O sujeito em Foucault: estética da existência ou experimento moral?
[1]
JURANDIR FREIRE COSTA
Os últimos trabalhos
de Foucault sobre a ética do sujeito despertaram várias objeções. Penso em
retomar uma delas, procurando analisar os argumentos que a sustentam. A objeção
é a seguinte: Foucault defende a idéia de uma estética da existência voltada
para a auto-perfeição e auto-afirmação do sujeito. Esta estética dispensaria o
compromisso com valores universais ou com os princípios humanitários das
democracias liberais. Os críticos universalistas, entre os quais, Charles
Taylor, Rainer Hochlitz e Pierre Hadot, enfatizam o primeiro aspecto. Alegam que
Foucault se auto-engana ou se equivoca. Engana-se quando assume tacitamente
valores universais que desacredita; equivoca-se quando interpreta erroneamente
textos histórico-filosóficos que justificam sua teoria. Richard Rorty,
representante do neo-pragmatismo, chama a atenção para o segundo aspecto,
criticando a insensibilidade de Foucault para com os princípios e ganhos das
sociedades liberais.
[início da pág. 122]
[início da pág. 122]
1. A crítica universalista
Foucault, diz Taylor, admite, com
Nietzsche, que “não existe uma ordem da vida humana, ou de nossa maneira de ser,
ou da natureza humana à qual possamos nos referir para julgar ou avaliar os
modos de vida. Existem apenas diferentes ordens impostas pelos homens ao caos
primitivo, segundo sua vontade de potência” (Taylor, 1989, p. 113). Esta tese,
para o autor, se auto-refuta nos dois postulados centrais, o relativismo e a
onipresença do poder. Se Foucault aceita que é “impossível fazer um julgamento
sobre as diferentes formas de vida”- tese relativista – e se aceita que todas
formas de vida “colocam em jogo uma imposição de poder” (p. 113), como
justificar, diz Taylor, suas opções éticas? . Por que considerar a dominação e a
sujeição como coisas más? Por que não se limitar meramente a constatar a
vigência deste regime de ordem, sem entrar em considerações valorativas? Das
duas uma: ou Foucault enuncia coisas sem sentido ou utiliza implicitamente uma
moral cujos pressupostos desconhece ou tenta esconder.
Para Taylor, o segundo pólo da
alternativa é o verdadeiro. Foucault não traz à superfície os fundamentos morais
responsáveis por suas escolhas teóricas. Combater o poder, a dominação e a
sujeição exigem a contrapartida da liberdade de recriar novos modos de
subjetividade. Mas, se isto é verdadeiro, então, existem ou não valores
universais na teoria foucaultiana? Pressupor que a liberdade de auto-criação é
melhor do que a dominação e a sujeição, implica ou não na admissão de noções
morais universalmente válidas? Taylor vai além. Afirma que Foucault quer
situar-se no lugar metafísico de crítico atemporal da cultura. Isto, porém,
choca-se com suas intenções genealógicas. Não se pode “adotar o ponto de vista
de um observador completamente estrangeiro, como se estivesse em Sirius ou como
se fosse uma alma no mito platônico da caverna: a mim de decidir se quero ser um
chinês da dinastia Song, um sujeito do Hamurabi, na Babilônia, ou um americano
do século vinte” (Taylor, 1989, p. 118). “Sem uma identidade prévia, continua
Taylor, ninguém poderia sequer pensar em escolher” (p. 118).
Foucault, portanto, ilude-se, imaginando
que é um zero identitário, flutuando acima da história ou da cultura. Sem a
idéia de “vontade” como algo produzido por nossa autonomia “interior”, sem os
valores do humanitarismo moderno, como o desejo de preservar a vida, de
satisfazer as necessidades do homem e de aliviar seus sofrimentos, sem a idéia
de satisfação emotiva ou a de que “nossos sentimentos são uma das chaves para
uma vida de qualidade”, enfim, sem a preocupação com a “vida ordinária”, e não
com a contemplação, as virtudes cívicas, a honra de casta, os valores
espirituais, etc., das sociedades antigas, será que Foucault poderia pensar em
sua estética da existência ou ética dos prazeres? Taylor responde pela negativa,
concluindo que Foucault é filho da ética ocidental, cuja genealogia quer fazer e
cuja legitimidade quer negar. Uma coisa, argumenta ele, é dizer, por exemplo,
[início da pág. 123] que a burocracia, as práticas disciplinares de sujeição, a
importância desmesurada do sexo no Ocidente, etc., são itens indesejáveis na
constituição de nossas identidades e moralidades. Outra coisa é negar a validade
do quadro ético geral que permitiu a emergência de tais fenômenos mas também do
pensamento de Foucault. Sem esta base ética, o pensador Foucault seria
impensável, improvável ou impossível.
Os argumentos de Rochlitz são
semelhantes, mas variam ligeiramente de rumo. Para o autor, a teoria e a prática
política de Foucault “possuem um conteúdo normativo e mesmo uma normatividade
virtualmente universalista, quando se referem a uma exigência de autonomia da
pessoa e opõem-se ao sofrimento injusto” (Rochlitz, 1989, p. 290). Mas ele não
só nega isto como não pode admitir que “as qualidades que lhe permitem escapar
aos poderes tenham uma existência independente dele, inscrevendo-se na estrutura
mesma da sociedade moderna, como crítica institucionalizada, espaço de liberdade
e de discussão, irredutível ao sistema de poder” (p. 296). Ou seja, Foucault
além de possuir uma ética virtualmente universalista condena uma estrutura
social de que depende e sem a qual não teria como pensar o que pensou. A
estética da existência, prossegue Rochlitz, não se opõe ao bio-poder como algo
que lhe é exterior. “A idéia de um prazer partilhado sem dominação é tributária
das idéias modernas de igualdade, reciprocidade e não-violência que se
desenvolveram simultaneamente ao bio-poder” (Rochlitz, 1989, p. 293) posto na
mira das críticas foucaultianas.
