A geografia do tempo



A geografia do tempo

A atriz Simone Spoladore e o diretor Eduardo Nunes falam sobre o filme “Sudoeste”

A atriz Simone Spoladore em cena de "Sudoeste"
Guilherme Zanella

Uma carroça invade a cena, junto do seu ruído contínuo, incidente, cruzando o cenário árido que a contrastante fotografia apresenta. Vagarosamente, desvenda-se por intermédio  do leve movimento de câmera a geografia litorânea.

A cada plano, Sudoeste oferece uma estética rebuscada e bem trabalhada, embalsamada pelo anacronismo do preto e branco, que pretende transportar o espectador a um universo lírico em que o tempo não respeita imposição regrada.
Por meio de um forte diálogo entre indivíduo e paisagem natural, Clarice, protagonista a traçar o arco da sua vida no período de um dia, nascida a partir do óbito da mãe no parto, coexiste com os demais personagens em uma dessincronia temporal.

Sucesso de público e crítica no Festival do Rio, além de ter recebido prêmios em festivais internacionais como Havana, Toulouse e Rotterdam e ter sido consagrado com o prêmio Andrei Tarkóvski, feito inédito no cinema nacional, o longa entra agora em circuito em São Paulo.
A seguir, a protagonista Simone Spoladore e o cineasta Eduardo Nunes falam à CULT sobre as experiências e concepções de Sudoeste.

CULT – Você atuou em filmes como Lavoura Arcaica, Natimorto e Desmundo, além de fazer participações na televisão. O que o papel de Clarice te trouxe de novo e possivelmente influenciou na tua forma de ver o cinema?

SIMONE SPOLADORE – Nesse trabalho eu ressalto muito a relação de parceria com o Eduardo, de a gente ter trabalhado em um filme antes e ter descoberto uma sintonia. Ressalto isso porque sintonias são raras na vida. A gente começou lendo o roteiro juntos e falamos sobre cada cena, não só da Clarice, mas do filme todo. Eu participei desse processo de um jeito que eu ainda não tinha participado, de uma maneira mais íntima.

Ressalto também a relação com a própria personagem, que tem a passagem de tempo diferente dos demais. Que nasce de manhã, envelhece e morre à noite. Eduardo me indicou alguns filmes pra ver e, principalmente, um livro da Simone de Beauvoir, Velhice, que fala desse processo do envelhecimento que foi muito interessante.
Fiz a Clarice entre os 18 e 45 anos, talvez, e pensei em como fazer isso porque uma mulher de 20 e de 40 são muito parecidas fisicamente. Envelhece a pele, mas não há exatamente uma postura que mude tanto.
Algo bem interessante que achei que ela dizia é que o processo de envelhecimento tem muita relação com o olhar do outro. A gente não percebe que envelhece. A gente só percebe quando o outro chega e nos chama de “senhora”, ou nos trata de um jeito diferente. Achei isso muito interessante e foi um dos elementos que a gente usou pra compor a personagem.

Além de Simone de Beauvoir, quais foram as outras referências para a criação da personagem?

A gente falava bastante de [Andrei] Tarkóvski. No campo da interpretação, eu pensaria mais no [Robert] Bresson. De uma interpretação em que a construção está quase na não-construção. Uma coisa meio “limite”.

Você acredita que, tanto pelos aspectos temáticos quanto pela esteticidade, Sudoeste propõe um desprendimento que o destaca do que o espectador espera do cinema nacional, mais conhecido pelo forte cunho social?

Acredito que é um filme singular, único. O interessante é que você observa essa autoria inclusive nos curtas do Eduardo, nos quais o filme está espelhado. Toda a raíz está dentro dos curtas. Isso eu achei muito bonito de observar. É um cinema de autor, ligado às questões do tempo. É uma pesquisa de muitos anos e acho que isso aparece claramente no filme. Mas se é algo novo, eu ainda não consigo ter esse distanciamento. É engraçado, a gente demora pra ver o filme que a gente fez, vê-lo de fato. Ficamos muito misturados naquilo.

