clóvis rossi


11/11/2012 - 07h00

O perigoso autismo de Cristina

Entrava a madrugada de 24 de março de 1976. A presidente da Argentina, Isabelita Perón, deixava de helicóptero a Casa Rosada, a sede do governo.
Logo em seguida, toca o telefone no escritório de Flávio Tavares, então correspondente do jornal mexicano "Excelsior" e "free-lancer" do "Estadão", para o qual eu trabalhava à época. Assessores da presidente nos ofereciam uma entrevista exclusiva, na Quinta de Olivos, a residência oficial.
Olhamo-nos perplexos. Sabíamos que um golpe militar estava em marcha há dias e tínhamos todas as razões para crer que o helicóptero não estava levando Isabelita para Olivos mas para algum dependência militar, como prisioneira. De fato, o golpe consumou-se minutos depois.
Conto o episódio para ilustrar a capacidade que têm muitos governantes, em especial na Argentina, de isolar-se da realidade que os rodeia. Temo que Cristina Fernández de Kirchner possa estar sendo vítima de idêntico autismo político, a julgar por sua reação à impressionante manifestação da quinta-feira em Buenos Aires, com atos menos espetaculares em vários outros pontos do país.
Antes que os hidrófobos do kirchnerismo me fuzilem, deixo claro que não há termo de comparação entre Isabelita e Cristina. A atual presidente é uma política de raça, goste-se ou não dela, e Isabelita nunca passou de uma cantora de cabaré que chegou à Presidência pelo compartilhamento da cama com o general Juan Domingo Perón.
Mas o risco de não entender os ruídos da rua é permanente, para todos os governantes, de raça ou não. Atribuir a uma suposta conspiração da direita o megapanelaço de quinta é fingir desconhecer a história. A direita argentina jamais teve capacidade de mobilização popular. Sempre que ficava descontente, mobilizava os militares, como o fez contra Isabelita.
A manifestação de quinta leva todo o jeito de uma repetição dos panelaços espontâneos de 2001 que forçaram outro presidente, Fernando de la Rúa, a fugir, também de helicóptero, depois de decretar um estado de sítio tão irrealista quanto a entrevista que a assessoria de Isabelita nos prometia.
Cristina não tem o direito de ignorar que a popularidade que lhe permitiu reeleger-se, em 2011, está sendo crescentemente corroída pelos problemas econômicos visíveis até a olho nu.
Basta lembrar que, se o crescimento econômico em seus cinco anos de governo foi de apreciáveis 5,5% ao ano na média (mais que a média de Lula no Brasil), agora a economia está praticamente estancada (crescimento de 1,4% de agosto-2011 a agosto-12). Sem falar na maquiagem da inflação ou nos problemas de energia elétrica ou nos controles cambiais, que nunca funcionaram na Argentina, ainda que repetidamente ensaiados.
Cercar-se de incondicionais e brigar com o resto dos argentinos pode não levar a presidente a fugir de helicóptero, mas é a melhor maneira de enterrar os sonhos, dela ou de seus próximos, de uma re-reeleição e de levar o kirchnerismo a não fazer sucessor em 2015.


crossi@uol.com.br
Clóvis Rossi Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. Assina coluna às terças, quintas e domingos no caderno "Mundo". É autor, entre outras obras, de "Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo" e "O Que é Jornalismo". Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno "Mundo" e às sextas no site.

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