Portanto, diz Rochlitz, a reinvenção de
modos individuais de existência só é possível porque a ordem criticada permite e
incentiva a diversidade, a singularidade e a pluralidade de pensamentos e
estilos de vida. Foucault não vê que sua proposta de novas formas de vida é um
tópico do universalismo ético da cultura a que pertence. O que significa querer
fazer da “vida uma obra de arte”, senão estender o projeto das elites das
sociedades antigas para toda sociedade? Na Grécia e em Roma, a tarefa da
estética da existência cabia às “minorias privilegiadas, liberadas de toda
função na reprodução material da sociedade e que podiam empregar todas suas
forças para realizar o refinamento de seus estilos de vida” (Rochlitz, 1989, p.
297); no programa de Foucault, deve estar ao alcance de todos. Nos dois casos, a
pretensão ao universalismo é evidente, consideradas as diferenças nas imagens do
sujeito. No entender de Rochlitz, Foucault propõe “um equivalente anarquizante
da ética pós-convencional” como substituto do universalismo ético. Mas esta
ética é somente um caso particular do universalismo (cf. Rochlitz, 1989, p.
297).
Quanto à interiorização, pergunta ele,
como Foucault poderia romper com as intuições morais correntes, sem “um exame
crítico da norma denunciada como um elemento no dispositivo de poder” (Rochlitz,
1989, p. 297). Ou seja, nos termos de Taylor, como fugir da idéia de autonomia,
vontade interior, reflexão crítica, etc., como motor da transformação das
subjetividades? Foucault, em sua formulação, não se subtrai à “exigência de
interiorização”. Querendo, ou não, está na órbita do sujeito cristão do desejo,
do qual afirma ter-se libertado.
[início da pág. 124] Para um outro autor,
Hadot, Foucault utiliza indevidamente o material histórico da antigüidade, na
pressa de fundamentar suas próprias crenças. Não é verdade que o pensamento
estóico caucione a idéia de uma ética sem universais, assim como é incorreto ou
discutível dizer que sujeito moderno está presente no pensamento cristão das
origens, na figura da interiorização individualizante ou da hermenêutica do
desejo. Ao utilizar a idéia de ética dos prazeres dos estóicos, Foucault oculta
a distinção entre prazer e alegria, central naquele pensamento. Os estóicos
elegeram a palavra alegria como foco de suas reflexões, justamente porque
“recusavam-se a introduzir o princípio do prazer na vida moral” (Hadot, 1989, p.
262). Esta distinção é fundamental. A ética da alegria, e não dos prazeres, não
se centrava no “eu” singular de cada sujeito. Era expressão da “melhor parte do
eu”, daquela orientada pelo “bem verdadeiro”, de acordo com a “razão e a
natureza universais”. Havia, segundo este autor, um apelo ao universalismo moral
nos estóicos que Foucault desprezou, em benefício de suas concepções.
No que diz respeito ao pensamento
cristão, o procedimento intelectual foi quase o mesmo. De fato, os exercícios
espirituais visavam à interiorização do sujeito ou à hermenêutica do desejo
individual. Mas a interiorização era vista como “superação de si em direção da
universalização” (Hadot, 1989, p. 267). Hadot pensa que uma estética da
existência descolada de qualquer referência a valores transcendentais, poderia
ser nada mais, nada menos, do que “uma nova forma de dandismo, versão fim do
século XX” ( p. 267). Este é seu temor. Uma cultura de si, sem vínculos com
valores universais, pode tornar-se uma questão de preferência de um ou de
poucos, mas nunca recomendação moral para todos.
2. A crítica neo-pragmática
A crítica neo-pragmática de Rorty é de
outro teor. Como os autores precedentes, ele acredita que o esteticismo de
Foucault acaba indo de encontro aos objetivos da comunidade. Mas não acha que a
garantia de compromisso com o bem coletivo seja a crença em valores
universalmente válidos. A obra de Rorty dirigiu-se, em grande parte, à crítica
do universalismo como fundamento racional das moralidades. Os argumentos que
emprega podem, deste modo, servir de réplica ao que foi objetado à Foucault.
Brevemente, Rorty, como Foucault, não acredita na existência de valores
universais, se pela expressão se entende um conjunto de postulados morais
apriorísticos e invulneráveis à revisão histórica. Mesmo concedendo que tais
valores existissem, restaria aos universalistas provarem como o acesso
epistêmico às entidades transhistóricas pode estar ao alcance de sujeitos
históricos. Por este motivo, a seu ver, os valores tidos como necessários e
atemporais, pelos universalistas, nada mais são do que os valores do
humanitarismo democrático moderno metafisicamente transferidos para o domínio
das entidades transcendentais.
[início da pág. 125] Para o
neo-pragmatismo, nenhum procedimento racional consistente pode afirmar a
permanência empírica ou conceitual de uma mesma identidade essencial do mundo,
do sujeito e da linguagem. Conhecemos contingências e não necessidades. Buscar a
identidade do sujeito ou de valores morais no que é perene é uma tarefa fútil.
Nenhuma de nossas crenças vem de uma fonte de sentido prévia à ação humana. A
história mostrou que inúmeros candidatos ao papel fundacional não resistiram ao
teste do tempo. Ou perderam completamente a plausibilidade intelectual ou
retraíram-se e converteram-se em crenças opcionais, de grupos ou pessoas, como
no caso das convicções religiosas. Podemos tratar certas imagens do mundo e do
sujeito como universais. Mas isto quer dizer, simplesmente, que certas formas de
vida nos são de tal modo familiares que não conseguimos pensar em descrições
alternativas do que consideramos natural e universal. Os universais mudam quando
mudam as formas de vida. Por conseguinte, tudo o que podemos fazer é aceitar a
tradição ética que herdamos, procurar transformá-la ou abandoná-la por outra
tradição. Não temos saída: falamos de crenças sempre do interior de outras
crenças. A preferência atual é um simples produto da persuasão cultural tornada
convicção. Justificamos nossas crenças porque acreditamos que são superiores à
outras. Superioridade que não se funda na maior ou menor racionalidade da crença
aceita – todas são racionais – mas na força performativa dos meios de
transmissão da cultura de cada um.
