A crise de 2008 e a intervenção do Estado na economia PDF Imprimir E-mail

Questões Ideológicas
Rodrigo Castelo Branco
Ter, 18 de Novembro de 2008 08:49
Muitos analistas retrocedem até os grandes pensadores liberais do início da ordem burguesa, como John Locke e Adam Smith, para achar as origens do neoliberalismo. Não iremos tão longe para afirmar que a ideologia neoliberal tem uma longa trajetória. O historiador britânico Perry Anderson indica a publicação do livro O caminho de servidão, de Friedrich von Hayek, em 1944, como o evento inicial da ideologia neoliberal. Três anos mais tarde, também por iniciativa do conceituado economista austríaco, forma-se a Sociedade de Mont Pelèrin, que tinha como o seu principal objetivo a defesa dos princípios do liberalismo, tais como a propriedade privada enquanto um direito natural e inviolável dos cidadãos e a não-intervenção do Estado na livre iniciativa dos empreendedores.

A fundação da Sociedade de Mont Pelèrin pode ser considerada como um marco fundacional do projeto neoliberal. Promovendo encontros regulares de debates e discussões, a Sociedade congregou alguns dos maiores nomes do liberalismo do século XX, como Ludwig VonMises, Milton Friedman e Karl Popper, além de diversos economistas laureados com o prêmio Nobel. Apesar do peso intelectual e político dos seus fundadores, a influência da Sociedade não se fez sentir logo de imediato. Durante anos, os intelectuais liberais forjaram teorias e propostas de ações práticas que fossem um contraponto ao intervencionismo do Estado do bem-estar social e do socialismo na economia, em particular, e na vida dos homens comuns, em geral. Estas primeiras formulações liberais do pós-guerra seriam, no futuro, a base teórica do projeto neoliberal.

As crises econômicas e políticas da década de 1970 nos principais países capitalista abriram uma janela histórica para a ascensão do neoliberalismo. O diagnóstico liberal da crise era o excesso de intervencionismo do Estado na economia, que se traduzia em altas taxas de desemprego e inflação e baixas taxas de lucro. O remédio era a redução do Estado e até mesmo o seu afastamento da economia. A mão invisível do mercado regularia, com eficiência e justiça, as relações sociais de produção, consumo, troca e distribuição.

Foi assim que as idéias neoliberais, fecundadas longamente durante trinta anos, só ganharam vida com a contra-revolução conservadora iniciada no final dos anos 1970 e início dos 1980, com as vitórias eleitorais de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. Antes, contudo, o ideário neoliberal havia sido implementado no Chile, como uma espécie de laboratório social de teste, durante o bárbaro golpe militar de Augusto Pinochet. A iniciação do neoliberalismo na vida política, portanto, nada teve de democrática ou legítima. Independente disto, o neoliberalismo seguiu sua carreira e expandiu-se por todo o mundo: primeiro na Europa do Norte, depois na do Sul, por meio de governos social-democratas e na do Leste, por meio dos ex-dirigentes comunistas, e, então, no Terceiro Mundo – América Latina, África e Ásia.

A ideologia e a práxis política neoliberal atingiu a tudo e a todos, talvez com a honrosa exceção de Cuba. Nenhum país ficou incólume a esta avalanche, a ponto de Perry Anderson qualificar a ideologia neoliberal como a mais bem sucedida na história da humanidade, com poder de penetração nos corações e mentes e de alcance geográfico maior do que o cristianismo e o comunismo.

O consenso neoliberal, conhecido como o Consenso de Washington, ficou marcado pela onda de liberalização dos fluxos de capital ao redor do globo, acelerada pela revolução das telecomunicações que conectava os mercados globais em tempo real, e de privatização de ativos do Estado, na sua grande maioria vendidos a preços subavaliados, com enormes prejuízos para os erários públicos. O alvo principal das políticas adotadas pelos governos neoliberais, sem sombra de dúvida, era a intervenção do Estado na economia e na chamada “questão social”. O Estado, tido como ineficiente e corrupto, não deveria interferir ou limitar a ação privada dos empreendedores: a busca de cada indivíduo pela materialização dos seus objetivos pessoais de acumulação, levaria, por obra da mão invisível do mercado, ao bem-estar coletivo, desde que o Estado se mantivesse longe das atividades mercantis.

Esta idéia foi repetida inúmeras vezes por meio de todos os canais da indústria cultural e da mídia até que se tornou, em determinado momento, uma verdade inqüestionável, um dogma sagrado da nova ideologia dominante. O consenso neoliberal foi hegemônico e inabalável durante praticamente 30 anos. Poucos, muito poucos, ousaram questionar os fundamentos da ideologia e da política neoliberais, bem como seus resultados desastrosos do ponto de vista das camadas populares. Acreditou-se, de fato, que o Estado não deveria intervir na economia; e mais: que, no neoliberalismo, o Estado não intervinha na economia.

A crise financeira de 2008, iniciada nos Estados Unidos, e que rapidamente se alastrou por todo o mercado mundial, traz elementos para repensarmos qual foi o padrão de intervenção do Estado na economia durante a era neoliberal e questionarmos, com profundidade, aquelas verdades tidas como sagradas. A crise pode, em certa medida, reativar o pensamento social crítico e até mesmo a práxis política das classes subalternas. Hoje, começam a se destacar análises e prognósticos que apontam para a necessidade da volta da regulação das atividades econômicas por parte das autoridades constituídas.

