A Escola do Terror da Ditadura Militar Argentina
Hoje transformado em museu, a Escuela de Mecánica de La Armada (ESMA) foi durante muito tempo o quartel general da violenta ditadura militar argentina em Buenos Aires

A Escuela de Mecánica de La Armada (ESMA), localizada no rico bairro de Nuñez, norte de Buenos Aires, é um lugar que ainda provoca calafrios em seus visitantes. O lugar foi o principal centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da ditadura argentina, que dirigiu com mão de ferro o país entre os anos 1976 e 1983. Entidades na área dos direitos humanos calculam que dos mais de cinco mil detentos da ESMA, apenas algumas centenas conseguiram escapar com vida e dar seus testemunhos, fundamentais para que hoje se conheça a lógica de funcionamento deste espaço.

Fundada em 1924 para funcionar como um centro de formação técnica para a carreira militar, a ESMA teve sua função original rapidamente transformada com a chegada dos militares ao poder, após o golpe de 1976. A partir deste ano, mesmo funcionando ainda como escola, suas instalações passaram a ser utilizadas por diversos grupos repressivos. O principal grupo repressivo da ESMA era o chamado "Grupo de Tarefas (GT) 3.3.2". Dividido em diversas seções (Inteligência, Operações, Logística e Guardas), o GT era responsável por boa parte das operações criminosas da ditadura em Buenos Aires. Planejava e realizava seqüestros, promovia interrogatórios, torturas e condenava centenas de pessoas ao trabalho semi-escravo. Ao interior da ESMA chegavam todos os dias dezenas de pessoas. Milhares desapareceram em seus sótãos e porões. Mas o GT não era o único a utilizar as instalações. Estas também foram colocadas à disposição de outros grupos repressivos que exerceram na Argentina dos anos 1970 e 1980 um verdadeiro Terrorismo de Estado: Comandos da Aeronáutica, Prefeitura Nacional Marítima, Serviço de Inteligência Naval e ouros grupos policiais e militares que levavam ilegalmente para a ESMA homens, mulheres e até mesmo crianças.

O principal edifício da ESMA chamava-se "Casino de Oficiales", também conhecido pelo GT como "Selenio", "El Dorado" ou "Casa de Oficiales". Nele, encontrava-se o alojamento dos prisioneiros e o dormitório dos oficiais. Suas instalações sofreram várias mudanças durante o período 1976/1983, sobretudo quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) anunciou em 1979 uma visita ao local, após receber inúmeras denúncias de tortura e maus tratos aos prisioneiros. Temendo uma desaprovação internacional, paredes foram derrubadas e outras erguidas. Elevadores foram desativados e habitações remodeladas, tudo para esconder dos representantes da CIDH as violações aos direitos humanos. Neste edifício de três andares, funcionavam ainda o sótão e o porão, respectivamente chamados de "Capucha" y "Capuchita", uma referência clara ao "capuz" que cobriam a cabeça dos presos. Nestes dois espaços ocorreram torturas, interrogatórios e trabalhos forçados. Para os militares da ESMA, entretanto, conforme anunciavam a imprensa nacional e estrangeira, o local não passava de um centro de reabilitação de subversivos, os quais se apresentavam voluntariamente a ESMA para que ali pudessem ser “curados” de sua subversão. Neste sentido, o regime militar, por humor negro ou mesmo por uma deturpada ideologia, via os seus adversários e críticos como corpos doentes.
A ESMA também contava com outros espaços, além do "Casino de Oficiales". Eram eles: o "Pavilhão Coy" (dormitório dos aspirantes a suboficiais e centro de operações do GT), a Enfermaria e a Garagem (encarregada de reparar e modificar carros do GT). Mas um dos prédios que mais impressiona é o da "Imprenta". Neste prédio, funcionava um grande escritório de falsificação de documentos. Com máquinas modernas de impressão, e laboratórios fotográficos de alta tecnologia, eram forjados carteiras de motoristas, identidades, passaporte e todo tipo de papel que pudesse servir aos militares para aumentar os “crimes” dos detidos. Neste prédio, os militantes eram também obrigados a editarem falsos jornais de esquerda, divulgados para a imprensa como prova dos alegados crimes de subversão. Segundo testemunhas que trabalharam neste setor, a falsificação era levada tão a sério pelos militares que os jornais produzidos ali eram mais marxistas do que qualquer outro fora da ESMA. Toda esta estrutura surpreende não só pela infra-estrutura de que lançava mão, mas porque se tratava do próprio governo falsificando seus documentos oficiais.
Nos sete anos de regime autoritário, quase todo homem ou mulher seqüestrado pelos militares em Buenos Aires e adjacências passou pela ESMA. Era tal a quantidade de bens e imóveis saqueados e tomados pelo regime, que em 1978 foi criada uma imobiliária para vender as casas dos seqüestrados.

Museu da Memória
Em junho de 2000, dezessete anos após o fim do regime militar, a Legislatura da Cidade de Buenos Aires aprovou por unanimidade a Lei 392, que revogou a concessão do prédio no qual se encontra construída a “Esculea de Mecánica de la Armada” e ordenou destinar seus edifícios à instalação do "Museu de la Memoria". Quatro anos depois, em 24 de março de 2004, data do 28º aniversário do golpe militar, o então presidente Néstor Kirchner ordenou a desocupação das instalações militares do lugar e a restituição desta à prefeitura. A propriedade a partir daquele momento passaria a ser administrada pelo governo federal, pela prefeitura e por associações de direitos humanos. O desalojamento total, porém, só se concretizou em 30 de setembro de 2007. Naquele mesmo ano, nasceu o "Espacio para la Memoria y para la Promocíon y Defensa de los Derechos Humanos”, uma grande conquista do governo democrático e dos grupos militantes que buscam hoje por justiça.
Nos últimos anos, a ESMA tornou-se um museu de referência para os moradores de Buenos Aires e também para turistas. Todos os dias ocorrem visitas guiadas pelas antigas instalações. Em paralelo, ocorre um trabalho minucioso de perícia que tenta resgatar a verdade do lugar. Uma equipe especializada em restauração faz pesquisas nas estruturas prédios, o que está contribuindo decisivamente para a elaboração de laudos que podem ajudar a colocar na cadeira os oficiais que estiveram por trás dos abusos de poder. Segundo os administradores do novo espaço, o museu tem como missão e função "a proteção e transmissão da memória e da história dos fatos ocorridos durante o Terrorismo de Estado, dos anos 1970 e início dos anos 1980 até a recuperação do Estado de Direito, assim como os antecedentes, etapas posteriores e conseqüências, com o objetivo de promover o aprimoramento do sistema democrático, a consolidação dos direitos humanos e a prevalência dos valores solidários da vida, da liberdade e da dignidade humana." A ESMA, hoje transformada em museu, é parte integrante de outras ações e espaços que integram o "Instituto Espacio para la Memoria": www.institutomemoria.org.ar.

Desaparecidos
Mesmo enfrentando uma memória extremamente sensível, os traumas causados pela ditadura militar argentina estão longe de fazer parte do passado. Os efeitos do tempo de autoritarismo são fortes ainda hoje. É o caso das famílias que tentar encontrar seus entes desaparecidos. Segundo a CONADEP (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), criada no final da ditadura pelo governo constitucional de Raúl Alfonsín, o número de desaparecidos —de acordo à quantidade de denúncias judiciárias apresentadas por vítimas e familiares— rondaria as 9.000 pessoas, Outros grupos, entretanto, chegam a números ainda maiores. A importante associação das Mães da Praça de Maio e o Serviço Paz e Justiça falam em 30.000 mil desaparecidos, dos quais aproximadamente 5 mil tenham passado pela ESMA.
O número de desaparecidos e torturados é tão alto que é comum encontrar escritores, jornalistas e militantes que comparem a violência da ditadura com aquela promovida pelo regime nazista. Usa-se cada vez mais, por exemplo, o termo "genocídio" para qualificar os crimes cometidos pelo Estado. E a classificação não parece ser um exagero. De tempos em tempos, são encontradas antigas valas utilizadas como cemitério clandestino de antigos militantes argentinos.

Outro drama que mexe com a Argentina de hoje refere-se às mães e avôs da Praça de Maio. Elas fazem parte de associações de direitos humanos que tentam descobrir o que aconteceu a seus filhos e netos seqüestrados. Hoje, uma das maiores bandeiras desse tipo de associação refere-se aos bebês nascidos dentro de prisões clandestinas. Dentro da própria ESMA havia quartos especiais para militantes grávidas. Após o nascimento, na maioria dos casos, as crianças eram separadas das mães e dadas para a adoção. Este drama foi muito bem documentado no filme argentino "A História Oficial", que venceu o Oscar de 1986 na categoria de melhor filme estrangeiro. Apesar da dimensão enorme da tragédia, muitos avanços foram conquistados em mais de três décadas de luta. Desde 1977 foram localizados e restituídos dezenas de crianças, hoje jovens na casa dos trinta anos. É essa temática, inclusive, responsável por uma das principais polêmicas recentes relacionadas aos esforços do governo argentino em apurar a verdade: o governo argentino deve realizar testes de DNA para descobrir a identidade de jovens suspeitos de terem nascidos em cativeiros independente da vontade destes ou deve ser respeitada a vontade de cada um? (Responda a esta pergunta clicando aqui e participe desta importante discussão do Café História)
Polêmicas à parte, a Argentina parece despontar como um exemplo no que diz respeito ao enfrentamento do passado, tal como o Chile (que será objeto do próximo artigo do Café sobre as ditaduras sul-americanas). Para os brasileiros, público majoritário do Café História, fica a esperança de que ocorra no país algo semelhante no Brasil, não apenas no sentido de uma memória que precisa ser lembrada para não ser repetida (algo que não se pode garantir por si só), mas também (e sobretudo) para que se faça justiça.

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