Assim sendo, a crítica universalista a
Foucault perde o sentido. Liberdade, autonomia, respeito à vida, etc., são
vocábulos da prática lingüística das democracias liberais, individualistas e
humanitárias e não verdades atemporais plantadas no céu das idéias desde sempre
e para sempre. Quanto ao sujeito da interioridade, Rorty também dá pouca
importância à esta disputa. O sujeito, no neo-pragmatismo, nada mais é do que “a
rede de crenças e desejos postulada como causa interior dos atos lingüísticos”.
As redes são múltiplas, mutáveis, e saber quando e como teve início o “sujeito
da autonomia, da vontade e da interioridade” só tem interesse, se se trata de
conservar ou alterar esta descrição, em função de propósitos éticos. O problema,
portanto, não é o de saber se Foucault repete, inadvertidamente, as aspirações
do sujeito do desejo e da interioridade. Esta questão é secundária. Mais
importante do que isto é saber se sua ética do sujeito atende ou não aos
requisitos da moral liberal e democrática defendida pelo neo-pragmatismo. Rorty
acha que não, e este é o centro de sua crítica. Foucault e seu sujeito levam-nos
a ver os princípios da democracia liberal não só como datados, o que faz
sentido, mas como caducos e opressivos, o que lhe parece inaceitável. Neste
aspecto, concorda com os universalistas. Acredita, como eles, que Foucault
participa da cultura do “ressentimento”, ou seja, da corrente intelectual que
procura negar, subestimar ou minimizar o progresso moral alcançado pelas
democracias liberais do Ocidente.
Para fundar seu ponto de vista, Rorty
procura retificar Foucault de [início da pág. 126] forma parecida à que utilizou
para corrigir, num dado momento, seu próprio trajeto teórico1. Resumidamente, para ele, as
grandes mudanças na vida política e na moralidade social coincidem com as
inovações culturais. Inovação cultural é uma expressão que deve ser entendida
segundo os postulados da teoria da linguagem de Donald Davidson2. Em Davidson, tanto palavras,
frases e enunciados quanto crenças e desejos são teias lingüísticas causadas por
fatos lingüísticos e não-lingüísticos. Os fatos não-lingüísticos são aqueles
descritos como fatos físicos e os lingüísticos como palavras, enunciados ou
crenças que promovam transformações nos estados mentais anteriores dos
organismos humanos. A conseqüência desta afirmação, à primeira vista obscura e
enigmática, é a de que nem toda causa de mudança em nossas crenças provém de
outras crenças e, ainda menos, de crenças fundadas em argumentos racionais com
pretensão à universalidade. Em síntese, todas nossas crenças são causadas, mas
nem toda causa de alterações de crenças são razões ou justificativas.
Davidson distingue, assim, causas de
razões. Uma razão, ou seja, um conjunto de enunciados ou de argumentos com
sentido familiar, pode ser causa de alteração de crenças. Mas um fato físico
também pode ser causa de mudanças, assim como fatos lingüísticos sem sentido. É
o caso do que denomina de “metáfora viva” ou simplesmente metáfora. Uma metáfora
é um termo, expressão ou enunciado cujo uso ainda não foi “literalizado”, ou
seja, regularizado pelo hábito lingüístico corrente. É, portanto, um ato
lingüístico novo, até ser usado convencionalmente, com extensão e significação
familiares à comunidade competente de falantes. Não tendo sentido convencional,
a metáfora sugere, solicita ou, como prefere Davidson, “intima” os sujeitos
renovarem a descrição de si ou do mundo. Age, por isto mesmo, como uma causa
lingüística de mudança de crenças que ainda não se tornou “justificação”
aceitável da mudança.
Rorty rebate a concepção de Davidson
sobre sua filosofia moral. As metáforas mais inventivas, diz ele, podem
redescrever o sujeito de maneira imprevisível. E quando são historicamente
felizes, funcionam como justificativas para a recriação de novos modos de vida e
sistemas morais. Rorty vê na reinvenção da língua e dos estilos de vida
correlatos, o principal motor da transformação cultural, ética e política das
sociedades. Donde o papel que reserva aos artistas. Os artistas em geral, e os
ficcionistas em particular, poetas e novelistas, são os experimentadores
culturais por excelência. Em vista disso, tornaram-se os grandes artífices das
subjetividades modernas. “Revolucionários utópicos, ironistas liberais” e
“poetas fortes” formam a tríade dos heróis da narrativa rortyana. Todos são
agentes capazes de criar novas metáforas sobre o sujeito e o mundo. Mas o
ironista liberal, além disto, duvida de seus próprios vocabulários finais,
comparando suas crenças e valores a outras formas de vida, e tentando produzir
novos experimentos morais que possam enriquecer sua existência e a dos outros.
Em outras palavras, a metaforização constante das imagens do sujeito amplia seu
espectro de escolhas éticas e suas [início da pág. 127] oportunidades de
bem-estar e felicidade. Este objetivo, em sua opinião, é um efeito do Romantismo
sobre a cultura ocidental. O desejo romântico de singularização do indivíduo faz
com que ele deseje permanentemente redescrever-se e, nesta atividade, pode vir a
criar novos valores e subjetividades, até então inexistentes.
