Ele
é a referência nos estudos medievais no Brasil. E quem estuda a
história do futebol também precisa estar atendo ao que ele diz, pois seu
mais novo campo de estudo é o futebol.Na entrevista de fevereiro/março,
o papo é com o professor Hilário Franco JUnior, um dos maiores
historiadores brasileiros em atividade. Na agradável entrevista
concedida ao Café História, o professor Hilário contou como começou sua
curiosa trajetória na área de história, além de comentar sobre questões
contemporâneas e sobre suas atuais pesquisas. Não perca uma linha
sequer!
CAFÉ
HISTÓRIA - Professor, antes de tudo, gostaria de dizer que é um grande
prazer para o Café História tê-lo como entrevistado. Bom, nossa primeira
pergunta está relacionada à sua formação: como o Hilário Franco Júnior
tornou-se um historiador? Quando começou seu fascínio pela profissão?
HILÁRIO FRANCO JUNIOR - Na
verdade minha trajetória é curiosa. Ao contrário do que aconteceu com
muitos colegas, na escola a História não me atraía mais do que as outras
matérias, ou seja, pouco. Nunca fui bom aluno. Sem saber muito bem o
que fazer como faculdade, acabei indo por influência de amigos e da
família para Administração de Empresas! Mas – veja como o destino pode
ser curioso – na Fundação Getúlio Vargas onde eu tinha ingressado, o
Centro Acadêmico dirigia um cursinho preparatório para os interessados
em prestar aquele vestibular. Os professores do cursinho eram
exclusivamente alunos da faculdade, e quando se formavam deixavam a
função e havia um concurso interno para contratar outros alunos para dar
aula aos vestibulandos. Logo no meu primeiro ano de curso abriu uma
dessas vagas, prestei o tal concurso porque era um emprego bem pago e
muito prático (eu seria aluno e professor no mesmo prédio). Ganhei uma
das vagas de História Geral e um treinamento de um semestre antes de
começar a nova função. Percebi então o óbvio: não sabia o suficiente
para ensinar classes de cinquenta alunos, de forma geral de bom nível
cultural. Comecei a estudar por conta própria e fui me envolvendo com a
História. Mas ainda sem planos maiores nesse campo. Um amigo que ia
prestar como segunda faculdade Ciências Sociais insistiu para que eu
fizesse o mesmo com História. Prestei o vestibular na USP (provas
somente dissertativas naquela época), passei, porém não me inscrevi. Eu
não me via como definitivamente professor e pesquisador de História.
Porém dois anos depois senti finalmente necessidade de uma formação
específica, meu autodidatismo não me satisfazia mais. Fui me informar, e
por um desses felizes (e raros!) mistérios da burocracia eu podia me
inscrever sem novo vestibular. Foi o que fiz e o ambiente de Humanas me
cativou de vez, enquanto cada vez mais me cansavam a Micro e Macro
Economia, Estatística, Matemática Financeira (aghr!) etc. A
Administração perdeu um ex-futuro medíocre administrador de empresas e a
História ganhou um apaixonado adepto.
CAFÉ
HISTÓRIA - Em “Apologia da História”, Marc Bloch fala sobre a
felicidade de poder falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares.
Professor, uma das características de seus textos (entrevistas, livros,
artigos etc.) é a linguagem acessível, mas sem abdicar do rigor
acadêmico e de uma estética apurada. Falar para todos os públicos é
realmente uma preocupação sua? Qual deve ser a relação entre historiador
e sociedade?
