17/01/2012 11h08 - Atualizado em 17/01/2012 11h08

Entrevista: José Murilo de Carvalho aborda a cidadania política na história

Historiador que escreveu biografia de D. Pedro II detalha a obra


José Murilo de Carvalho (Foto: Felipe Fittipaldi)José Murilo de Carvalho (Foto: Felipe Fittipaldi)
José Murilo de Carvalho é graduado em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e doutor em Ciência Política pela Universidade de Stanford e pós-doutor em História da América Latina pela Universidade de Londres (1977), atualmente é professor titular de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Suas pesquisas concentram-se na História do Brasil Império e Primeira República, com ênfase nos temas cidadania, republicanismo e história intelectual. É membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras e tem dez livros publicados.

Aproveitando a estreia da minissérie Brado Retumbante nesta terça-feira, 17, relembre alguns momentos históricos nacionais com a entrevista de José Murilo de Carvalho, concedida originalmente ao Globo Universidade em 2009.
Globo Universidade – Conte-nos o que lhe despertou o interesse pela História.

José Murilo de Carvalho – Meu interesse pela História foi despertado por um dos professores da faculdade chamado Francisco Iglesias, que era um dos mais conhecidos historiadores mineiros. Ele faleceu há pouco tempo, mas era um excelente historiador e professor. Além de ser apaixonado por História, a ligava a diversos outros campos de conhecimento, como o Cinema e a Literatura, o que tornava o estudo da História uma atração especial. O método de ensino dele baseava-se em não dar respostas fechadas aos estudantes, já que qualquer tema pode ser tratado historicamente. Daí sua tática de despertar a criatividade, ampliar os interesses. Outra motivação foi um professor da Faculdade de Direito de Minas chamado Orlando de Carvalho, que criou há muito tempo a Revista Brasileira de Estudos Políticos, uma das mais importantes publicações especializadas no assunto no Brasil. Foi lá que eu publiquei meu primeiro trabalho, um estudo histórico sobre a cidade onde passei a infância, Barbacena [MG], que era conhecida por uma briga política, desde 1930, entre duas famílias: os Dias e os Andradas.

GU – Que contribuições para a pesquisa no Brasil o senhor trouxe após a atuação como pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos?


JMC – Foi em Princeton que eu comecei a sair estritamente da história política, embora ainda seja o cerne do meu trabalho, e me voltei para a história social. O convívio com especialistas de diversas áreas, incluindo gênios da Matemática, fez-me perceber a questão da interdisciplinaridade com mais força. Havia economistas que se interessavam pelo estudo da Sociologia, da História da Arte... Na obra A Formação das Almas, por exemplo, eu trabalho com literatura, quadros, iconografias e imagens. Além disso, sair do país para entender o próprio país é uma experiência muito enriquecedora. Em vez de ficar olhando para o próprio umbigo, você ouve opiniões de outras pessoas sobre o seu país que são completamente distintas das suas. Aqui, no Brasil, há tentativas de adotar o modelo dessa instituição. Existe o Instituto de Estudos Avançados da USP, e a UFMG tem o Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares [IEAT], do qual sou membro, em que são selecionados pesquisadores de várias áreas e eles têm total liberdade para fazer o que acharem importante ser feito. É uma experiência de intercâmbio fascinante.
José Murilo de Carvalho (Foto: Felipe Fittipaldi)O historiador fala sobre sua carreira (Foto: Felipe Fittipaldi)
 
GU – Como foi o retorno ao ensino na graduação após 20 anos de afastamento?

JMC – Lecionei na pós-graduação do Iuperj [Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro] de 1976 a 1996. Em 1986, parei de lecionar na graduação e retornei em 2006 na UFRJ. Voltar a ensinar na graduação foi impactante. É uma diferença muito grande você falar para 60 alunos em vez de 15. Outro ponto foi a postura dos alunos em relação ao estudo. Eu me formei no início de 1965 numa faculdade em que os alunos, além de estudar muito, tinham bons hábitos de leitura. Isso na História é muito sério. Pode parecer saudosismo, mas é um fato concreto. E outra coisa curiosa é que não havia líder estudantil que não estivesse entre os melhores alunos da sala. Isso era quase uma necessidade para ter liderança. Quando eu voltei dos Estados Unidos, em 1969, e comecei a dar aula, era durante a ditadura e isso já tinha mudado radicalmente. Os alunos que eram líderes estudantis faziam questão de não entrar em sala de aula, como se o professor fosse conivente, e isso alterou profundamente a natureza do movimento estudantil. Quando voltei a dar aula na graduação, percebi que, embora não chegue a este ponto, ainda há um pouco essa separação.
GU – A temática de suas obras começa na construção da nação, mas atualmente está focada no cidadão...

