do filme, seja propugnando que o filme não fosse emprestado, seja buscando sua não apresentação ou divulgação, ou mesmo simplesmente convidando o público para não frequentar as salas de cinema que o apresentasse.
Segundo a decisão, a ilicitude de uma manifestação de boicote por parte de Lüth resultava, entre outros fatores, da absolvição de Veit Harlan. Por conta disso, a Justiça de primeiro grau, em Hamburgo, com base no Código Civil alemão, em caso de descumprimento, cominou a Lüth uma sensível pena pecuniária, considerando sua conduta contrária à moral e aos costumes (parágrafo 826 do BGB), em razão do que lhe impôs a exigência de omissão de uma futura manifestação[5]. Contra essa decisão, Erich Lüth interpôs recurso de apelação perante os tribunais superiores, apresentando depois recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional[6].
O Tribunal Constituicional, como vimos, fazendo prevalecer o sentido dos direitos fundamentais sobre as normas do Direito ordinário, a partir de um juízo de ponderação de bens, reformou a decisão dos tribunais inferiores, impondo a ideia de que, a partir de então, toda a ordem jurídica deveria ser interpretada à luz do Direito Constitucional, mais especialmente a partir dos direitos fundamentais, ainda que se cuidasse, como no caso, de relações jurídicas entre particulares.
A relevância do Caso Lüth
A relevância da decisão Lüth (Lüth-Urteil) pode ser aferida por suas amplas e profundas consequências no âmbito do Direito Constitucional. De fato, com ela o Tribunal (i) afirmou os direitos fundamentais como primeira linha de direitos de defesa do cidadão contra o Estado[7]; (ii) fundamentou a irradiação da eficácia jurídica dos direitos fundamentais no âmbito do direito infraconstitucional (ainda que o Tribunal Constitucional apenas admitisse apreciar as sentenças proferidas pela Justiça ordinária em relação à violação dos direitos fundamentais, não em relação à generalidade dos erros de direito), propiciando o desenvolvimento de sua eficácia entre particulares[8]; (iii) conformou a amplitude do direito fundamental à liberdade de opinião, fixando que o direito fundamental à liberdade de expressão garante não apenas a livre manifestação de opinião, como também a possibilidade de agir e a influenciar sobre os demais espíritos[9]; (iv) fixou a primazia legal do direito à liberdade e desenvolveu a ideia de uma ordem objetiva de valores (não se fala em hierarquia aqui) incorporada nos artigos 1 a 19 da Lei Fundamental alemã (Grundgesetz), que influenciaria todas as esferas jurídicas[10], além de (v) dar início ao desenvolvimento da ideia de ponderação de bens (Güterabwägung) como método de solução para os casos difíceis em que normas de estatura constitucional entram em relação de tensão ou colisão, especificamente, demonstrando ser necessária, naquele caso, uma ponderação entre o direito fundamental da livre manifestação de opinião e outros interesses com mesma hierarquia, isto é, dignos de proteção (schutzwürdige) constitucional, os quais, no caso concreto, podiam ser violados pelo concreto exercício da liberdade de expressão[11].
No que se refere à necessidade de ponderação entre os bens constitucionalmente garantidos (Güterabwägung), o tribunal partiu da compreensão de que a manifestação da opinião é livre em suas consequências puramente intelectuais. Quando, porém, pela manifestação da opinião pode-se prejudicar bens jurídicos de outro indivíduo, cuja proteção, no caso concreto, diante da liberdade de opinião também pode merecer primazia, não se poderia, sem mais, consentir com essa violação que seria praticada por intermédio da concreta manifestação do pensamento contra o direito do terceiro. Por isso mesmo é que se mostraria necessária, no caso, uma ponderação de bens na qual se pudesse verificar, com base em todas as circunstâncias do caso, se interesses preponderantes estariam presentes em determinado caso[12].
Nunca é demais ressaltar que, nos exatos termos da própria decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, saber se outros interesses (eventualmente considerados predominantes) realmente se apresentam no caso é uma conclusão que apenas poderia ser averiguada, fundamentamente, com base em todas as circunstâncias do caso (ist auf Grund aller Umstände des Falles zu ermitteln)[13].
Exatamente em função de a ponderação mostrar-se vinculada a uma completa consideração de todas as circunstâncias que caracterizam o caso é que, acentuou o tribunal, alteradas as circunstâncias de fato, também se poderia exigir um resultado diferente do juízo de ponderação. No caso Lüth, em que a manifestação de opinião não serve diretamente apenas a bens jurídicos e a interesses de natureza privada ou egoísta, tratando-se antes de uma contribuição ao debate público de ideias sobre uma questão que se baseia essencialmente no interesse público, não há dúvida de que o bem jurídico ou interesse privado perde peso e significado, devendo retroceder em favor da liberdade de opinião. Como afirmou o tribunal, aqui a presunção fala a favor da admissibilidade da livre manifestação, ou da liberdade de discurso[14].
Assim, toda aplicação judicial que possa restringir a liberdade de opinião deve, conforme o entendimento adotado pelo Tribunal Constitucional, ponderar o significado desse direito fundamental contra o significado dos bens jurídicos protegidos eventualmente com ele em uma relação de colisão, trazendo sempre em consideração todas as circunstâncias de fato essenciais para a conformação do caso[15].
Foi assim, pois, depois de ampla e profunda carga de fundamentação, que o Tribunal Constitucional reformou a decisão dos tribunais inferiores para fazer prevalecer o direito à opinião e à manifestação de Erich Lüth — no caso, o direito a manifestar-se pelo boicote aos filmes de Harlan.
Em resumo, bem consideradas as circunstâncias históricas em que se desenvolveu a famosa decisão Lüth, resultando na afirmação dos valores democráticos sobre o totalitarismo nazista, assim como as suas consequências jurídicas, bem como a incrível propagação de ideias que ela propiciou (não apenas na Alemanha, mas por todo o mundo democrático), não parece ser difícil compreender por que os juristas alemães de fato têm razão por orgulharem-se desse verdadeiro “artigo de exportação” de sua mais elevada jurisprudência.