Mas, chegado a este termo, Rorty deu-se
conta de que o experimentalismo romântico tinha “um lado escuro”. Quando a
idiossincrasia do inventor era levada a ponto de “usar outros como o propósito
de gratificações privadas; ou a utilizar mais do que permite uma justa
repartição de recursos; ou quando o montante de tempo despendido na auto-criação
exclui todo exercício no suporte da justiça pública; ou quando o self que
criamos é um cabeça-dura embotado ou um esteta arrogante, insensível à dor e à
humilhação dos outros”(Hall, 1994, p. 111), nestes casos, a auto-realização
tornava-se ilegítima e condenável. Propôs, então, um limite à criatividade
pessoal. A atividade metafórica do poeta forte e do revolucionário utópico
deveria parar onde começavam a dor e a humilhação do outro. Desprezando a
distinção formal entre ético e estético, sugere uma divisão dos discursos entre
os que visam a auto-perfeição e os que visam à justiça e a decência. Os
enunciados dirigidos a auto-realização buscam proteger e enriquecer as
experiências pessoais; os dirigidos ao bem comum, procuram atingir um justo
equilíbrio entre as aspirações à vida e à liberdade de todos. A democracia
liberal é a forma de vida que possibilitou e fez coexistir os dois tipos de
jogos de linguagem, pela divisão do espaço social entre uma esfera pública e uma
esfera privada. As duas áreas da práxis do sujeito podem, deste modo,
expandir-se sem que uma venha atropelar a outra. Podemos ser, diz Rorty, “tão
irracionalistas, esteticistas quanto nos agrade, desde que não venhamos a causar
mal aos outros” (Rorty, 1989, p. XIV). Inversamente, podemos criar tantas formas
políticas de governo quantas sejamos capazes de imaginar, contanto que não
impeçam as aspirações a auto-realização dos indivíduos. Esta a posição do
ironista liberal rortyano, diante das novas metáforas.
A crítica a Foucault tem origem nesta
premissa. Em seu entender, a estética da existência foucaultiana é alheia ou
avessa a estes princípios. Entretanto, pergunta ele, sem os valores ou
instituições da democracia liberal, Foucault teria podido criar livremente as
metáforas que exprimem suas necessidades de auto-perfeição, auto-afirmação ou
auto-realização? O que Foucault diz, continua, não parece endereçar-se à nenhum
“nós”. Ele quer “servir à liberdade humana, mas, no interesse de sua autonomia
privada, tenta ser um sem-face, sem-raízes e sem-teto. Um estranho à humanidade
e à história” (Rorty, 1991a, p. 195). Foucault, em suma, seria ou tenderia a ser
um esteticista em busca do sublime e não do puramente belo. Ora, o êxtase do
sublime pode facilmente tornar-se cego e surdo à dor do outro. Dito de outra
forma, Foucault quis derivar de uma única narrativa o que é bom para um e o que
é bom para todos. Conciliar numa só recomendação os dois objetivos, é, a seu
ver, impossível. A noção de estética da existência hipertrofia o valor da
[início da pág. 128] experimentação individual. Rorty rejeita esta posição.
Melhor seria, portanto, propor experimentos morais que respeitem o equilíbrio
entre necessidades privadas e necessidades públicas, ao modo do ironista
liberal. Só assim, acredita ele, a felicidade de um não compromete a justiça
devida a todos. Por desconhecer este risco, Foucault nega os avanços morais da
democracia liberal, tornando-se um potencial aspirante a sacrificar a
solidariedade em benefício da auto-perfeição. Cabe investigar o que de
pertinente ou não existe nestas afirmações.
3. A resposta de Foucault
Relendo os Ditos e Escritos de Foucault
sobre a genealogia da ética e a ética do sujeito, muitas das questões levantadas
por seus interlocutores se esclarecem. Como afirmei antes, deixo de lado as
objeções dos universalistas. Penso que a argumentação de Rorty contra a
transcendentalidade dos valores é suficiente para arbitrar o litígio. Retenho a
idéia do descompromisso de Foucault em relação à sua comunidade. Este,
parece-me, é o denominador comum entre a crítica rortyana neo-pragmática e a
crítica dos universalistas. Pergunto, de início: em que sentido pode-se falar,
com propriedade, de alheamento de Foucault para com a comunidade de seus pares e
seu presente histórico? Acho que Foucault, de fato, é reticente quando se trata
de conceder qualquer mérito aos ideais humanitários das democracias liberais.
Mas sugiro que isto se deve, em primeiro lugar, à forma como vê a complexidade
das relações humanas e, em segundo lugar, aos temas que aborda. Antes de
examinar com cuidado estes aspectos, qualquer alusão à pretensa omissão política
ou insensibilidade de Foucault à dor e à humilhação dos outros é precipitada.
Vejamos cada um dos itens em separado.
No que diz respeito às relações humanas,
Foucault foi, sem dúvida, um pessimista. Embora tenha revisado a idéia de que os
dispositivos disciplinares são a única matriz das subjetividades modernas,
continuou a ver o impulso de dominação como uma disposição, por assim dizer,
instituinte da interação entre sujeitos. Sua visão do que somos capazes de fazer
uns aos outros sempre vai no sentido do pior. Em alguns trechos de entrevistas
ou artigos, isto aparece de maneira inequívoca. Na entrevista Da amizade como
modo de vida, dizia: “Mas a idéia de um programa e de proposições é perigosa.
Desde que um programa se apresenta, ele faz a lei, é uma proibição de inventar”
(Foucault, 1994b, p. 167). Em A propósito da genealogia da ética: um resumo do
trabalho em curso, afirmava: “Não procuro dizer que tudo é mau, mas que tudo é
perigoso(...). Se tudo é perigoso, então temos sempre qualquer coisa a fazer.
Assim, minha posição não conduz à apatia, mas ao contrário à um
hiper-militantismo pessimista” (Foucault, 1994b, p. 386).
O pessimismo foucaultiano, como se vê,
não tem meias medidas. Mas, pergunto, isto basta para torná-lo alguém neutro
quanto a valores, indiferente à comunidade de seus fellows ou virtualmente
insensível à dor e à humilhação do outro? Penso que não. Freud, por exemplo,
tido por Rorty [início da pág. 129] como um “experimentador” exemplar da vida
privada, era mais ou menos pessimista do que Foucault? E o próprio Rorty? Como
qualificar sua hipótese sobre nossas atitudes frente ao sofrimento dos outros?
Rorty não hesita em dizer que a solidariedade, a compaixão, a simpatia, etc.,
que podemos manifestar ao nosso próximo nem são constantes morais universais,
nem estão inscritas no coração ou na razão dos humanos. Pelo contrário, reafirma
a todo instante que tais atitudes éticas são instáveis e recentes. Formaram-se,
no Ocidente, à duras penas, após séculos de violências e atrocidades cometidas
contra os mais frágeis. Na sua ótica, sempre podemos voltar a redescrever nosso
próximo como um estranho e, em virtude disto, submetê-lo às piores brutalidades,
se dispusermos dos instrumentos de força ou coerção adequados. Isto é pessimismo
ou otimismo? Onde começa e termina a linha que separa um do outro?
