François Dosse

Revistas Anteriores História Agora nº7 Entrevista Entrevista com François Dosse

Entrevista com François Dosse

PDFImprimirE-mail
Escrito por História Agora Seg, 19 de Março de 2007 17:27

Entrevista[1] com François Dosse - pesquisador do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP) e professor do IUFM de Créteil (Paris XII)
Apresentamos a nossos leitores uma exclusiva e inédita entrevista concedida pelo historiador francês François Dosse, pesquisador do Institut d’Histoire du Temps Présent (IHTP, Paris) e professor do IUFM de Créteil (Université Paris XII). O historiador, com inúmeros trabalhos publicados no Brasil[2], aborda diversos temas e problematiza questões de ordem teórico-metodológico, caros ao historiador do tempo presente.
Trata-se de um dialogo instigante, em longa conversa na cidade parisiense, que temos o prazer de compartilhá-la com os nossos leitores. Boa Leitura!
Revista História Agora - Acreditamos que a Historia do Tempo Presente ou Próxima e Imediata, é, antes de tudo, história. Infelizmente ainda hoje essa afirmação precisa ser reiterada na maioria dos trabalhos que versam sobre este assunto.
História Imediata e História do Tempo Presente são sinônimos? Como o professor define os dois casos? E Como desenvolver uma narrativa histórica sobre os acontecimentos do presente diante da profusão de informações e do imediatismo dos meios de comunicação atuais?
François Dosse - Antes de falarmos sobre a História do Tempo Presente, vamos falar sobre a História Imediata. Estou me referindo efetivamente à contribuição de Jean Lacouture, na Nova Enciclopédia da História de 1978. Ele escreve um longo texto sobre a pertinência da História Imediata, que efetivamente é o ponto de união do jornalismo e da história.
Lacouture, ele mesmo sendo um jornalista que se tornou historiador e biógrafo ao mesmo tempo, é a interseção dos dois casos. E, em 1978, isso se justificava ainda mais pelo fato dos historiadores, nessa época na França, terem tendência a privilegiar de maneira exclusiva o período medieval e moderno, e de se desinteressar, de se desviar, do tempo presente.
Realmente não existia interesse. Era muito pouco o que havia de história sobre o momento, a história imediata. Dito isto, pode-se dizer também que a história imediata não é muito aberta, uma vez que a nossa sociedade já definia a história como qualquer coisa que não fosse imediata, já que o historiador, por definição, é alguém que vê as coisas, escolhe os testemunhos, das pessoas que viram.
Por isso, a partir daí, não poderia haver História Imediata e História do Tempo Presente. Aliás, foi assim que Heródoto deixou de ser visto como um mitólogo, um geógrafo. Na medida em que ele utilizava as lendas, desacreditava também os grandes impérios, como o império egípcio. Império este, fundado sobre o escriba, mas que para Heródoto não era história, era exclusivamente a instrumentalização política.
Podemos enumerar também uma série de diferenças – a História Imediata sendo simples, temente, fechada numa imediatez, enquanto a História do Tempo Presente, sendo já, por definição, estendida a um período maior.
Então trata-se de saber qual é esta extensão, e é aí que estão as discussões sobre como o Tempo Presente aparece. Alguns dizem que a História do Tempo Presente se dá a partir da última catástrofe datada. Esta é uma maneira de definir o Tempo Presente.
Outros dizem que a História do Tempo Presente é entendida enquanto ainda existam pessoas vivas para transmitir sua experiência. Isso porque a História do Tempo Presente seria escala de uma vida biológica, e com a expectativa de vida que aumenta, é uma temporalidade um tanto maior que a História Imediata.