[1] BVerfGE 7, 198-230. Cf. Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 25 e seguintes; Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung: hundert Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts in Retrospektive. Tübingen: Mohr Siebeck, 2000, p. 97. Dieter Grimm, no periódico Die Zeit (40/2001, Politik), com o título “A carreira de uma convocação ao boicote” (Die Karriere eines Boykottaufrufs); Costa Andrade, no livro Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, p. 44/45, a partir de uma perspectiva jurídico-criminal, também reconhece que Lüth-Urteil viria a converter num dos mais importantes casos da experiência jurídica alemã.
[2] BVerfGE 7, 198 (199).
[3] Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 97.
[4] Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 97.
[5] BVerfGE 7, 198, 199, 203.
[6] BVerfGE 7, 199/203.
[7] BVerfGE 7, 198 e 204-205.
[8] BVerfGE 7, 198 e 207-209.
[9] BVerfGE 7, 198 e 210.
[10] BVerfGE 7, 198 e 205-206. Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 25.
[11] BVerfGE 7, 198, 210-212. Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 26 e seguintes. Bernhard Schlink. Abwägung im Verfassungsrecht, p. 17 e seguintes.
[12] Na sequência da decisão, o Tribunal utiliza o conceito “interesse” no lugar de “bem jurídico”, sendo que o próprio Tribunal irá designar como finalidade da ponderação ali realizada encontrar os interesses predominantes (überwiegenden Interessen), isto é, os interesses que apresentam primazia no caso concreto. BVerfGE 7, 198 (210 e seguintes). Compare-se com o exemplo da BVerfGE 27 (104, 109, 110): ali o direito fundamental da liberdade de informação aparece como protegendo um interesse de informação, conforme é indicado por Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 28 (nota 73).
[13] BVerfGE 7, 198 (210/211). Cf. também Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 26.
[14] BVerfGE 7, 198 (212). Cf. também Harald Schneider. Die Güterabwägung des Bundesverfassungsgerichts bei Grundrechtskonflikten, p. 26/27; Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 99.
[15] Jörg Menzel (org.). Verfassungsrechtsprechung, p. 99.