Os cenários dialogam muito com os personagens, eles têm um tratamento privilegiado. Como foi o processo de preparação de atores e até que ponto foi definida a mecânica das cena dentro desses ambientes?

A gente não teve nenhum ensaio. O que a gente fez foi conversar. Lemos o roteiro uma vez, juntos, conversamos sobre isso, dividimos experiências e filmes que a gente assistiu, muita conversa. E foi um processo intuitivo, também. Não teve nenhum ensaio num sentido claro. A gente foi ensaiar no dia de filmagem mesmo. O Eduardo é muito sensível como pessoa e ele leva isso para o trabalho dele como diretor.

Os enquadramentos foram feitos com uma precisão artística muito grande. Como a liberdade do ator em cena dialogou com esse quadro?

A gente tinha liberdade pra criar a cena. Na cena do estupro da Clarice, por exemplo, a gente criou essa cena na hora, juntos. Ela chama ele, do lado de fora, ela acha que é o irmão, em primeiro lugar. Ela se entrega pra ele. E aquilo, depois, vira violência. No meio dessa violência, nasce uma coisa obscura também, de ter a dor e o prazer ao mesmo tempo. O sexo é uma coisa obscura, na mente. A gente buscou, nesse sentido, como poderíamos criar essas contradições dentro da cena.
Essa cena me foi muito marcante porque a gente construiu ali mesmo, conversando. As coisas iam tomando forma assim: construindo, pensando a respeito, falando. E eu acho que isso vem muito da liberdade que você tem com o diretor de poder dizer o que pensa, o que é fruto de uma intimidade que a gente constrói.
Tinha outra cena interessante, que acabou não indo pro filme, na caverna. Eu não conseguia entender a cena, eu a imaginava mais escura, mas estava super clara. Eu estava me debatendo com isso, não estava conseguindo fazer. Chegou uma hora em que ele veio pra mim e disse: “não se preocupa, na câmera parece que está escuro”. O enquadramento traz uma sensação de escuridão.  Isso bastou pra mim e a gente conseguiu fazer.
Dira Paes também faz parte do elenco de "Sudoeste"


CULT – O apuro estético que te levou a fazer Sudoeste foi resultado de uma caminhada e aperfeiçoamento artístico? Quando se sentiu pronto pra fazer, de fato, um longa-metragem?
EDUARDO NUNES – Realizei meu primeiro curta Sopro em 1994, depois foram mais quatro curtas até 2001 e, em 2010, antes do Sudoeste, realizei o Duas da manhã, em que Simone Spoladore atue e que seria meu primeiro longa, mas ainda está em finalização.
Acho que desde o primeiro curta é possível perceber as características narrativas que estão em Sudoeste, talvez porque eu acredite num determinado cinema que só pode ser expresso através desta forma de contar uma história. Sem dúvida ele é fruto dos filmes anteriores. Enfim, eu acreditava que estava pronto para fazê-lo desde 2002, quando terminei meu último curta, mas foi um processo longo de preparação e captação, e não sei dizer como isso interferiu no projeto. Mas um filme é sempre reflexo do que estamos vivendo.

Como analisa o meio audiovisual brasileiro enquanto processo de busca de consolidação industrial ainda preso a mecanismos de fomento e leis audiovisuais, e como o classifica em termos de qualidade estética, diversidade temática e desenvolvimento de projetos?

Quando comecei a estudar cinema, em 1990, a produção brasileira de longas estava em zero, e naquele momento surgiu toda uma geração que começou a fazer cinema através dos curtas e criou um estilo neste formato. De lá pra cá muita coisa mudou e, sem dúvida, estamos num momento muito bom.
Acho que aos poucos estamos nos reestruturando como indústria, com filmes com um grande alcance de público e auto-sustentáveis. Mas é preciso perceber que filmes com uma proposta de linguagem mais ousada e que não chegam a um público tão grande são tão ou mais importantes que filmes mais populares. São nestes filmes – ditos autorais – que uma cinematografia se firma, mostra a sua identidade para seus pares e para o mundo. Uma cinematografia sólida é criada com essas duas bases.

Sudoeste parece muito mais uma experiência alegórica, onde o tempo é esculpido a rigor do recorte artístico do autor, do que uma simples história plana. Quais foram as referências para moldar esteticamente e narrativamente a obra?

O tempo talvez seja o personagem principal do filme. Ao criar duas linhas temporais simultâneas – a vida de Clarice durando um único dia e a dos outros personagens que tem aquele dia como outro qualquer –, pretendemos criar uma reflexão sobre o tempo em si. Neste sentido, não há como compreender a história de forma plana: os tempos são simultâneos, o passado, o presente e o futuro acontecem juntos, e um interfere no outro. O desafio é o de tornar a história compreensível e sensível, mesmo com esta narrativa pouco convencional.


Andre Bazin fala sobre a imagem extraordinária que trata do tempo do plano a favor do espectador e que leva o filme a um estado em que a montagem se torna proibida e da intersecção, também, entre o sujeito-câmera com a imagem capturada. Como se comporta a figura da câmera na sua obra e qual é, na sua opinião, o papel do autor no seu filme?

Como disse, o filme trata do tempo. É claro que o tempo interno do filme precisa ser especial. Se investirmos num filme com poucos cortes, em que o tempo interno do plano é forte o suficiente para parecer verdadeiro ao espectador, passa a existir, em quem assiste, a oportunidade de compartilhar o mesmo tempo do personagem do filme. Ou seja, a vivência do personagem é a mesma do espectador. Por isso investimos tanto em criar uma atmosfera especial com imagens e sons.

O espectador precisa estar imerso num outro universo. Quando assumimos o papel de autor, alguém que conta uma história de uma maneira própria, entendemos que todas as escolhas influenciam na forma como essa história vai ser contada. Ao preferir mostrar uma imagem, por exemplo, um plano aberto num lento travelling lateral, mudamos a percepção desta imagem. A forma como contamos a história é tão importante quanto a própria história.

O projeto nasceu já com uma concepção artística de tratamento em preto e branco e alto 
contraste?

No momento em que a ideia do filme surgiu, ele era colorido. Um colorido bem fraco, pálido. Entendia que seria importante marcar cada etapa do dia com cores: a manhã seria amarelada, o meio do dia branco e o entardecer avermelhado. Acreditava que era um elemento a mais para trabalhar a ideia de um filme num único dia, e também para criar a ambiência.
Mas, conversando com o fotógrafo do filme, Mauro Pinheiro, percebemos que o preto e branco era um elemento importante para o tom de fábula que o filme tem. Era preciso afirmar com o preto e branco que aquilo era uma história contada, não era real. O preto e branco nos distancia da realidade, nos faz acreditar que aquela história aconteceu numa época e lugar distantes.


Você vem acompanhando o trajeto do filme, que já passou em diversos festivais. Como está sendo a recepção?
Desde a sua estreia no final do ano passado, o filme foi exibido em muitos festivais em diversas partes do mundo, quase 30 países diferentes. Sempre que posso, acompanho o filme. É muito emocionante o contato com a plateia depois da sessão. Perceber que podemos dizer algo que toca profundamente pessoas na Coreia, Rússia, Cuba, França, Índia, etc., da mesma forma. Isso é incrível! Sem dúvida é o melhor retorno que se pode ter com um filme. Além disso, o filme tem sido muito bem recebido pelos júris e pela crítica; até agora já são quinze prêmios internacionais.

Simone Spoladore disse que não foram feitos ensaios tradicionais e sim conversas. Como foi esse processo de preparação de elenco?

Gosto muito de atores e é preciso saber confiar neles. Quando escolhemos o elenco de um filme, pesam muitas questões: obviamente o talento de cada um, o perfil do personagem, etc. Mas, antes de tudo, pesa a relação de compromisso entre ator, diretor e filme. No momento em que existe uma confiança mútua entre estes três elementos, todo o resto acontece naturalmente. Acredito que o ensaio pode tirar o que há de verdadeiro em uma interpretação mais espontânea, e por isso preferi conversar com os atores durante muito tempo para que entendessem o filme da mesma forma com

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog