NUEVO MUNDO de MÁRIO MAESTRI

señalar

I. A instauração historiográfica: a historiografia de trincheira

1A guerra contra o Paraguai foi acontecimento central da história do Brasil da segunda metade do século 19. Em sentido lato, as ações militares iniciaram-se em 16 de outubro de 1864, com a intervenção do Império no Uruguai contra o autonomismo blanco, exigida pelos criadores rio-grandenses instalados no norte daquele país e pela política imperial no Prata, e concluíram-se, em 1º de março de 1870, com a morte de Solano López, com o Paraguai sob ocupação.
2Dos 150 mil brasileiros que teriam participado no confronto, talvez até cinqüenta mil morreram. Uns 0,5% dos dez milhões de habitantes do Brasil em 1872. Os gastos com o esforço militar comprometeram por mais de uma década as finanças brasileiras, ainda que o país recebeu indenização de guerra até a II Guerra, conquistado importantes territórios ao Paraguai e estabelecido relação hegemônica sobre o país. Com talvez quatrocentos mil habitantes, o Paraguai teve a população sobretudo masculina dizimada. O país foi ocupado, amargou perdas territoriais, arcou com indenizações de guerra, teve terras públicas privatizadas, foi obrigado a endividar-se, teve seu campesinato destruído.
  • 1 Cf. Conrad, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilizaç (...)
  • 2 Cf. Lemos, Renato. (Org.) Cartas da Guerra: Benjamin Constant na Campanha do Paraguai. Rio de Jane (...)
3A guerra mostrou o anacronismo do Brasil escravista para enfrentar esforço militar moderno. Durante o confronto, a luta abolicionista, o grande movimento nacional em gestação, foi imobilizada, retardando possivelmente a abolição da escravatura. [1] Os partidos liberal e conservador apoiaram luta rejeitada pelas classes populares e subalternizadas, sem que força institucional se opusesse a ela. [2]
4As forças armadas imperiais conheceram salto qualitativo e quantitativo transitório sobretudo no relativo ao Exército. Até então, o exército participara apenas de combates internos e de operações intervencionistas no Plata. A guerra ensejou a gênese da idéia do Exército-oficialidade como encarnação da honra e dos destinos do país.

Historiografia de Trincheira

5As primeiras obras brasileiras de cunho memorialista sobre a Guerra foram realizadas durante e imediatamente após o conflito.[3] Trataram-se sobretudo de narrativas sobre o heroísmo e a abnegação das forças armadas nacionais em defesa do Brasil e da “civilização”, agredidos por “barbárie” corporificada no ditador paraguaio,. Comumente produto de ex-combatentes, essa produção registrou uma leitura dos fatos desde a trincheira brasileira.[4]
  • 3 Cf. entre outros: DIAS, Satyro de Oliveira. Duque de Caxias e a Guerra do Paraguai. Salvador: Diár (...)
  • 4 Cf. Sousa, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Ri (...)
  • 5 Cf. Taunay, Alfredo d’ Escragnolle. [1843-1899] A retirada da Laguna: episodio da Guerra do Paragu (...)
  • 6 Cf. Ibidem, p. XXV.
6Destaca-se nessas obras a célebre Retirada da Laguna: episódio da Guerra do Paraguai, do jovem engenheiro-militar Alfredo de Escragnolle-Taunay , publicada em 1871, em francês, “por ordem do governo brasileiro”.[5] Seu sucesso de público transformou os fatos narrados em legenda paradigmática do confronto. Elanarra a expedição que, enviada do litoral, no início da guerra, para abrir segunda frente no norte do Paraguai, invadiu em janeiro de 1867, com 1.600 homens, poucos quilômetros daquele país, até a fazenda da Laguna, para empreender a seguir, desastrada retirada, sobretudo em território mato-grossense, fustigada pelos paraguaios. [6]
  • 7 Cf. Ibidem, p. 56, 73, 77, 105, 156-59, 165-69; 177, 182, 212.
  • 8 Cf. Ibidem, pp. 54, 64, 65, 75, 104, 106, 113, 126, 131, 141.
7 O relato desvela cenários em contradição com a retórica patriótico-militarista habitual nessa literatura: operação arriscada e mal planejada, decidida por oficiais sedentos de consagração; o medo, o suicídio, a indisciplina e a deserção; o abandono de combatentes doentes; o hábito do saque[7] Fora algumas referências depreciativas a Solano López, o livro registra comumente a admiração com a belicosidade, disciplina, engenhosidade e operosidade dos guaranis. [8]
8 A obra registra a cultura habitual nessa produção memorialista de defesa intransigente pela oficialidade da honra edos brios do país feridos pela “agressão”paraguaia. Como habitual nessa produção, não há quase descrições dos soldados, jamais nominados, a não ser no geral, como combatentes, doentes, desertores, etc. A retirada da Laguna ensejou narrativas patrióticas subseqüentes apresentando a patética operação como feito bélico e humano superior aos mais heróicos atos militares universais
9A narrativa memorialista sobre a guerra contra o Paraguai foi produzida em geral por oficiais e profissionais liberais que participaram da Guerra, sem grandes informações sobre suas razões profundas, sobre o Paraguai e sua sociedade e, não raro, sobre o próprio Império, uma entidade na época sobretudo política, devido à sua fortíssima regionalização.

Historiografia Republicana

10O golpe republicano de 1889 expressou os interesses dos grandes proprietários provinciais, desobrigados pela superação da escravatura, em maio de 1888, da sustentação do centralismo monárquico.[9] Ele deu-se sob a égide da alta oficialidade, interessada na consolidação e radicalização das propostas das forças armadas como representantes dos interesses da nação, fortalecendo-se a seguir a historiografia nacional-patriótica sobre o confronto.[10]
  • 9 Cf. Maestri. A Escravidão e a gênese do Estado Nacional Brasileiro. In: Seminário Internacional Al (...)
  • 10 . Cf. Sousa, Jorge Luiz Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paragu (...)
  • 11 Cf. Lemos, Renato. (Org.) Cartas da Guerra: Benjamin Constant na Campanha do Paraguai. Ob.cit.; Re (...)
11A proposta de identidade nacional republicana, elitista e autoritária, com as forças armadas como guardiãs dos interesses da nação, apoiou-se nas narrativas nacional-patrióticas sobre a Guerra. Os oficiais monárquicos maiores que intervieram no conflito foram elevados ao status de figuras luminares da nação republicana e das forças armadas. Foram sufocadas as duras críticas à condução do conflito. [11]
  • 12 Cf. entre outros: Cerqueira, Gal. Dionísio [Evangelista de Castro]. [1847-1910] Reminiscência da C (...)
12A historiografia republicana consolidou a instauração da narrativa nacional-patriótica construída através da seleção-organização das apologias do Estado e das classes dominantes imperiais. Essa produção despreocupou-se com as razões e os cenários sociais e nacionais da Guerra, privilegiando a apresentação cronológico de confronto, definido como choque entre a civilização e a barbárie,promovido pela agressão de Solano López, apostrofado de “tirano”, “ditador”, “megalômano”. etc.[12]
  • 13 Cf. Sousa, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Rio (...)
13Para corroborar a visão de embate querido pelo ditador paraguaio, essa historiografia consolidou como ponto zero do confronto o aprisionamento do vapor mercante brasileiro Marquês de Olinda, em novembro de 1864, em águas paraguaias, sem declaração de guerra, e não a invasão pelo Império, um mês antes, do Uruguai, apoiado pela Argentina mitrista, fato anunciado pelo governo paraguaio como casus belli, pois condicionava a saída ao mar do Paraguai à vontade do Império e da Argentina. Essa historiografia ignorou o fato de que o Império preparava-se para guerra, se possível com o apoio e a participação do unitarismo argentino, que sequer reconhecia a independência paraguaia . [13]