E depois, há ainda uma maneira de definir a História do Tempo Presente que se desenvolveu na França, notadamente com o primeiro IHTP, que foi constituído por François Bédarida, depois por Robert Frank, em seguida por Henry Rousso, que é uma maneira de pensar a história a partir das interpelações do presente. E aí se falaria de uma história que não seria somente contemporânea, mas que interrogaria aquilo que em nosso espaço de experiência, para retomar um conceito de Koselleck, trabalha o presente.
então, teríamos uma coisa que poderia ser justamente tudo, salvo o presente. Porque se pode notar que, na conjuntura atual, há uma crise de horizonte - de espera - e do futuro, que foi conceitualizada pelos trabalhos de François Hartog, principalmente, autor da noção de “regimes de historicidade” (régimes d’historicité), no qual ele atribui ao presente um valor como todo historiador de hoje.
Sabemos muito bem que a história é um momento, de um lugar, e, de um presente. De um presente, de um historiador e da historiografia. Mas, ao mesmo tempo, estaríamos em um novo “regime de historicidade”, que seria caracterizado pela retomada do presente. Um presente estático, cortado de um futuro que não existe mais. Extrato de um passado, mas que seria “presentificado” de uma maneira totalmente anacrônica. E aí, há efetivamente um obstáculo, um perigo, ao qual François Hartog se refere, que é o perigo do presentismo.
Mas o que eu diria é que o presentismo é efetivamente um impasse, mas ao mesmo tempo é uma “sorte” extraordinária da História do Tempo Presente. Quer dizer, fazer da própria experiência, daquilo que é justamente o ato mesmo de escrever a história, em seu caráter indefinido, não determinado, com suas possíveis diferenças, etc. E eu digo que, por isso, a história do Tempo Presente esguichou sobre as hipóteses de uma outra maneira de escrever a história, uma outra problemática histórica, justamente graças às aquisições desta indeterminação que vivemos no presente, que desfocaliza o olhar que temos sobre o passado.
RHA - Qual seria então o marco do Tempo Presente, é possível fazer essa delimitação ou recorte cronológico? Essa certamente é uma questão complicada, alguns historiadores acreditam que o marco estaria em objetos que ainda estão em aberto, indefinidos, o que nos remete a uma longuíssima duração. O próprio IHTP de início marcava o fim da Segunda Guerra como início para os estudos em HTP, como o professor vê essa questão?
F.D. - Sim, para mim é isto, quer dizer, é difícil colocar os limites cronológicos sobre a história do Tempo Presente. Porque se eu digo que a Guerra da Argélia já é um fenômeno bastante antigo, ainda assim ela faz parte da História do Tempo Presente, evidentemente. Ainda nesse sentido, ao mesmo tempo eu falo de maio de 1968 e do 40º aniversário de maio de 1968, que também fazem parte da História do Tempo Presente, evidentemente.
Mas podemos ainda falar de Joana d’Arc, na medida em que ela é, ainda hoje, em certas correntes, não as mesmas do começo do século XX, ou do final do XIX, tomada como figura, com todos os traços principais, temáticos, de um certo número de valores, etc. Então, ela é primeiro operacionalizada pelo presente, bem diferente de como ela era. Por isso os limites cronológicos são impossíveis.
O que justamente permite esta abertura da História do Tempo Presente é hoje, do meu ponto de vista, a relação entre a história e a memória. Quer dizer que, efetivamente, há uma interrogação cada vez maior dos historiadores sobre sua evolução, sobre seus fenômenos que não são lineares, que são os fenômenos de todas as partes etc. E todos esses elementos são para serem levados em conta pelo historiador. Por isso, essa relação história-memória funda um curva, que hoje se diz que é uma curva historiográfica, e funda também a riqueza desta noção de Tempo Presente.
RHA - Serge Bernstein e Pierre Milza escreveram que, em termos de metodologia, a História do Presente ainda estava em construção. E que, de certa maneira, se trataria de situar um fenômeno de longa duração no seio do presente. Essa metodologia ainda está efetivamente em construção?
F.D. - Sim, enfim, eu penso que é sempre uma noção de obra pois, efetivamente não, existe ainda um consenso sobre a noção entre os historiadores. Como eu digo toda hora: última catástrofe datada, gerações, ou, ao contrário, tudo o que aflora no presente e no passado. Existem definições daquilo que poderia ser a História do Tempo Presente que não são as mesmas, pois existe ainda ambivalência, a incerteza sobre este objeto justamente do presente. Não existe a incerteza sobre a história imediata, mas exista a incerteza sobre o objeto.