Já há algum tempo, o mega-investidor financeiro George Soros vem alertando para os perigos de recessão caso as bolhas especulativas, que se formaram com os incentivos diretos do banco central estadunidense, estourassem, além dos descaminhos do imperialismo dos Estados Unidos. Martin Wolff, editor de economia do jornal The Financial Time, declara que “é hora de um resgate abrangente”. Ou seja, grandes beneficiários da especulação financeira, bem como antigos defensores do consenso neoliberal, começam a emitir claros sinais que o Estado deve ter um novo tipo de intervenção na economia.

Não é só a direita, contudo, que emite tais sinais. Das fileiras da esquerda social-liberal surgem, sem muita surpresa, um apelo, em forma de salvação, para o Estado agir o quanto antes e salvaguardar a sociedade capitalista da própria ambição e ganância desenfreada dos capitalistas, refundando-a sob novas bases, agora não mais especulativas e irracionais. O sociólogo português Boaventura de Souza Santos, por exemplo, em recente artigo na imprensa alternativa, declarou que “o impensável ocorreu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução”, referindo-se a compra de ativos financeiros por parte dos governos estadunidenses e europeus. Outros dois exemplos ilustrativos podem ser aqui descrito. O economista brasileiro João Sicsú escreveu um texto opinião na Folha de São Paulo no qual afirmava que “foi a falta de Estado e não a sua ação ativa que causou a crise”. Já Luiz Carlos Bresser Pereira, mentor e condutor da reforma administrativa de privatização do Estado brasileiro, disse que “essa crise marca o fim da onda neoliberal. É fundamental que haja uma intervenção do Estado”.

Ambas as declarações supõem que não havia qualquer tipo de intervenção do Estado na economia antes da crise, como se Estado e mercado fossem entidades políticas e econômicas autônomas e independentes uma da outra. Pretendemos propor um outro ponto de vista sobre a problemática da intervenção do Estado na economia. Ao longo de toda a história do capitalismo, Estado e mercado andaram juntos em favor da acumulação de capital. Diversas frações da burguesia – agrária, comercial, industrial, rentista –, em conluio com as elites governamentais, lucraram com toda sorte de operações econômicas e financeiras, isto sem falar dos saques, conquistas e pilhagens imperialistas em territórios estrangeiros, em particular na periferia do mercado mundial. O que existe, na verdade, é uma sólida aliança entre poder e dinheiro que sobrevive aos mais fortes abalos do capitalismo. Muitos analistas já apontaram isto, de Karl Marx até Fernand Braudel, passando por Lênin, Max Weber, Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci e Karl Polanyi.

A tese de que Estado e mercado atuam de forma coordenada – atuação esta perpassada por inúmeras tensões e contradições, cabe destacar – também vale para o período mais fértil do neoliberalismo, inclusive durante a vigência do Consenso de Washington. A emergência do neoliberalismo, que pode ser descrito como um novo padrão de acumulação global e financeirizado de riqueza, só ocorreu com a participação ativa dos mais distintos aparelhos políticos, administrativos e coercitivos a serviço do Estado, bem como dos aparelhos privados de hegemonia. A política fiscal de superávits primários para o pagamento dos juros, a política monetária de juros altos, a liberalização dos mercados cambiais e do comércio exterior, os programas de privatizações não podem ser entendidos como uma intervenção ativa do Estado na economia? E o que falar de toda uma gama de reformas legislativas nos planos trabalhista, previdenciário e sindical que são pressupostos necessários para a efetiva implementação dessas políticas econômicas? O que são tais medidas, afinal? E vale mencionar que o Estado neoliberal também teve uma forte atuação na “questão social”, quando reprimiu diversos movimentos sociais contrários ao projeto neoliberal; para isto basta recordarmos as greves dos mineiros na Inglaterra, dos controladores do trafego aéreo nos Estados Unidos e da greve dos metalúrgicos de Volta Redonda em 1988 e de diversas manifestações contra o programa nacional de privatização brasileiro.

Em suma, o Estado, em nenhuma época, deixou de gerar as condições necessárias para a acumulação de capital e para a manutenção da ordem estabelecida. Esta sempre foi a sua principal função, função esta, aliás, com raras exceções, muito bem cumprida ao longo do tempo. E não será agora, diante de mais uma crise, que deixará de cumpri-la. O Estado não precisa ser convocado para voltar a intervir novamente na economia pelo simples fato que nunca abdicou de tal função na sociedade capitalista. A questão, portanto, deve ser colocada de outra forma: como, daqui para frente, o Estado irá intervir na economia, quem irá se beneficiar e quem vai pagar a conta. Até agora, na entrada e na saída, privatizaram os lucros e socializaram os prejuízos. Ou seja, como sempre, quem está pagando a conta, em uma palavra, são os trabalhadores. Sobre isto, todos se calam, seja a direita seja a esquerda social-liberal.

Rodrigo Castelo Branco é pesquisador do Laboratório de Estudos Marxistas (LEMA) do Instituto de Economia da UFRJ, doutorando da Escola de Serviço Social da UFRJ e docente do curso de Serviço Social do Centro Universitário Volta Redonda (UniFOA).

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