HILÁRIO FRANCO JUNIOR - Creio
que não se deva estabelecer regras rígidas a respeito. É preciso
respeitar perfis pessoais e projetos de vida intelectual. Alguns
historiadores têm vocação para democratizar seus conhecimentos, outros
não; e estes podem fazer excelente trabalho de pesquisa e mesmo de
ensino para públicos especializados. No meu caso, acho que foi minha
trajetória pouco ortodoxa que formatou o historiador que sou. Como disse
na resposta anterior, precisei aprender a dar aula dentro da sala de
aula, diante de alunos apenas dois ou três anos mais jovens que eu,
muitos deles vindos de ambientes familiares propíceis às coisas da
cultura. Eu lia muito, mas fui percebendo que nem sempre eram boas
leituras, havia muita divulgação pouco rigorosa, daí a idéia de seguir a
faculdade de História e conhecer o que se fazia de realmente científico
no campo. Além disso, o fato de ter de ensinar a História do Egito
faraônico à Guerra da Coréia acabou me sendo extremamente útil, permitiu
uma visão de conjunto, o estabelecimento de comparações, não me fechou
nos limites rígidos de uma especialização. Esta é, evidentemente,
indispensável, mas DEPOIS de uma sólida visão de conjunto. Assim, tive
de aprender a falar e a escrever para gente não necessariamente
fascinada pela História. A tarefa de fascinar cabe ao professor, e para
isso o primeiro passo é ser claro, escapar dessa praga de discursos
pedantes, politicamente corretos, pretensamente científicos e que
escondem vanidades e chavões. E de fato, é um grande prazer transmitir –
oralmente ou por escrito - determinado conteúdo e perceber que o
público te compreende e se interessa pelo assunto.
CAFÉ
HISTÓRIA - Em seu livro “A Idade Média – Nascimento do Ocidente”, o
senhor observa que mesmo aquelas sociedades que não possuem um passado
medieval, vêem nos últimos anos entendendo a importância do estudo desse
período histórico, uma vez que ele possui um papel decisivo para a
formação da civilização ocidental. Tomando o Brasil como exemplo, essa
ligação com o universo medieval é vista com relativa facilidade quando
observamos muitas de nossas tradições religiosas. Mas qual a relação que
áreas como a política, cultura ou economia possuem com esse mesmo
universo medieval.
HILÁRIO FRANCO JUNIOR - Do
ponto de vista político, podemos lembrar das “dinastias” do
Norte-Nordeste como os Magalhães, Sarney ou Barbalho, bem como da
“feudalização” que os vereadores promovem em muitas cidades, inclusive
São Paulo há alguns anos. Do ponto de vista social, a fragilidade
institucional, a baixa consciência de cidadania, a grande indistinção
entre coisa pública e coisa privada, o nepotismo, o corporativismo, são
ecos dos elementos medievais aqui introduzidos pelos colonizadores
portugueses. Do ponto de vista cultural, não é preciso insistir que
nossa língua nasceu na Idade Média e que, aliás, falamos no Brasil um
português muito mais próximo ao medieval do que ocorre em Portugal
atual. Além disso, a literatura de cordel e seus temas cavaleirescos,
carolíngios e arturianos são outros testemunhos de nossa medievalidade.
Como essa relação entre Brasil e Idade Média é mais complexa do que
podemos conversar aqui, tomo a liberdade de indicar para os interessados
um artigo que publiquei a respeito no ano passado: “Raízes medievais do
Brasil”, Revista USP, 78, 2008, pp.80-104.
CAFÉ
HISTÓRIA - Durante muito tempo, medievalistas discordaram a respeito da
periodização da Idade Média. Existe algum consenso hoje em dia? Onde
começa e onde termina a Idade Média? Existem marcos seguros ou eles
serão sempre problemáticos?
HILÁRIO FRANCO JUNIOR - Eles
serão sempre problemáticos, porque decorrem evidentemente muito mais do
arbítrio do historiador do que dos fatos pretensamente classificadores.