Historiografia paraguaia

14A historiografia republicana brasileira propôs que a guerra fosse apenas contra Solano López, retomando a retórica do Tratado da Tríplice Aliança, que pactuou, no início do conflito, o fim da autonomia paraguaia através da apropriação de parcelas dos seus territórios; de pesadas reparações de guerra; do desarmamento do país; da sua ocupação; da internacionalização de sua navegação interna; etc. Lançou a responsabilidade pela dizimação da população sobre o ditador e sobre o próprio povo, por segui-lo na aventura. Essa literatura encerra-se com a morte de López, olvidando a aplicação impiedosa das condições do Tratado, que apontavam para as razões estruturais do conflito e para a refundação liberal e dependente do país.
15Essa narrativa registrou comumente, quase perplexa, a resistência paraguaia, paradoxo que jamais superou, devido à impossibilidade de explicar o imenso esforço bélico e as enormes baixas do Império para vergar uma nação de menor importância. Realidade em geral apresentada como produto da preparação militar prévia e do fanatismo e desprezo pela vida paraguaios. A marcialidade paraguaia seguiu como enigma sem resolução. Ela dificultou que a guerra galvanizasse o imaginário popular brasileiro, que se manteve em geral infenso à retórica nacional-patriótica. A Guerra continua sendo cultuada sobretudo pelo Estado. Ultimamente, ensaia- construção de legenda da história regional e da participação popular no conflito.
16 As interpretações nacional-patrióticas de inspiração estatal prosseguiram plenamente hegemônicas até a década de 1970, sem questionamentos por parte da historiografia acadêmica ou extra-acadêmica, desde 1964 sob o peso de ditadura militar.

II. O revisionismo historiográfico: por uma história dos povos

17Em um sentido lato, o revisionismo historiográfico, como interpretação contraditória às explicações justificadoras do Império e da Argentina mitrista, é contemporâneo à própria guerra, expressando-se sobretudo através de intelectuais argentinos, que denunciaram o confronto como agressão do Império e do Unitarismo liberal portenho contra os direitos provinciais argentinos e a autonomia uruguaia e paraguaia. [14] Fora exceções, essa narrativa dissidente pouca repercussão teve no Brasil. [15]
  • 14 Cf. por exemplo: Alberdi, Juan Bautista [1810-1884]. Las disensiones de las Republicas del Plata Y (...)
  • 15 Cf. Andrada e Silva, Raul de. Ensaio sobre a ditadura do Paraguai: 1814-1840. São Paulo: Coleção M (...)
  • 16 Cf. entre outros: Historia de la guerra de la Triple Alianza (1912); Páginas de historia (1916); N (...)
18Apoiado também nessa leitura do conflito, o revisionismo sobre a Grande Guerra tomou igualmente pé no Paraguai. A reorganização liberal do país sob ocupação militar do Brasil promoveu a extensão-adaptação das interpretações imperiais pelas primeiras narrativas paraguaias, com ênfase na responsabilidade pelo conflito de Solano López. Desde início do século passado, revisionismo histórico, impulsionado inicialmente sobretudo por Juan E. O´ Leary, empreendeu resgate daqueles sucessos desde ótica nacional paraguaia, que destacou o heroísmo do soldado guarani e de López. [16]
  • 17 Doratioto, Francisco. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia d (...)
  • 18 Cf. sobre a vertente lopista, hoje, ver: VIDAL, Mário. Alianza para la muerte. Argentina: Córdoba (...)
19O lopismo alcançou enorme repercussão, ao interpretar contradições sobretudo dos segmentos populares com as narrativas oficiais dos vencedores e das classes liberais. É violência analítica apresentar esse movimento como mero produto de mega-operação imobiliária de herdeiros Solano López, ou deslegitimá-lo devido à sua utilização política pelo Partido Colorado. [17] Essa produção revisionista foi praticamente desconhecida pela historiografia brasileira.[18]
20 Desde os anos 1950, no contexto de fenômenos mundiais essenciais – movimento de libertação nacional na Ásia e na África; revoluções argelina, vietnamita e cubana; fim da hegemonia stalinistas sobre o marxismo; jornadas mundiais de 1968, etc. –, novas leituras revisionistas procuraram superar as narrativas patrióticas, desvelando as causas essenciais partir da ótica das classes subalternizadas, na construção de uma história unitária dos povos americanos.
  • 19 Cf. Rivera, Enrique. José Hernández y la Guerra del Paraguay. Buenos Aires: Colihue, 2007. 96 pp.; (...)
21Nesses anos, destaca-se sobretudo o revisionismo historiográfico argentino sobre a Grande Guerra, como os ensaios de Enrique Rivera e de Milciades Peña, de corte marxista, e os artigos de inspiração revisionista, americanistas e antiimperialistas de José Maria Rosa.[19]Em geral, esses autores aprofundaram e radicalizaram as interpretações federalistas.