Jogos de linguagem estabelecem


Jogos de linguagem estabelecem
limites ao intérprete do Direito

Os jogos de linguagem formam um rede de significações previamente compartilhadas que vinculam a interpretação das palavras da lei. Não se pode dizer qualquer coisa dos textos normativos porque o contexto e seus sentidos pré-fixados não permitem. Eis algumas possibilidades de título igualmente adequadas para a coluna de hoje.
Parece simples, mas para bem compreender a dimensão dessas afirmações é necessário investigar uma das passagens mais ricas da história da filosofia, especialmente a partir do final do século XIX quando o “avô” da filosofia analítica — Gottlob Frege — rompe com a ideia de que a linguagem é mero instrumento ou meio pelo qual se raciocina e passa a defender a tese da linguagem como universal, ou seja, linguagem como condição de possibilidade do pensamento e das “leis da verdade”.
A partir de Frege, e ainda no contexto da lógica analítica, Ludwig Wittgenstein, ao se deparar com os limites da semântica formal por ele defendida, acaba realizando uma revolução (em sentido próprio) do seu pensamento e promovendo a chamada reviravolta linguística e pragmática.
A pragmática linguística trabalha com uma teoria da significação baseada na veracidade e no uso dos das proposições linguísticas em determinada situação de discurso, ambos dependentes do universo de sentido inserido nas regras de linguagem constituídas enquanto mediações do mundo da vida.
Essa tese fundamental, inicialmente arquitetada pelo “segundo” Wittgenstein, teve suas categorias consolidadas a partir do desvendar da intencionalidade na teoria dos atos de fala (J. Austin e J. Searle). Por ora, analisaremos as bases da superação da semântica realista pela pensamento lógico-analítico e a virada em torno da pragmática marcada pelos jogos de linguagem, com suas importantes implicações na teoria da interpretação jurídica.
A primeira virada: a superação da semântica realista
Para a semântica formal de Frege é a estrutura das frases (proposições linguísticas) que sustenta o significado, independentemente da referência externa no mundo real. Aqueles que acompanham a coluna já sabem que dizer “Getulio é um grande homem” é muito diferente de dizer “Getulio é um homem grande”, pois o sentido é dado a partir das mudanças no chamado eixo sintagmático, o da combinação (clique aqui para ler a coluna do dia 25 de agosto).
Hoje, sabemos que isso é pouco, pois a mudança de sentido depende da estrutura em combinação com o contexto que sustenta a compreensão dessa mudança. De qualquer modo, o avanço é bastante significativo, pois dessa concepção resulta a inefabilidade semântica, ou seja, a impossibilidade de expressar diretamente a realidade por meio das palavras. Neste caso, o conteúdo/significado é produzido de maneira objetiva no âmbito do que Frege chama de universo do “sentido”, que estaria entre o signo (a frase) e a referência externa – objeto real.
Se as estruturas são os vetores determinantes do sentido, Frege entende que elas podem ser reproduzidas de forma lógica, em uma linguagem universal e perfeita, que serviria de parâmetro para a correção das línguas ordinárias. Essa linguagem seria uma metalinguagem universal. Rompe-se, assim, com a a chamada semântica realista, de linhagem aristotélica, que defende a possibilidade de as palavras expressarem diretamente o objeto e não apenas o seu sentido linguístico.
Partindo desses pressupostos, Wittgenstein tomou como sua a tarefa de desenvolver a contribuição de Frege para a mudança paradigmática no pensar filosófico. Esse mister fica bastante evidente na filosofia exposta por ele em sua obra Tractatus Logico-Philosophicus onde, após as influências decisivas não apenas das teses de Frege, mas também de Russell[1], se encontra a suposição de que a estrutura lógica do arcabouço conceitual é determinada pelas formas lógicas dos objetos simples (notem, o sentido seria obtido a partir das formas lógicas, não por meio dos objetos diretamente).