E como o historiador é produto de seu presente, e este muda, as
classificações periodizantes mudam. Esta questão já gerou inúmeros
debates, como se sabe, mas talvez no fundo seja um falso problema. Pouco
importa rotular o fim da Idade Média em 1453, 1492, 1517 ou, como fez
Jacques Le Goff mais recentemente, 1800. Na adoção de qualquer uma
dessas fronteiras cronológicas todas há muito de “reserva de caça” de
domínios científicos. O verdadeiro especialista não se coloca uma camisa
de força, prefere periodizações amplas e flexíveis. Como se pode ser
especialista do século XIV, por exemplo, sem conhecer profundamente os
séculos XI-XIII numa ponta e XV-XVI na outra? O fundamental é ter
consciência que a História de qualquer época comporta diferentes planos,
cada um deles com ritmos próprios. Privilegiar 1453 é dar maior
importância à política, escolher 1492 é colocar a economia à frente de
tudo, 1517 é pensar que a religião está no centro da sociedade, e assim
por diante. Portanto, o recorte temporal depende do objeto estudado, e
no caso de uma visão ampla sobre muitos séculos (Idade Antiga, Média,
Moderna) o melhor é não adotar fronteiras e sim zonas fronteiriças.
CAFÉ HISTÓRIA - Nos
últimos anos, é notório o clima tenso entre as religiões monoteístas.
Judeus e muçulmanos intensificam o confronto no Oriente Médio. Bispos da
Igreja Católica criam mal-estar com judeus ao negar o Holocausto. Só
para citar dois exemplos. Analistas, na mídia, evocam o passado para
explicar a origem dessas tensões. As tensões religiosas da Idade Média
explicam, de fato, esse cenário contemporâneo?
HILÁRIO FRANCO JUNIOR - Temos
aí um bom exemplo dos usos “politicamente corretos” e cientificamente
incorretos da História. É mais fácil debitar a responsabilidade de
certas situações atuais a séculos remotos, a atos tornados anônimos pelo
tempo, do que inculpar o passado recente, de nossos pais, avós ou
bisavós. Claro que as Cruzadas dos séculos XI-XIII despertaram nos
ocidentais fortes sentimentos antisemitas, isto é, contra judeus no
interior da Cristandade, contra árabes no exterior. Mas isso não explica
os choques intersemitas (árabes contra judeus,judeus contra árabes)
atuais, que decorrem das duas grandes guerras mundiais do século XX.
Certa crise de consciência colonial, sobretudo inglesa, e certa crise de
consciência ocidental em relação aos judeus massacrados pelos nazistas,
levaram ao nascimento artificial e autoritário do Estado de Israel,
construído por ocidentais (judeus e cristãos) à custa da população
palestina lá instalada há séculos. O argumento “histórico” a favor da
decisão é claramente falacioso: aquela é a terra de origem dos judeus.
Mas a América é a terra de origem dos indígenas e ninguém pensa em
expulsar os brancos e devolvê-la aos seus ocupantes originários. O
argumento “moral” não é menos tendencioso: os judeus foram objeto de
genocídio por não terem seu próprio país. É verdade, e esse fato
extremamente grave e condenável não pode ser esquecido, mas é verdade
também que as potências ocidentais nada fizeram diante de outros
genocídios, como o dos armênios por parte dos turcos entre 1915 e 1917
ou o dos tutsis (75% da população eliminada!) de Ruanda em 1994. A
rigor, Israel nasceu de conjunção de interesses entre a direita
religiosa judaica e as potências ocidentais que desejavam se manter
próximas das fontes petrolíferas árabes. Em suma, são questões
geopolíticas do século XX que explicam o problema, não questões
religiosas da Idade Média.
CAFÉ
HISTÓRIA - Os historiadores dos Annales são responsáveis por grandes
transformações da historiografia ocidental. O senhor chegou a trabalhar
com algum desses historiadores? Do ponto de vista de suas pesquisas,
qual desses historiadores mais o marcou e por quê?