Ausências Importantes

22Essa produção passou também quase totalmente despercebida no Brasil, devido aos frágeis laços culturais entre as duas nações e ao Golpe Militar de 1964, que desorganizou a intelectualidade progressista brasileira e tornou aquele confronto tema praticamente tabu.
  • 20 Thompson, Jorge. A guerra do Paraguai: com uma resenha histórica do paiz e seus habitantes. Trad. (...)
  • 21 Cf. Thompson, George. La guerra del Paraguay: acompañada de un bosquejo histórico del país y con n (...)
  • 22 Cf. Madureira, Cel. Antônio de Sena [1841-1889] Guerra do Paraguai: resposta ao sr. Jorge Thompson (...)
  • 23 Cf. Thompson, George. Guerra do Paraguai: com um esboço histórico do país e do povo paraguaio e no (...)
23O livro do engenheiro britânico George Thompson, que servira no exército paraguaio, foi traduzido ao português, no ano de sua edição, com escassa circulação.[20] A obra seria conhecida no Brasil sobretudo através das edições argentinas[21], que valeram patriótica resposta do coronel Antônio de Sena Madureira. [22] Em 1968, a obra foi novamente apresentada em português. Escrito em Londres, em 1869, no final da guerra, apesar da interessante informação que oferece, o livro é prejudicado pelo esforço do autor em aderir às teses dos vitoriosos e dissociar-se do seu ex-protetor. [23]
  • 24 Cancogni, Manlio e Boris, Ivan. Solano López: O Napoleão do Prata. Rio de Janeiro: Civilização Bra (...)
24O livro Il Napoleone del Plata, do jornalista Manlio Cancogni e do historiador Ivan Boris, publicado, em 1970, na Itália, e traduzido, em 1975, pela Civilização Brasileira, primeiro estudo revisionista de larga divulgação no Brasil, integrou à explicação do confronto o estudo da história do Paraguai, destacando a orientação autárquica e anti-oligárquica do dr. Francia para assegurar a independência paraguaia questionada pela oligarquia comercial de Buenos Aires, política que teria favorecido o campesinato de origem guarani.[24]
25Uma orientação autonomista inicial em processo de superação tendencial no longo governo de Carlos Antonio López, que abriu relativamente o país ao exterior e ao capital mercantil, sem romper os laços sociais com o campesinato, política seguida no geral por seu primogênito.
26O estudo potencializa o desenvolvimento conhecido pelo Paraguai, a partir da propriedade pública de grande parte das terras do país, arrendadas aos camponeses, e do monopólio do comercio exterior, que ensejou a modernização relativa da nação, apesar da sua relativa pobreza. Apresenta leitura inovadora ao público brasileiro: narrativa cronológica dos combates desde ótica simpática aos paraguaios; sugestão do país como Estado-nação em consolidação, de sólidas raízes guarani-camponesas; esboço de análise desde as estruturas sociais paraguaias; uma mais equilibrada apresentação de Solano López, etc.
27A publicação italiana teve limitada repercussão no Brasil. Na orelha do livro, o editor Enio Silveira apresentou arbitrariamente Solano López como “condutor de povos, chefe militar de grande brilho e coragem incomum”, “patriota paraguaio”, “político em busca de efetiva independência nacional e contrário às oligarquias postas a serviço do imperialismo britânico então dominante”.