Esses objetos simples são dados pela experiência imediata e entendidos como substancia única, fixa do mundo, mas, todavia, inefável – isto é, a existência individual e direta das coisas não é algo que possa ser dito, é inexprimível[2].
A estrutura lógica do mundo é, então, construída com base na interpretação dos dados imediatamente recebidos a partir da vivência. Desse modo, o mundo a ser compreendido é formado pela totalidade de objetos simples, sempre dependentes de complementação (insaturados) que só ganham significado numa proposição linguística.
Estabelecidas as premissas, Wittgenstein afirma a tese do espelhamento, baseada na noção de que a “forma lógica de uma proposição corresponde à forma lógica da realidade”, o que significa dizer que as propriedades estruturais da linguagem refletem as propriedades estruturais do mundo (teoria da propriedade interna da linguagem)[3].
É a partir desse conjunto de concepções que se entende a célebre afirmação contida nos Tractatus em 5.6: “Os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo”[4].
A verdade é então pensada como o isomorfismo entre a estrutura do pensamento e a estrutura do mundo (estruturas interna e externa), isto é, ela consiste na “identidade estrutural entre esses dois tipos de relação”[5].
Apesar das críticas de que ainda estaria latente uma relação secundária com o mundo real e que, por isso, não haveria nas teses de Wittgenstein uma autêntica superação da semântica realista sustentada pela ideia de verdade como adequação do pensamento à coisa, não se pode ignorar que o Tractatus assume uma posição analítico-linguística por privilegiar a sentença sobre o nome à medida que deixa expresso que só a proposição tem sentido[6].
A segunda reviravolta: os jogos de linguagem
Sem desprezar a importância dessa primeira reviravolta linguística e suas implicações na teoria do direito – basta lembrar que a noção de uma metalinguagem ideal era categoria central por meio da qual se desenvolveu grande parte das análises dos pensadores vinculados ao positivismo lógico da Escola de Viena e juristas a ela ligados, como Hans Kelsen – o próprio Wittgenstein traçou as diretrizes para o caminho da pragmática.
Em sua obra Investigações filosóficas ele rompeu com suas conclusões anteriores e passou a defender a inversão da tese fundamental contida no Tractatus. Na nova perspectiva, não é mais a linguagem que é limitada pelo mundo, mas o mundo pela linguagem.
Seguindo a tese defendida pelo casal Hintikka, essa mudança na linguagem primordial da filosofia wittgensteiniana fez com que, no período de transição de seu pensamento, fosse necessário reforçar o papel das definições ostensivas, isto é: mostra-se o objeto para que o falante diga o que ele é.
Ao dizer o que o objeto é, na verdade, o falante diz o que ele compreende em um dado contexto de fala. Ao fazê-lo, ele enuncia regras fundamentais que determinam o uso desse objeto. Essas regras seriam, assim, a ponte entre linguagem e mundo, intermediárias no processo de representação[7].
Muitos problemas surgiram desta nova concepção, entre eles o da natureza e observância das regras, isto é, como era possível aferir se uma regra fornecida ostensivamente era cumprida?
A solução parece estar presente em seu pensamento maduro, especialmente no parágrafo 560 da obra Investigações filosóficas, no qual está presente a ideia de que o significado das expressões se revela em sua explicação, onde residem suas possibilidades de compreensão: se você quer compreender o uso da palavra ‘significação’, então verifique o que se chama de ‘explicação da significação’, diz o filósofo alemão[8].
Desse modo, quando uma explicação sobre algo é pedida para alguém, supõe-se que ele compreenda esse algo e, ao transmitir a significação de modo intersubjetivamente compreensível, acaba deixando evidente o uso que se faz da expressão linguística. O comportamento do interlocutor permite, ainda, que se diagnostique as regras que norteiam o uso dos atos de fala.
De maneira mais abrangente e realçando o caráter social da linguagem, Wittgenstein vislumbra que outro critério de referência para a observância ou não do uso de determinada regra linguística em uma comunidade está no amplo conjunto de atividades comuns dos homens dessa comunidade, conforme ele propõe no parágrafo 206 das Investigações Filosóficas.
Essa reflexão indica a ligação entre linguagem e ação – dizer e fazer – revelando o caráter dialógico e acional dos proferimentos linguísticos, bem como a ocorrência dos jogos de linguagem, elementos centrais que possibilitaram a chamada “reviravolta pragmática” na filosofia da linguagem[9].
O caráter acional dos proferimentos linguísticos é assumido porque o significado passa a depender de como os vocábulos são utilizados na linguagem, ou seja, a análise da significação das palavras deve levar em conta o contexto global da vida e dos usos das palavras[10].
Por sua vez, o contexto em que se desenvolve o discurso é determinado pelos jogos de linguagem ou formas práticas de vida, que se tornam o novo elo linguagem-mundo e equivalem a uma rede oculta, doadora de sentido e suporte para o significado das expressões linguísticas durante a comunicação, sendo compartilhada em uma comunidade de fala historicamente localizada. A possibilidade de uma comunicação eficaz depende de um consenso preliminar entre os falantes acerca da significação dos vocábulos e seu emprego, mesmo quando eles não são ditos (p. ex.: a afirmação de que um carro é vermelho só faz sentido porque se conhece as características da cor vermelha em um dado contexto de vida e também porque se sabe que ela não se confunde com a cor verde, azul ou amarela. Esse conjunto de significações não-ditas mas compartilhadas entre os interlocutores é que permitem a compreensão da ideia de “vermelho” também a partir do que ele não é).
Nessa perspectiva, os nexos entre significado e sua validez não estão relacionados à ligação linguagem-mundo, mas sim às conexões comparativas entre a validez das convenções e a validez social dos costumes, ou, ainda, à equiparação entre as regras gramaticais dos jogos de linguagem a normas de práticas sociais[11].
Sem ignorar a importância das contribuições da filosofia analítica e da lógica no estudo das estruturas normativas e sua interpretação, são muitas as implicações dessa virada paradigmática na teoria do direito. Primeiro porque caem por terra discursos processuais baseados na “verdade real”, marcados por nítida influência da semântica realista anterior à primeira virada lógico-analítica.
Depois porque se rompe definitivamente com as tradicionais teorias da interpretação fundadas em métodos que buscam justificar retoricamente o resultado alcançado. Desde então o sentido da lei é fundado nos jogos de linguagem prévios e presentes no contexto prático em que os falantes vivem.
Outra contribuição inestimável diz respeito à possibilidade de exercer certo controle do significado a ser atribuído ao texto normativo sem recair na artificial tentativa - das escolas positivistas exegéticas – de buscar um exato e real sentido da lei. Isso quer dizer que deve haver o controle da discricionariedade judicial e a vinculação do jurista às palavras da lei – sem que essa observância do texto legal signifique a adoção de um ponto de vista positivista – muito pelo contrário. Ora, na práxis jurídica atual isso se mostra imprescindível.
Wittgenstein deu um passo fundamente rumo à teoria da significação com o diagnóstico dos jogos de linguagem. Contudo, a negação do status teórico da filosofia e a ausência de um pensamento sistemático dos atos de fala deixaram importantes lacunas, mesmo no seio da pragmática. De outro lado, a problemática relacionada à decisão judicial é bem mais complexa, envolvendo o entendimento de premissas hermenêuticas. Temas para colunas vindouras.