Dependendo de quem julga, Rorty poderia
ser perfeitamente etiquetado de pessimista! No entanto, seus receios quanto à
crueldade latente em todos nós, não o tornam, a seus olhos, indiferente aos
valores democráticos, liberais e humanitários. Por que o pessimismo de Foucault
seria diferente? Por que emprega a categoria de “poder” e não a de “disposição
para humilhar e ferir o outro”? Mas se Rorty define humilhação como “redescrição
forçada”, em que isto se distingue substancialmente dos efeitos de poder sobre
os indivíduos analisados por Foucault? E, afinal, se o critério pragmático para
saber o que é ou não eticamente aceitável, são os resultados morais práticos e
não um acordo sobre princípios transcendentais ou racionais, como ignorar o
papel de Foucault na sensibilização intelectual moderna para com a dor e a
humilhação do outro? Como notou Hall, poucos pensadores atuais denunciaram com
tanto vigor quanto Foucault o que existe de cruel e moralmente abusivo nas
relações humanas. O fato de não procurar justificar sua prática teórico-política
por meio de princípios definitórios, por acaso invalida o mérito do que disse,
pensou ou fez? Seus estudos sobre presídios, hospitais, hospícios, escolas,
casernas, indústrias, etc., são exemplos de indiferença ou relativismo
axiológico ou de engajamento na luta em favor dos humilhados e ofendidos?
Foucault, considerado tudo isto, é um faceless, um homeless, ou alguém que fala
por um “nós” e empresta sua voz a um “nós”?
Mas o que Rorty reprova em Foucault,
principalmente, não é propriamente sua pretensa impermeabilidade à dor do outro.
É seu laconismo quando se trata de elogiar as instituições liberais das
democracias modernas. Também neste nível, creio, a atitude de Foucault é
explicável, quando se observa os problemas por ele estudados. Foucault não
pensava, como Rorty, que todos os enunciados morais reduzem-se à dicotomia do
público e do privado. Certos problemas, seguramente, cabem nesta classificação;
outros, não. O excessivo classicismo político de Rorty não lhe deixou ver o que,
na cultura, rompe com estas fronteiras. É verdade, como observou Berten, que
Rorty nunca pretendeu definir o público e o privado, como se fossem “essências”.
Sua intenção era a de utilizar uma classificação pragmaticamente operante, capaz
[início da pág. 130] de diferenciar as aspirações individuais legítimas das
ilegítimas, no que diz respeito às aspirações do outro (cf. Berten, 1994). No
entanto, mesmo feita a reserva, discussões culturais recentes mostraram que
fatos tidos como exclusivos da vida privada podem ter relevância pública e
vice-versa. Fraser notou, por exemplo, que aquilo que Hannah Arendt chamou de
social tem, ao mesmo tempo, uma dimensão privada e uma pública. A vida familiar,
a sexualidade, a questão da mulher, a educação sentimental das crianças, as
tecnologias de saúde, as práticas de cuidado do corpo, etc., são casos deste
tipo. Aliás, o próprio Rorty, respondendo à Alexander Nehamas, dizia que
“público” e “privado” podem ter significações variáveis (Rorty,1992, p.
211-212). Citando duas situações conflitivas, apontava a família como sendo o
referente do “privado” em um caso e o referente do “público”, em outro.
Mas se é assim, por que não considerar
que a especificidade dos assuntos discutidos por Foucault pode dispensar tal
divisão, sem prejuízo do respeito ao sofrimento do outro? Em última instância,
penso que o que Rorty não aceita é a redescrição do sujeito e da vida relacional
proposta por Foucault. Esta redescrição, em minha opinião, não afeta em nada a
“mínima moral” defendida por Rorty. Porém, pode parecer uma “redescrição
forçada” para quem acredita que as instituições e os problemas com que lidamos
estão em ordem, bastando alterar, aqui e ali, o que anda enferrujado ou fazendo
muito barulho. Como exemplo, dou o caso da sexualidade. Foucault acreditava que
só uma virada radical na imagem de sujeito e dos modos de vida relacional
poderia desfazer certos impasses criados pela atual hierarquia moral das
sexualidades. Para efeito de exposição, tomo as duas questões em separado – a da
imagem do sujeito e a da imagem da vida relacional – para analisá-las em
detalhes.
A mudança na imagem do sujeito defendida
por Foucault é conhecida. Corresponde à noção de estilo de vida ou estética da
existência baseada numa ética dos prazeres e não do sexo. Dando ênfase aos
prazeres e não ao sexo, os sujeitos poderiam reinventar-se, sem recorrer às
identidades criadas pelo sistema de nominação preconceituoso. Sexo, hermenêutica
do desejo, obsessão pela verdade de si, identidades sócio-sexuais fixas, etc.,
são termos do mesmo vocabulário moral articulado aos dispositivos de
sexualidade. A este propósito, Foucault dizia: “ Outra coisa de que é preciso
desconfiar é da tendência para trazer a questão da homossexualidade para o
problema do “Quem sou eu?”, “Qual o segredo de meu desejo?”. Talvez fosse melhor
perguntar: “Que relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas,
moduladas, por meio da homossexualidade”. O problema não é o de descobrir em si
a verdade de seu sexo, mas o de usar, de agora em diante, de sua sexualidade
para chegar à multiplicidade de relações. É, sem dúvida, aí que está a
verdadeira razão pela qual a homossexualidade não é uma forma de desejo mas
alguma coisa de desejável. Nós devemos, então, dedicar-nos a tornarmo-nos
homossexuais e não a nos obstinar em reconhecer que somos homossexuais”
(Foucault, 1994b, p. 163). Mais adiante, na mesma entrevista, reiterava: [início
da pág. 131] “Cabe a nós avançar numa ascese homossexual que nos fizesse
trabalhar sobre nós mesmos e inventar, não digo descobrir, uma maneira de ser
ainda improvável” (p. 165).