Revisionismo no Brasil

28Em 1968, León Pomer lançara na ArgentinaLa guerra del Paraguay: gran negócio!, publicado no Brasil sob o título A Guerra do Paraguai: a grande tragédia rioplatense, em 1979. O livro se despreocupava dos confrontos bélicos, empreendendo ampla análise das razões políticas, diplomáticas e econômicas da Guerra, destacando as contradições entre o caráter autárquico e autônomo do Paraguai e as necessidades de penetração do imperialismo no Plata, através das ações dos governos da Argentina e do Império do Brasil. A Inglaterra seria a “grande beneficiária da guerra”.[25] O livro conheceria segunda edição e o autor publicaria um outro breve ensaio sobre o tema. [26]
  • 25 Cf. Pomer, León. A Guerra do Paraguai: a grande tragédia rioplatense. 2 ed. São Paulo: Global, 198 (...)
  • 26 Pomer, León. Paraguai: nossa guerra contra esse soldado. 2 ed. São Paulo: Global, 1982. (...)
  • 27 Andrada e Silva, Raul de. Ensaio sobre a ditadura do Paraguai: 1814-1840. São Paulo: Coleção Museu (...)
29Em 1978, o historiador e professor aposentado de história da América da USP Raul de Andrada e Silva, publicou sua tese de doutoramento – Ensaio sobre a ditadura do Paraguai [1814-1840]. [27] Apoiado em muito rica bibliografia platina e paraguaia, sobretudo editada, apresenta complexa análise do processo que ensejou a gênese e consolidação da ditadura autárquica e estatal-monopolista do dr. Francia, como expressão de movimento autonomista paraguaio espanhol e o colonialismo portenho, apoiado nos pequenos criadores, plantadores e no largo e amplo campesinato de origem guarani, interpretados pelo regime francista.
30O fato de que esse trabalho sobre a fundação do Paraguai independente, que determinou tão profundamente os regimes de Carlos Antonio e Francisco Solano López e a própria guerra, de singular equilíbrio, erudição e densidade, foi desconhecido por praticamente todos os trabalhos brasileiros posteriores.
  • 28 Cf. informação por e-mail de J.J. Chiavenatto, em 7 de outubro de 2008. (...)
31Em março de 1979, com Genocídio americano: a Guerra do Paraguai, o jornalista Júlio José Chiavenatto, retomando algumas das teses revisionistas, superava as apresentações factuais nacional-patrióticas com ampla discussão das razões do confronto, apresentado como agressão do Império contra a nação e o povo paraguaio, em vez de produto da vontade de líder desvairado. Lançado dias após a posse do último general-ditador, o estudo conheceu enorme consagração. O livro teve 39 edições; tradução ao espanhol; edições piratas no México e no Paraguai [em guarani]. [28]
32O livro tornou-se referência da historiografia brasileira, pautando os futuros estudos e debates sobre a Guerra. A redação para o grande público, sem notas de roda-pé, em linguagem jornalística erudita, facilitou o enorme acolhimento, determinado sobretudo pelo momento da publicação, que condicionou a própria feitura do trabalho.As seqüelas da crise mundial de meados de 1970 embalavam a retomada das mobilizações sindicais e democráticas, trincando a hegemonia construída pela ditadura
33Chiavenatto desconstruía a grande narrativa militar-patriótica da história do Brasil, em 1979, ano em que a retomada das lutas sindicais alcançou o apogeu, colocando o mundo do trabalho como referência por mais de uma década no país. A nova realidade político-social exigia representações do passado interpretando as necessidades dos trabalhadores e criava condições para a sua recepção.