[1] Cf. HINTIKKA, Jaakko; HINTIKKA, Merrill. Uma investigação sobre Wittgenstein. Trad. Enid Abreu Dobránsky. Campinas: Papirus, 1994. p. 21 e 32.
[2] Ibidem, p. 73-78 e 209.
[3] Ibidem. p. 163.
[4] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. p. 111.
[6] Nesse sentido: TUGENDHAT, Ernest. Lições introdutórias à filosofia analítica da linguagem. Trad. Ronai Rocha. Ijuí: Unijuí, 2006. p. 185.
[7] Ibidem, p. 247.
[8] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 146.
[9] HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. (Col. Biblioteca Tempo Universitário). p. 111.
[10] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta..., p. 139.
[11] HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico..., p. 118

sábado, 8 de novembro de 2014

Gorbachev: 'mundo está à beira de nova Guerra Fria'

Gorbachev: 'mundo está à beira de nova Guerra Fria'

       
O último presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, deixa sua marca no molde de gesso acoplado a um pedaço original do muro do Checkpoint Charlie, em 7 de novembro de 2014, durante evento em Berlim© AFP O último presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, deixa sua marca no molde de gesso acoplado a um pedaço original do muro do Checkpoint Charlie, em 7 de novembro de 2014, durante…
O último dirigente da União Soviética (URSS), Mikhail Gorbachev, afirmou neste sábado que o mundo está "à beira de uma nova Guerra Fria" - em entrevistas à imprensa alemã pelas celebrações do 25º aniversário da Queda do Muro de Berlim.
"O mundo está à beira de uma nova Guerra Fria", declarou o ex-líder soviético, de 83 anos, em clara referência à atual crise ucraniana. "Alguns dizem que já começou", completou Gorbachev, avaliando que, nos últimos meses, "a confiança se quebrou".
"Lembremo-nos de que não pode haver segurança na Europa sem a cooperação entre Alemanha e Rússia", advertiu ele, em um ato organizado pela Fundação Cinema for Peace, da qual ele faz parte.
Em entrevista à emissora suíça de rádio e televisão RTS, que será transmitida neste domingo, Gorbachev disse ainda: "estão tentando nos levar para uma nova Guerra Fria. Vemos novos muros. Na Ucrânia, querem cavar um enorme fosso".
"O perigo continua lá", alertou.
"Eles acham que ganharam a Guerra Fria, mas não houve vencedor. Todos ganharam", comentou, acrescentando que "atualmente, querem começar uma nova corrida armamentista".
Ao ser questionado se estaria se referindo aos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Gorbachev disse que "a Otan é um instrumento que se utiliza".
Em Berlim, onde ficará por vários dias por ocasião do 25º aniversário da Queda do Muro, o ex-líder soviético se reunirá com a chanceler alemã, Angela Merkel, na segunda-feira.
Antes de embarcar para a Alemanha, Mikhail Gorbachev declarou que defenderá a posição do presidente russo, Vladimir Putin, em seu encontro com Merkel.
"Estou totalmente convencido de que Putin defende hoje em dia os interesses da Rússia melhor do que ninguém. É claro que há coisas em sua política que geram crítica, mas não vou fazer isso (criticar), nem quero que outra pessoa o faça", afirmou.

Torcida do Galo contra o Flamengo


Atlético-MG 4 x 1 Flamengo - Luiz Penido provoca o Galo ( Aúdio de todos...


sábado, 1 de novembro de 2014

Profº Heitor - NOVOS DOMÍNIOS DA HISTÓRIA - PARTE 1


Essa eleição é a mais suja da história, diz Villa


Furacão Marina é fenômeno sem precedentes, diz Villa


Aqui entre nós: debate com os colunistas


Aqui entre nós com Lobão


Privatizações: a distopia do capital (2014), de Silvio Tendler


Terceirização em Direito do Trabalho - Profº Roberto Comporto