Em outra entrevista, comentando os livros
de John Boswell e Karl Dover sobre o homossexualismo, afirmava: “É preciso usar
de sua sexualidade para descobrir, inventar novas relações. Ser gay é ser se
tornando [c'est être en devenir] e, para responder à sua questão, acrescentaria
que é preciso não ser homossexual mas insistir em ser gay” (Foucault, 1994b, p
295). Depois, na entrevista intitulada O triunfo social do prazer sexual: uma
conversação com Michel Foucault, dizia: “Fazer escapar o prazer da relação
sexual do campo normativo da sexualidade e suas categorias; fazer, por esta
mesma razão, do prazer o ponto de cristalização de uma nova cultura, é, acredito
uma abordagem interessante”(p. 309). Por fim, em Entrevista de Michel Foucault
confirmava os pontos de vista anteriores: “ Foi só a partir do momento em que o
dispositivo de sexualidade implantou-se efetivamente, quer dizer, no momento em
que um conjunto de práticas, instituições e conhecimentos fez da sexualidade um
domínio coerente e uma dimensão absolutamente fundamental do indivíduo, foi
neste momento preciso, sim, que a questão “Que ser sexual você é? “tornou-se
inevitável(...) Se bem que do ponto de vista tático importa num dado momento
poder dizer 'Eu sou homossexual', é preciso, a meu ver, a longo prazo e no
quadro de uma estratégia mais vasta colocar questões sobre a identidade sexual.
Não se trata, então, de confirmar sua identidade sexual, mas de recusar a
injunção de identificação à sexualidade, às diferentes formas de sexualidade. É
preciso recusar satisfazer a obrigação da identificação por intermédio e com a
ajuda de uma certa forma de sexualidade” (Foucault, 1994b, p. 662).
Nas entrevistas fica claro o objetivo de
Foucault. Só uma redescrição inédita das subjetividades poderia destronar o
sexo-rei e sua corte de identidades sexuais. Enquanto a auto-realização ou a
auto-perfeição privada curvarem-se ao sujeito sexual dominante, poucas chances
existem de que venhamos a imaginar um modo de vida sem a violência do
preconceito. Ora, este modelo do sujeito sexualmente descentrado e voltado para
uma ética ou estética dos prazeres, não tem lugar no imaginário de Rorty. O
ironismo por ele recomendado parece assustar-se com as metáforas de Foucault. Em
sua ética, não obstante seus protestos, tudo o que deve ser feito é o que vem
sendo feito. Assim, falando a respeito do tema das escolhas morais privadas,
afirma que “intelectuais românticos, religiosos místicos, fetichistas sexuais”
(Rorty, 1991a, p. 197) podem ter direito a buscar sua auto-realização, desde que
respeitem o limite do público. Em outro artigo, mostrando a meta liberal de
convívio humano diz: “para tornar os Brancos mais amáveis com os Negros, os
machos com as mulheres, (...) ou os heterossexuais com os homossexuais...” etc.
(Rorty, 1994, p. 27). Ou seja, quando fala de conflitos, Rorty deixa de lado a
contingência do sujeito e da linguagem e toma como perenes as identidades
instituídas de raça, sexo, gênero etc.
[início da pág. 132] Ora, é justamente
isto que Foucault procura redescrever. Mas, em sua ficção de um mundo novo, a
vida relacional transborda o quadro institucional estabelecido. Foucault não
cansa de repetir: não basta “liberar” o que se supõe sufocado ou reprimido. O
próprio reprimido e sufocado foi produzido pelos dispositivos disciplinares. A
miséria sexual, dizia ele, é produzida como o capitalismo produz miséria
econômica. Ou seja, não basta dar pão sexual aos famintos; é preciso que
deixemos de produzir um mesmo tipo de fome. Na famosa entrevista Não ao sexo
rei, Foucault observava: “Um movimento se desenha hoje que parece subir a
ladeira do 'sempre mais sexo', 'sempre mais verdade do sexo' à qual séculos nos
haviam fadado; trata-se, não digo de redescobrir, mas simplesmente de fabricar
outras formas de prazeres, de relações, de coexistências, de ligações, de
amores, de intensidades” (Foucault, 1994a, p. 261). Na entrevista mencionada, Da
amizade como modo de vida, volta ao tema: “Aquilo para o que se orienta os
desenvolvimentos do problema da homossexualidade é o problema da amizade. (...)
Homens de idade notavelmente diferentes, que código terão eles para se
comunicarem entre si? Eles estão um em face do outro sem armas, sem palavras
convencionais, sem nada que possa reassegurá-los sobre o sentido do movimento
que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma relação ainda sem
forma e que é a amizade: quer dizer a soma de todas as coisa pelas quais pode-se
dar prazer um ao outro” (Foucault, 1994b, p.163-164). Em outra passagem da mesma
entrevista é dito: “Esta noção de modo de vida me parece importante. Será que
não seria preciso introduzir uma diversificação outra que não aquela devida às
classes sociais, diferenças de profissão, de níveis culturais, uma
diversificação que seria também uma forma de relação e que seria “o modo de
vida”. Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e
atividade sociais diferentes. Pode dar lugar à relações intensas que não se
parecem a nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo
de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética. Ser gay é, creio, não se
identificar aos traços psicológicos e às máscaras visíveis do homossexual, mas
buscar a definir e a desenvolver um modo de vida” (Foucault, 1994b, p.
165).
Este modo de vida, contudo, pede uma rede
institucional outra que não a conhecida. Na entrevista O triunfo social do
prazer sexual: uma conversação com Michel Foucault indícios deste modo de vida
são sugeridos: “Vivemos em um mundo relacional que as instituições empobreceram
consideravelmente. A sociedade e as instituições que constituem sua ossatura
limitaram a possibilidade de relações porque um mundo relacional rico seria
extremamente complicado de gerir. Devemos bater-nos contra este empobrecimento
do tecido relacional. (...) Tomemos, por exemplo, as relações de amizade. (...)
