Editorial: Dor e reparação

Editorial: Dor e reparação

Diante de uma tragédia com as proporções da ocorrida na madrugada de domingo em Santa Maria (RS), é natural e previsível a reação de apontar o dedo na direção dos culpados pelo acidente
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Sem dúvida, não faltam indícios espantosos de irresponsabilidade e de negligência na fiscalização da boate Kiss, palco da tragédia que vitimou duas centenas de jovens num incêndio.

Antes de insistir no óbvio --a necessária apuração dos fatos e a consequente punição dos que nada fizeram para evitá-los--, valeria amainar, entretanto, em benefício da reflexão e da solidariedade, os ímpetos do espírito acusatório.

Encarado na escala individual, a das famílias e dos amigos, dos namorados e das namoradas, o acontecido é incompreensível, inaceitável, por mais que, em seguida, os olhos do público se voltem para as circunstâncias concretas --e evitáveis-- do horrível incêndio.

Uma vez que pouco se pode acrescentar diante do essencial da dor humana, além de palavras de compaixão e consolo a que somente o tempo será capaz de conferir alguma ressonância, resta voltar a atenção para o que se afigura apenas tópico, nesta hora.

Informa-se que a casa noturna não tinha alvará de funcionamento nem plano atualizado de prevenção a incêndios. Sim, mas cabe observar que os documentos necessários para a promoção de eventos no local já tinham sido concedidos em anos anteriores; faltava, ao que parece, apenas renová-los. Corresponderiam, na época em que eram válidos, a um ambiente realmente seguro?

A boate não possuía sinalização adequada para casos de emergência. Com a escuridão e a fumaça, sua ausência se provou fatal. Não existia, de resto, outra saída além da principal, de dimensões óbvia e desgraçadamente insuficientes.

Pouco havia a fazer depois de, segundo se relata, a fagulha de um artefato pirotécnico ter atingido o teto da boate, revestido de material inflamável. Afirma-se, ainda, que extintores de incêndio manuseados por seguranças e músicos não teriam sido eficazes.

A falta de fiscalização e a total imprevidência dos responsáveis --tenha ou não o incêndio sido causado pelos fogos de artifício-- estão fora de dúvidas. Na obscuridade continuarão outros inúmeros locais públicos onde riscos semelhantes podem se materializar.
Já se observa um surto de atividade normativa e fiscalizadora entre prefeitos de outras localidades. Que não se esgotem no oportunismo inconsequente de sempre.

O país ganharia, porém, com uma norma federal para uniformizar regras básicas de prevenção a tais acidentes, como metragens mínimas de portas de emergência, proporcionais à lotação do local, e proibição categórica de dispositivos pirotécnicos em recintos fechados.

É o que resta a fazer. Pouco, diante de tantos mortos, mas já seria muito, diante do desleixo e da imprevidência usuais na administração pública brasileira.

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