HILÁRIO FRANCO JUNIOR - Fiz
meu pós-doutorado com Jacques Le Goff, grande intelectual e grande
pessoa, e evidentemente ter tido contato com ele pelo menos uma vez por
semana ao longo de dois anos e meio deixou marcas importantes na minha
visão da História. Nossos encontros periódicos mantêm-se até hoje,
embora mais espaçados, e mesmo os temas históricos tendo deixado de
serem o centro de conversação, já que nossa relação passou a ser mais
pessoal, são sempre encontros muito estimulantes. E sua obra continua
significativa para mim, em especial por aliar erudição e imaginação no
contato com as fontes. De Georges Duby, a quem não conheci pessoalmente,
tiro sobretudo a valorização da escrita historiográfica : ele mostrou
que um grande historiador não precisa -- não deve -- escrever de maneira
hermética em nome de uma pretensa seriedade científica. Marc Bloch, o
mestre deles dois, me inspira pelas preocupações metodológicas e pela
ousadia na escolha dos temas estudados. Da mesma geração que eu,
mantenho contatos estreitos e profícuos com Jean-Claude Schmitt, o
principal discípulo de Le Goff.
CAFÉ
HISTÓRIA - O senhor é bastante conhecido por seus trabalhos no campo da
mitologia medieval. No entanto, recentemente, lançou o livro "A Dança
dos Deuses - Futebol, Sociedade e Cultura", pela Companhia das Letras.
Isso indica uma mudança em suas pesquisas acadêmicas? Conte mais sobre
esse e outros projetos em vias de produção.
HILÁRIO FRANCO JUNIOR - O
livro sobre futebol abriu, efetivamente, outra frente de interesse, o
que não significa abandono dos estudos medievalísticos. Vou, na verdade,
tocar ambas as frentes paralelamente, antes de abrir uma terceira e
talvez uma quarta. No que diz respeito ao futebol, a motivação é
simples: refletir sobre um fenômeno sóciocultural de amplo alcance e até
agora desprezado pela Universidade, que o abandonou nas mãos de
jornalistas, cujo interesse e abordagem são outros. Nesse campo tenho
encaminhado um livro de ensaios que não sairá antes de dois ou três
anos, é um conjunto de pequenos textos que ou estão sendo escritos ao
acaso de convites ou que não puderam ser aproveitados em “A dança dos
deuses” devido ao tamanho do livro. No que diz respeito à
medievalística, sairá em junho deste ano o volume II (e nova edição do
vol.I) dos “Ensaios de mitologia medieval”. No momento trabalho também
numa análise de conjunto sobre as utopias medievais, que será objeto do
próximo livro, não sei ainda exatamente para quando.
CAFÉ
HISTÓRIA - Professor Hilário, chegamos ao fim de nossa entrevista.
Gostaria de pedir ao senhor duas coisas. Primeiro que deixasse uma
mensagem para os membros do Café História, em sua maioria professores e
alunos de história. Por último, que indicasse algum bom novo livro sobre
Idade Média para nossos leitores medievalistas. No mais, foi um prazer
entrevistá-lo. Muito obrigado pela entrevista e um forte abraço em nome
de todos da rede.
HILÁRIO FRANCO JUNIOR - É
sempre um prazer conversar com gente interessada por História e que
tenta difundi-la de maneira ampla e correta como faz o Café História. A
mensagem que deixo aqui é simples e bem pouco original: o verdadeiro
estudo da História é uma atividade intelectual riquíssima, que alia
domínios diversos como política, filosofia, psicologia, literatura,
artes plásticas, religião, dentre outros, e por isso mesmo pressupõe
acúmulo informativo e esforço reflexivo. Minha sugestão enfática é que
todo interessado pela História rejeite grandes modelos supostamente
explicativos de tudo, mantendo o espírito aberto e mergulhando na
leitura, sobretudo das fontes primárias. Quanto à indicação de uma
publicação recente, como conversamos sobre as fronteiras entre Idade
Média e Idade Moderna e sobre a Escola dos Annales, penso que uma boa
sugestão seja a tradução brasileira que acaba de sair do maior livro de
Lucien Febvre, fundador dos Annales ao lado de Marc Bloch: “O problema
da descrença no século XVI. A religião de Rabelais”, editado pela
Companhia das Letras.
Hilário Franco Junior é Medievalista, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), Hilário Franco Júnior possui toda a sua formação na área de história, tendo feito seu pós-doutorado com Jacques Le Goff na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Hilário é especialista em mitologia medieval e recentemente escreveu um livro
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