Elas desempenhavam um papel considerável, mas havia toda uma espécie de
enquadramento institucional flexível – mesmo se, por vezes, era coercitivo – com
um sistema de obrigações, de tarefas, de deveres recíprocos, uma hierarquia
entre amigos, e assim por diante. (...) Quando você lê [início da pág. 133]um
testemunho de dois amigos desta época, você se pergunta sempre o que acontecia
realmente. Faziam eles amor juntos? Tinham uma comunidade de interesses? Nenhuma
das duas coisas ou as duas?” (Foucault, 1994b, p. 309-310). Continuando, diz
Foucault: “Em realidade, a vida de solidão à qual é condenado o celibatário é,
freqüentemente, o efeito do empobrecimento das possibilidades relacionais em
nossa sociedade, onde as instituições tornam exangues e necessariamente raras
todas as relações que se poderia ter com um outro e que poderia ser intensas,
ricas, mesmo se fossem provisórias, mesmo e sobretudo se não tivessem lugar nos
laços do casamento” (Foucault, 1994b, p. 311).
Em outra passagem de suas intervenções,
diz: “Que em nome do respeito aos direitos do indivíduo, deixemos que ele faça o
que quiser, tudo bem. Mas se o que se quer fazer é criar um novo modo de vida,
então a questão dos direitos do indivíduo não é pertinente. Com efeito, vivemos
num mundo legal, social, institucional, onde as únicas relações possíveis são
extremamente pouco numerosas, extremamente esquematizadas, extremamente pobres.
Existe, evidentemente, a relação de casamento e as relações de família, mas
quantas outras relações poderiam existir, poderiam encontrar seus códigos não
nas instituições mas em suportes eventuais? Isto não acontece em absoluto”
(Foucault, 1994b, p. 309).
Resta perguntar em que o desejo de criar
um tecido relacional mais rico, intenso, plural, que ofereça novas
possibilidades de satisfação emocional pode ser contrário à consideração pela
dor e sofrimento do outro? Em nada, penso. Obviamente, Rorty poderia replicar
que esta crítica aos espaços institucionais poderia violentar as convicções dos
que aceitam os limites morais do estado de coisas existentes. Como observou
Visker, ele crê que “a maioria das pessoas não deseja ser redescrita” e “quer
ser levada à sério nos seus próprios termos, ou seja, na maneira como é como
fala” (Visker, 1994, p. 281-282). A “redescrição freqüentemente humilha”,
“sugerindo que o eu e o mundo” de quem está sendo redescrito “é fútil, obsoleto
e vão” (Rorty, 1989, p. 89-90). Mas isto aplica-se ao próprio Rorty! A distinção
entre o “ironista” indiferente ao outro e o “ironista liberal rortyano” atento
ao outro, não pode ser feita com base nos riscos de “humilhação”, presentes em
toda redescrição. A distinção entre o indiferente e o sensível ao sofrimento do
outro, passa pela defesa que o segundo faz do “valor do respeito ao sofrimento
alheio”. Porém, em que sentido pode-se dizer que Foucault mostrou-se indiferente
à idéia de sofrimento? Em nenhum, sugiro. Como prova, tomo seus depoimentos
sobre o sado-masoquismo, figura da sexualidade, onde o sofrimento é, mais do que
em outras, problematizado.
Falando a respeito do sado-masoquismo
dizia: “Eu vou arriscar a hipótese seguinte: numa civilização que, durante
séculos, considerou que a essência da relação entre duas pessoas residia no fato
de saber se, sim ou não, uma das duas partes ia ceder à outra, todo o interesse
e toda a curiosidade, toda audácia e a manipulação de que dão prova as partes em
questão sempre visaram [início da pág. 134] à submissão do parceiro afim de
dormir com ele. (...) O sado-masoquismo não é uma relação entre aquele (ou
aquela) que sofre e aquele (ou aquela) que infringe sofrimento, mas entre um
senhor e a pessoa sobre a qual se exerce sua autoridade. O que interessa aos
adeptos do sado-masoquismo é o fato de que a relação é, ao mesmo tempo,
submetida às regras e aberta. Ela parece um jogo de xadrez, onde um pode perder
e outro ganhar. O senhor pode perder (...) se se revela incapaz de satisfazer as
necessidades e as exigências de sofrimento de sua vítima. Do mesmo modo, o
escravo pode perder se não consegue superar ou se não suporta superar o desafio
lançado pelo seu mestre. Esta mistura de regras e abertura tem por efeito uma
intensificação das relações sexuais, introduzindo uma novidade, uma tensão e uma
incerteza perpétuas, de que é exemplo a consumação do ato. O objetivo é assim de
utilizar cada parte do corpo como um instrumento sexual” (Foucault, 1994b, p.
331-332).
Em outro lugar, voltando ao assunto, diz
ele: “O sexo não é uma fatalidade; é uma possibilidade de aceder a uma vida
criativa. (...) Eu não penso que este movimento [a chamada cultura
sado-masoquista] de práticas sexuais tenha nada a ver com a atualização ou a
descoberta de tendências sado-masoquistas profundamente enterradas em nosso
inconsciente. Penso que o s/m é muito mais do que isso. É a criação de novas
possibilidades de prazer, que não tínhamos imaginado antes. A idéia de que o s/m
está ligado a uma violência profunda; que sua prática é um meio de liberar esta
violência, de dar livre curso à agressão é uma idéia estúpida. Sabemos muito bem
que o que estas pessoas fazem não é agressivo; que elas inventam novas
possibilidades de prazer, utilizando certas partes bizarras de seus corpos –
erotizando este corpo. Penso que temos neste caso uma espécie de criação, da
qual uma das principais características é o que chamo a dessexualização do
prazer. A idéia de que o prazer físico provém sempre do prazer sexual e a idéia
de que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis, isto, penso, é
verdadeiramente qualquer coisa de falso. O que as prática s/m nos mostram é que
podemos produzir prazer a partir de objetos muito estranhos, utilizando certas
partes bizarras de nosso corpo, em situações muito inabituais (...). A
possibilidade de usar nosso corpo como fonte de prazer possível de uma multidão
de prazeres é algo de muito importante. Se consideramos, por exemplo, a
construção tradicional do prazer, constatamos que os prazeres físicos, ou
prazeres da carne, são sempre a bebida, a comida e o sexo. É aí que se limita
nossa compreensão dos corpos, dos prazeres. (...) O jogo s/m é muito
interessante porque, embora seja uma relação estratégica, é sempre fluido.
Existem papéis, é claro, mas cada um sabe que estes papéis podem ser invertidos.
Por vezes, quando o jogo começa, um é o mestre e o outro o escravo e, no fim,
quem era escravo tornou-se mestre. (...) Este jogo estratégico é muito
interessante, enquanto fonte de prazer físico. Mas não diria que constitui uma
reprodução, no interior da relação erótica, da estrutura de poder. É uma
encenação das estruturas de poder por um jogo estratégico capaz de [início da
pág. 135] produzir um prazer sexual e físico” (Foucault, 1994b, p.
735-746).
Com a longa citação, não penso em
caucionar, ponto por ponto, a explicação dada por Foucault ao sado-masoquismo.
Concordo, no entanto, com sua tentativa de desmantelar uma categoria
pretensamente homogênea de “seres sexuais” inventadas no século XIX, que teriam
algo em comum que seria a “sado-masoquistidade” de todos os sado-masoquistas. A
citação visa mostrar que, para ele, a condição de aceitação do sado-masoquismo é
sua total redescrição. Redescrição que rompe com imagem oitocentista que temos
do fenômeno e que o aproxima das práticas dos prazeres ou práticas sexuais
correntes na nossa cultura. Em primeiro lugar, nesta interpretação, o fundamento
do sado-masoquismo não é o sofrimento e sim o prazer físico que pode ser sexual
ou não. Em segundo lugar, o deslocamento do prazer, do exclusivo campo da
sexualidade, permite a encenação do que Foucault entende como sendo desmontagem
das relações fixas de dominação e sujeição, presentes no ato sexual. Quem manda
e quem obedece; quem é passivo e quem é ativo, são papéis reversíveis na versão
foucaultiana do sado-masoquismo.
É possível que, para muitos,
psicanalistas inclusive, o sado-masoquismo de Foucault tenha algo de angelical.
Mas este é o coração do problema. Um metafísico, na terminologia de Rorty, diria
que existe uma verdadeira natureza do sado-masoquismo que Foucault tenta
mascarar, dourando a pílula, em favor da própria teoria. Um ironista
descomprometido com sua comunidade, limitar-se-ia a defender o direito de cidade
do sado-masoquismo, sem maiores preocupações com a imagem que a maioria das
pessoas tem do que representa gozar com a humilhação moral ou com sofrimentos
físicos. Foucault, entretanto, justifica sua opinião, criando uma versão
compatível com as exigências éticas de respeito à dor e ao sofrimento do outro.
Procura fazer dos adeptos do sado-masoquismo não só “um de nós”, mas “alguns dos
melhores dentre nós”. Ao condenar. por exemplo, o estupro, a necrofilia e a
moral grega dos eros e afrodisia, deixa claro que o sofrimento e a dominação dos
sujeitos é aquilo reprova e que não imagina que possa ser aceito.
Onde estaria, então, seu descompromisso
com credo moral básico de seu tempo e de sua comunidade? O que ele faz, por
exemplo, no caso do sado-masoquismo, é desconstruir a descrição
médico-sexológica do século XIX, propondo uma outra. O que ele faz é criar uma
nova metáfora que nos leva a duvidar de nossas crenças e a perguntar: por que
acreditar na versão de Kraft-Ebing e não na sua? Será que existe, de fato, um
“sado-masoquismo comum” à todos os sado-masoquistas? E se, em vez de carimbar
pessoas com este rótulo infame, pudéssemos redescrever esta prática como uma
“encenação reversível” do jogo da dominação/submissão, passividade/atividade,
deslocando o sofrimento físico de seu papel de fim para o de meios com vistas a
outros fins? Neste caso, por que horrorizar-se com o sado-masoquismo, nós que
convivemos, entre bocejos e risadas, com lutas de boxe, viciados em exercícios
físicos, pancadarias em estádios de futebol, programas de calouros em domingos
televisivos, etc. Em todos estes casos, e em muitos outros, a excitação [início
da pág. 136] física com o sofrimento é patente. Mas nem por isso construímos
identidades sócio-sexuais ou sócio-físicas dos praticantes “destes esportes”! O
escândalo do sado-masoquismo não é o sofrimento; é sua vinculação ao sexo.
Foucault não só procura desvincular a relação de necessidade entre um e outro,
como mostra que, deixando de acreditar na verdade do sujeito sexual, podemos
pensar em relações humanas onde o “referente do pronome nós”, como exige Rorty,
seja sensivelmente ampliado.
Finalizando, penso que Rorty entendeu mal
ou intimidou-se com a imaginação de Foucault. Não pôde ver que, num certo
sentido, a démarche foucaultiana é mais rortyana do que Rorty poderia prever.
Foucault não me parece nenhum candidato à crueldade. Parece-me, isto sim, um dos
últimos revolucionários utópicos de nosso presente histórico. Pertence a
linhagem dos Marcuses, sem a crença ingênua “na boa natureza do sexo” e nas
virtudes universais da “razão estética”. Não por acaso, respondendo à questão de
um entrevistador – qual é a solução? – disse: “Devemos começar por reinventar o
futuro, mergulhando em um presente mais criativo. Deixemos cair a Disneylândia e
pensemos em Marcuse”(Foucault, 1994a, p. 678).
Nada mais pragmático; nada mais
“humanamente útil”.
Notas:
1. Nosso objetivo não é o de apresentar
sistemá-ticamente o pensamento de Richard Rorty. Limito-me, aqui, a enviar o
leitor aos estudos que mais diretamente dizem respeito ao te-ma discutido neste
texto. Além de alguns textos do próprio Rorty, citados no trabalho, ver Murphy,
1990 e Hall, 1994;
2. Sobre Davidson, ver: Davidson, 1982,
1990, 1991a, 1991; Evnine, 1991; Ramberg, 1989; Engel, 1989.
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