Produção e recepção

34Não dispomos de análises das fontes, produção, recepção, epistemologia, etc. de Genocídio americano, que o autor apresentou como “reportagem, escrita com paixão” e não como obra historiográfica, produto de historiador de profissão. [29] Quase constrange assinalar a deslegitimação e liquidação a que o estudo foi objeto, a partir de crítica sumária das suas insuficiências, no contexto da ignorância do sentido de obra quase parida por necessidade histórica que transformou o jornalista em historiador autodidata . Os críticos extremados jamais se perguntaram por que a historiografia acadêmica não pariu leitura semelhante; por que do enorme silêncio que se fez sobre um trabalho como o de Raul de Andrada e Silva; sobre as razões da necessidade de quase 25 anos para a produção de questionamento essencial daquele ensaio.
  • 29 Chiavenatto, Júlio José. Genocídio americano: a guerra do Paraguai. 21 ed. São Paulo: Brasiliense (...)
  • 30 Ibidem, p. 67
35Ter nascido fora de Academia então emasculada pelas derrotas sociais de 1964 e 1969-1970 e por quinze anos de ditadura ajuda a compreender as grandes qualidades e as enormes limitações dessa obra, produzidas as últimas sobretudo pela absolutização-simplificação de tendências que se materializam através de complexas mediações e pela ênfase desmedida de fenômenos e processos históricos objetivos. A mais célebre expressão da primeira tendência é a defesa da guerra como resultado direto das necessidades do imperialismo, em oposição à interpretação marxista argentina, dos anos 1950, como assinalado. Essa tese transformava os governos do Império do Brasil e da Argentina liberal mitrista em meras marionetes inglesas. [30]
  • 31 Burton, Richard F. Cartas dos campos de Batalha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exérci (...)
  • 32 Cf. Bertonha, João Fábio & Moscateli, Renato. “Imperialismo ou realpolitik? Uma análise da produçã (...)
36A vontade das classes hegemônicas do Império e da oligarquia portenha, essencial no conflito, foi potenciada, ao confluir com o interesse inglês de imposição do liberalismo na região. Em Cartas dos campos de batalha do Paraguai, o diplomata britânico sir Richard F. Burton registrou a visão da grande potência da guerra: “Minhas simpatias vão para o Brasil, pelo menos enquanto sua ‘missão’ for desaferrolhar [...] o grande Mississipi do Sul.”[31] A crítica da radicalização de Chiavenatto da guerra como exigência dos interesses ingleses serviu para que o imperialismo e os interesses livre-cambistas fossem em forma ainda mais arbitrária absolvidos de toda responsabilidade no confronto.[32]
  • 33 Cf. Chiavenatto. Genocídio americano. Ob.cit. pp. 17, 21,
  • 34 Cf. Ibidem, pp. 118, 111.
37No livro, são recorrentes as radicalizações-absolutizações enfáticas, de fenômenos em geral objetivos e com referências documentais: autarquia inicial absoluta do Paraguai; país moderno, de população totalmente alfabetizada e avançada siderurgia, ferrovias, telégrafos, etc. [33] São comuns extrapolações de fenômenos: “arianização” do Brasil com o arrolamento de afro-descendêndentes; um branco para cada 45 soldados negros; soldados paraguaios sobretudo euro-descendentes [“cinco brancos para um mestiço ou negro”].[34]
  • 35 Cf. Ibidem, pp. 33, 48, 81
38É comum a utilização de categorias contemporâneas na descrição de fenômenos do passado – “nacionalismo”, “consciência nacional”, “parque industrial”, etc. –, para facilitar a compreensão e promover reflexão sobre a realidade da época da publicação do trabalho. Esses anacronismos reforçaram a tendência à extrapolação das realidades analisadas. [35] Tais pecadilhos não anulam as importantes superações sugeridas: razões materiais da guerra; importância da intervenção no Uruguai; discussão da formação social paraguaia; dificuldades estruturais do Império escravista de livrar guerra nacional; derrota objetiva dos povos; privatização das terras públicas paraguaias; satelitização do Paraguai; etc.
39Genocídio americano foi o primeiro trabalho historiográfico brasileiro a realizar crítica geral desde a ótica das populações envolvidas no confronto, desorganizando as representações hegemônicas. Por além dos lapsos e insuficiências, conformou o imaginário histórico brasileiro porque galvanizou a difusa memória popular do rosário de horrores que fora aquela guerra, semi-soterrada pelo discurso nacional-patriótico. A obra exigia superação [hegeliana], através de crítica sistemática, a ser realizada em grande parte como simples recuperação de produção existentes, processo que jamais ocorreu, devido sobretudo à dissolução das condições históricas que geraram o movimento revisionista.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog