O Museu da Memória
 
O maior museu sobre uma ditadura militar sul-americana, o "Museo de La Memoria y Los Derechos Huamanos", faz do Chile um pioneiro no enfrentamento de uma das memórias mais tristes da história recente do país. Confira.

Depois de um artigo bastante comentado sobre a “Escuela de Mecanica de La Armada” (ESMA), principal centro de detenção e tortura da ditadura argentina, e de uma videopalestra ao vivo e online com o historiador Carlos Fico, que falou sobre a “Operação Brother Sam”, no Brasil, o especial “Ditaduras Militares da América do Sul”, produzido pelo Café História, chega ao Chile, um dos países mais democráticos e desenvolvidos do continente, mas que, no passado, enfrentou uma das forças autoritárias mais devastadoras da região: a ditadura de Augusto Pinochet. Neste novo artigo, o CH busca mostrar como o Chile, com seus pouco mais de 17 milhões de habitantes, é um país que tenta compreender sua memória e seguir adiante, mesmo após tanta violência.

Um passado dramático

Em 11 de setembro de 1973, um grupo de militares chilenos, com expressivo apoio logístico, econômico e militar dos Estados Unidos, além de setores da própria sociedade civil chilena, empreendeu um golpe que culminou com a morte do então presidente do Chile, Salvador Allende, de tendência socialista, e instaurou uma violenta ditadura que duraria até 1990, quando Augusto Pinochet, principal ícone deste período, entregou seus poderes ao primeiro presidente eleito em muitos anos. Segundo informe da Comisión Nacional sobre Prisión y Tortura (CNPPT), publicado em 2004, 28.459 pessoas foram vítimas de prisões políticas e de tortura no país, sendo que mais de um terço nunca se envolveu com nenhum tipo de militância política.

Vinte anos após o fim da sangrenta ditadura – calcula-se mais de 3000 mortos – organizações que lutam pelos direitos humanos no país, em parceria com o Palácio de La Moneda, demonstram que o Chile está pronto para enfrentar de frente todos os crimes cometidos durante a ditadura militar. O grande símbolo desta empreitada é sem dúvida nenhuma o novíssimo “Museo de La Memoria y Los Derechos Humanos”, inaugurado em janeiro de 2010 na capital Santiago, e cuja missão é dar visibilidade às violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado do Chile entre os anos de 1973 e 1990.

A história do “museu da memória”, como é mais conhecido, começou ainda em 2007, quando o Ministério de Obras Públicas do Chile abriu um concurso público destinado a selecionar o projeto de arquitetura para a construção do museu. Dos 57 projetos inscritos e avaliados, o vencedor foi o do escritório brasileiro “Estúdio Américo”, integrado pelos arquitetos Mario Figueroa, Lucas Fehr y Carlos Dias. Com o aval da então presidenta chilena, Michele Bachelet, as obras começaram rapidamente, ainda em 2008. E apenas dois anos depois, em 11 de janeiro de 2010, o museu abria suas portas ao público, recebendo mais de 2000 visitantes no primeiro dia. (Clique aqui para ver uma reportagem sobre a inauguração do museu).
A reportagem do Café História esteve em janeiro de 2011 em Santiago e pôde constatar a importância que o museu possui hoje, apenas um ano depois de sua inauguração. Trata-se em todos os sentidos de uma construção imponente. Primeiro do ponto de vista arquitetônico. A superfície construída do museu é de 5.500 metros quadrados. A estes se somam ainda 1.700 metros quadrados de espaços cobertos no exterior e outros 300 metros quadrados de auditório. Visto de fora, o prédio chama a atenção de quem passa pela rua. Sua fachada foi construída completamente por um revestimento de cobre, metal símbolo da prosperidade e da identidade chilena. Mas por trás de todo o cobre, estão muros de cristal. Abaixo do prédio principal, encontram-se centenas de degraus, que levam a entrada do museu, e também um longo espelho d'água. Uma estrutura e função que podem ser comparados em sua grandeza a outros museus, como o Yad Vashem, em Israel, dedicado a memória do Holocausto.

Dentro do prédio, o visitante encontra seis pavimentos: três de exposição permanente, o pavimento térreo de entrada e dois subsolos, onde acontecem outras exposições. Uma dessas exposições, que também é permanente, chama-se "La Geometria de la Conciencia", criada pelo artista contemporâneo Alfredo Jaar. O visitante entra em uma sala totalmente escura. Depois de alguns minutos de desorientação, as paredes da sala são ligadas com uma luz branca fortíssima, dando visibilidade a milhares de siluetas anônimas, ampliadas com o recurso de espelhos. A experiência é extremamente intensa e faz com que as pessoas reflitam sobre a infinidade dos crimes cometidos, sobre a angústia e o despreparo diante do incerto.

Já dentro do prédio principal, encontra-se o maior patrimônio material e imaterial do Chile a respeito da ditadura militar que governou o país. Tendo como base a memória, a museografia dá amplo destaque a todo tipo de testemunhos, relatos e impressões daqueles que viveram de perto o terror do autoritarismo. Essas memórias estão divididas entre muitas alas. Uma das principais, respeitando o tempo linear, conta como foi o golpe que depôs e matou Salvador Allende, o bombardeio ao Palácio de La Moneda e os assassinatos cometidos contra militares e aliados do governo derrubado, durante o triste episódio das execuções sumárias, no Estádio Nacional. Outra ala mostra recortes de jornais durante todo o período da ditadura e documentos trocados entre embaixadas, familiares e organismos internacionais. Mas duas alas merecem destaque especial. A primeira diz respeito aos relatos de militares que leais a Allende resistiram e pagaram um preço caro por isso.

 Alguns foram mortos, outros perseguidos e muitos exonerados de suas funções. Trata-se de um tipo de resistência muito pouco conhecido por grande parte das pessoas. A segunda, com certeza a mais dura de todos, é dedicada ao olhar das crianças: são relatos e desenhos feitos em escolas ou no exílio e que ajudam a contar o clima que se instalou no Chile entre 1973 e 1990 do ponto de vista da inocência rompida.

Mesmo tendo tão pouco tempo de existência, o espaço já é uma referência para os chilenos, principalmente pesquisadores, uma vez que o museu oferece um Centro de Documentação e Biblioteca bastante organizado e produtivo. Qualquer historiador, no Chile, que estuda o período da ditadura certamente já fez do CEDOC do Museu da Memória a sua base avançada para estudos e pesquisas. Além disso, o museu vem se tornando um ponto obrigatório para turistas. É possível escutar muitas línguas dentro do museu, inclusive o português. (nos últimos anos, segundo dados oficiais, os brasileiros são os turistas número 1 do Chile). Com isso, o objetivo principal do museu começa a ser alcançado, ou seja, divulgar esta memória do terror para o maior número de pessoas e envidar espaços para que algo do gênero nunca mais possa ocorrer novamente. Na época da inauguração, a então presidente do Chile, Michelle Bachelet, ela própria detida e torturada durante a ditadura, considerou que o museu é "um símbolo poderoso do vigor do Chile unido (...) na promessa de não voltar a conhecer uma tragédia como esta". E adiantou: "Não podemos mudar o passado, mas sim aprender com o que foi vivido".

Um país dividido?

Embora a crença em um país unido – sentimento bastante trabalhado durante todo o ano de 2010, por conta das festas do bicentenário da independência – encontre muitos monolítico. Na população, ainda há muitos os que defendem o regime de Pinochet. Coisa que até mesmo os próprios críticos de Pinochet reconhecem. Miguel, responsável pela segurança do Museu da Memória, é um deles: “Aqui no Chile, somos 50%, 50%”.

Talvez não seja exatamente nesta proporção. Mas o fato é que os simpatizantes de Pinochet existem e são bastante ativos. Exemplo disso é a Fundação Pinochet, fundada em 1995 com o objetivo “difundir às novas gerações, a obra e o legado do Governo do Presidente Pinochet”. Recentemente, uma das principais ações da Fundação foi a abertura do “Museo Pinochet”, em Santiago, que reúne centenas de objetos e documentos que pertenceram a Pinochet, falecido em 2006. O Café História tentou visitar o Museu, mas não obteve sucesso. O Museu, que exige agendamento prévio, sequer deu alguma resposta à nossa equipe de reportagem, nem uma palavra, mesmo tendo sido efetuados todos os requisitos de visita, o que pode ser um sinal de que Pinochet, ao contrário do que se pensa, não goza assim de tanta simpatia entre tantos chilenos.
O próprio site da instituição (http://www.fundacionpresidentepinochet.com/museo.htm) é discretíssimo, reservado, prioritariamente, aos “amigos e sócios” da Fundação Pinochet. Nas ruas, poucos conhecem a instituição.

De qualquer forma, não é fácil explicar como um regime que fez tantas vítimas, que empregou tantos meios violentos e repressivos na luta política, ainda goza de algum prestígio. Alguns alegam a estabilidade econômica vivida pelo Chile no auge do governo Pinochet. Outros, alegam que esta realidade reflete a organização partidária no país, onde a direita é muito bem articulada. Seja qual for a razão, a memória continua sendo um objeto em disputa no Chile, elemento chave para se compreender como uma das mais sangrentas ditaduras militares da América do Sul ainda está presente no dia a dia de milhões de pessoas, no museu pessoal que cada um possui dentro de si.

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