JMC – Exatamente. É um percurso muito claro. Minha tese de doutorado era, sobretudo, sobre a formação do Estado no século XIX. Mas o próprio estudo de formação do Estado levou-me à Proclamação da República, o que me fez passar da análise da formação do poder para a formação da identidade nacional. Isso passou a me interessar, sobretudo no início da República no Brasil. E na mesma época eu comecei a estudar o movimento operário. O seguinte passo veio em função da Constituinte e da Constituição de 1988, chamada de “Constituição Cidadã”. Foi um período de euforia, em que se esperava que a Constituição fortalecesse e impulsionasse os direitos do cidadão em todas as suas dimensões. Passaram-se 10 ou 12 anos da Constituição e muita coisa não tinha mudado. Esse fenômeno me levou a tratar historicamente esse acontecimento da cidadania. Daí o livro Cidadania no Brasil. Ele é produto, de certo ponto, da Constituição de 1988, de uma reflexão histórica sobre aquele momento que estávamos vivendo. Um historiador estuda o passado, mas frequentemente a agenda dele é o tempo presente. Ele vai voltar ao passado para se perguntar, para tentar entender aquilo que está acontecendo nos seus dias.
José Murilo de Carvalho (Foto: Felipe Fittipaldi)José Murilo de Carvalho lançou a biografia de Pedro II em 2007 (Foto: Felipe Fittipaldi)
 
GU - Em 2007, você lançou a biografia de Pedro II. Gênero que os historiadores, em geral, não valorizam muito...

JMC – É verdade. Por isso nunca tinha me arriscado em fazê-la, além de não ter prática de escrever biografias. Parece simples, mas requer extenso levantamento de dados. Fui convidado pela Companhia das Letras, que tem a coleção Perfis brasileiros. A opção que tinham me dado inicialmente era Pedro I, mas minha tese de doutorado foi sobre o Segundo Reinado. Porém, meu foco era a vida política e não o ponto de vista biográfico. Assim meu desafio foi retomar o estudo sobre o ponto de vista do imperador, colocando-o como centro da discussão.
GU – Sua biografia aborda a figura de D. Pedro II sob um ângulo menos caricatural?

JMC – Sempre que há a transição de um regime para outro é natural que haja uma crítica ao antigo regime para legitimar o novo. Assim, nesse período houve uma tentativa, não digo de desmoralizar, porque D. Pedro II era respeitado, mas a imagem dele ficou muito marcada por seus últimos anos, quando já estava doente. Inclusive os apelidos que lhe foram atribuídos, “Pedro Banana”, por exemplo, traduziam a ideia de uma figura meio medíocre, sem importância, um pobre velhinho. Esse foi um ponto central que eu combinei com a editora: a foto de capa não poderia ser o D. Pedro velho. Ele governou o país por 49 anos! Tinha a sua força. Outro aspecto do governo dele, abafado pela República, e que eu fiz questão de enfrentar, foi a sua atuação no sentido de tentar acabar com a escravidão, apesar de ser um monarca. A liberdade de imprensa na época era bem maior do que hoje. Poderiam ser ditas coisas horríveis sobre D. Pedro e ninguém era processado. Ele não admitia ações contra jornalistas. O respeito pelo dinheiro público foi um assunto da biografia que eu salientei de propósito. Ele era de uma honestidade a toda prova. Esse aspecto aparece no livro em contraponto às crises recentes na política brasileira. Ele não aceitou ter seu salário aumentado durante os 49 anos, mandava descontar verbas do seu salário para contribuir com a guerra e pagava do seu bolso as despesas em viagens ao exterior. Não que isso fosse desconhecido, mas contrasta muito fortemente com o momento histórico em que a gente vive. Por isso resolvi destacar. Ele tinha uma noção de honestidade que no livro me refiro como republicana. Ele é republicano no sentido de que ele respeita a coisa pública. Tem uma postura de civismo, de dedicação, de serviço público.
José Murilo de Carvalho (Foto: Felipe Fittipaldi)José Murilo de Carvalho pesquisa panfletos da época da Independência do Brasil (Foto: Felipe Fittipaldi)
 
GU – Fale um pouco sobre a prática intelectual no Brasil.

JMC – O papel do intelectual está se transformando. O grupo dos intelectuais costumava ser muito pequeno e fechado. Até o século XIX, eles tinham várias profissões. Muitos eram políticos, jornalistas, romancistas, poetas, ensaístas, tudo ao mesmo tempo. Depois da implantação das universidades no Brasil, na década de 1930, multiplicou-se o número de intelectuais especializados — são historiadores, economistas, políticos etc. Isso tornou a produção intelectual mais rica, complexa, sobretudo após o fim da ditadura. Outro aspecto é que, sendo um grupo muito pequeno, eles tinham essa visão messiânica de que intelectual é o grande iluminado, que vai apontar os caminhos, ou, na vertente mais de esquerda, quase missionários, como uma guarda do povo. Isso também está desaparecendo, por causa exatamente dessa multiplicação, dessa democratização do campo intelectual, o que é bastante positivo, pois os problemas são complexos e devem ser alvo de discussão. Não podem ser resolvidos com um guru que diga o que fazer. Outro avanço que percebo é no campo da pesquisa em termos qualitativos e quantitativos nas ciências sociais, exatas e biológicas.
GU – Do que se trata a sua pesquisa sobre Os panfletos da Independência?

JMC – A ideia é um levantamento dos panfletos, isto é, pequenos textos, às vezes de uma página, outros de dez páginas, mas textos voltados para a briga política, para a conjuntura política. A busca foi feita em primeiro lugar na Biblioteca Nacional, depois na Biblioteca Nacional de Lisboa, também em coleções particulares, no Instituto Histórico e Geográfico e em outras bibliotecas no exterior, como nos Estados Unidos. Chegamos a um número surpreendente de 500 textos, que mostrou uma imagem do processo de Independência bem distinto, porque eles significavam uma interferência das pessoas, um debate público muito intenso. Alguém daqui respondia a alguém de Lisboa, que por sua vez respondia de lá, enfim, era uma discussão muito grande sobre os temas do momento: “D. João deve ou não deve voltar? O Brasil tem que se separar de Portugal ou não?”. Tudo isso era discutido.
GU – Quais aspectos debatidos nos panfletos permitiram-lhe perceber que o processo de Independência ocorreu de maneira distinta?

JMC – Compreendemos que houve intenso envolvimento popular. A imagem da Independência é que se passou a coroa da cabeça do D. João para D. Pedro I e D. Pedro foi o grande herói da Independência. Não é bem isso que esses panfletos demonstram. Primeiro D. Pedro foi praticamente forçado a ficar. Ele ia voltar; não voltou por manifestações. No Fico, 8 mil assinaturas foram enviadas para ele numa cidade que tinha 70 mil habitantes. Isso mostra nossa Independência como algo feito não só pela elite, mas também por representações populares junto à corte. Quanto ao conteúdo, é surpreendente que, tanto nos panfletos, como nessas representações nas câmaras municipais, as pessoas estavam muito conscientes e conhecedoras de teorias políticas clássicas. Por exemplo, o autor inglês do contratualismo, Locke [John Locke], ou Montesquieu, filósofo francês, eram citados frequentemente. A ideia da política como contrato era observada em trechos do tipo: “Nós temos um contrato com D. Pedro I para fundar uma monarquia constitucional, se ele dissolve a Constituinte, ele rompe o contrato. Ele é aceito como imperador desde que constitucional”. Esses panfletos mostram certa sofisticação intelectual que, em geral, não é apontada em nenhum estudo mais complexo.
José Murilo de Carvalho (Foto: Felipe Fittipaldi)José Murilo de Carvalho (Foto: Felipe Fittipaldi)
 
Produção bibliográfica:

CARVALHO, J. M. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
CARVALHO, J. M. Ciudadanía en Brasil: el largo camino. Havana: Casa de las Américas, 2004.
CARVALHO, J. M. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
CARVALHO, J. M. (Org.) Visconde do Uruguai. São Paulo: Editora 34, 2002.
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
CARVALHO, J. M. (Org.) Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Editora 34, 1999.
CARVALHO, J. M. Pontos e Bordados. Escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
CARVALHO, J. M. La formación de las almas. El imaginario de la república en el Brasil. Quimes: Universidad Nacional de Quilmes, 1997.
CARVALHO, J. M. A Construção da Ordem/Teatro de Sombras. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
CARVALHO, J. M. Desenvolvimiento de La Ciudadania en Brasil. México: Fondo de Cultura Economica, 1995.
CARVALHO, J. M. A Monarquia Brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1993.
CARVALHO, J. M. Un Theatre D'Ombres. La Politique Imperiale au Brèsil. Paris: Ed. de La Maison des Sciences de L’Homme, 1990.
CARVALHO, J. M. A Formação das Almas. O Imaginário da Republica. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

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