Situar um fenômeno de longa duração no seio do Tempo Presente é, para mim, uma evidência. Isto é, a História do Tempo Presente, de todo modo, carrega os fenômenos de curta e de longa duração. E sobre a relação justamente entre acontecimento/memória do acontecimento/figura, biografa traços na memória coletiva, representações hoje desse passado.
De todo jeito, ela implica também, e este é um ponto importante, uma postura de domínio por parte do historiador. Isto quer dizer que o historiador não está mais numa posição divina, onde ele seria o mesmo que a expressão de uma verdade, daquele que é o suposto conhecedor da realidade, do saber. O historiador deve dizer que, a partir de seu “savoir-faire”, a partir de suas competências, a partir de seus arquivos, vai dar um ponto de vista, sem cair em um relativismo radical.
Questões, dúvidas, problemáticas, ou impasses que ele traduz para o seu presente, justamente de seu lugar de enunciação. E então há efetivamente uma postura que foi por muito tempo a do juiz da história, do historiador que julga, que dá, à maneira do juiz, um veredicto sobre o que se passou. O que é totalmente obsoleto, completamente ridículo, hoje temos muito mais modéstia na postura dos historiadores.
RHA - O estudo do presente teve sua cristalização, na França do final da década de 70, com a criação do IHTP, Instituto do qual o senhor inclusive faz parte. Entretanto, alguns historiadores bem antes da década de 70 já se arriscavam nesse movimento.
O historiador René Rémond, em um de seus trabalhos sobre o tema, alertava para a o risco da confusão entre o estudo do político com o estudo do imediato. Sobretudo pelo fato da criação do Instituto ter se dado em um momento de revalorização da (nova) História Política e que, muitas vezes, os professores que trabalhavam essas abordagens eram os mesmos, como o próprio Remond. Conte um pouco como se deu a criação do IHTP, quais eram as principais pesquisas, e comente esse alerta do professor Remond.
F.D. - É uma tensão absolutamente importante. Há uma figura que é muito emblemática desta tensão, do que é ao mesmo tempo engajamento histórico de um lado e, de outra parte, do engajamento como cidadão e como inquiridor da vontade, colando a serviço da sociedade sua competência de historiador.
É a figura de Pierre Vidal Naquet, que morreu há pouco tempo, que é para o tempo presente, uma figura exemplar. Ele era um historiador que renovou bastante o estudo da Grécia Clássica. Era um especialista em Atenas de um período extremamente recuado e, ao mesmo tempo, como cidadão, se opôs à Guerra da Argélia e ao uso da tortura.
A partir daí, ele se engajou fortemente, não somente escrevendo artigos contra o emprego da tortura, mas concretamente no Comitê Odin, que ele fundou. Foi militante na Argélia comunista, lutou pela independência do país com os argelinos e foi torturado até a morte.
Ele criou o Comitê fazendo valer sua acepção, sua função de historiador, com a pesquisa da verdade histórica, trazendo de volta a investigação e reconstituindo um inquérito. E podemos citar outros exemplos.
Eu penso também, evidentemente, naquele que fundou a Escola dos Annales, que é Marc Bloch. Ele se tornou uma grande figura tutelar justamente porque morreu como mártir. Morreu resistindo, torturado pela Gestapo na primavera de 1944.
Então, ele se engajou efetivamente, a partir de 1943, na resistência. Teve que pagar com a sua vida. Diz-se também que houve durante longo tempo na França uma desconfiança em relação à política e à instrumentalização política do saber nas ciências humanas.
E eu penso, entre outros, no pós 1ª Guerra Mundial e nos Annales. No começo, há um pouco essa tendência a colocar lado a lado a política e o engajamento político. Ao mesmo tempo em que eles eram engajados no processo de modernização da sociedade, eles eram levados a colocar suas contribuições à utilização de empresas, escritórios de trabalho internacional, instituições.
Quando se tratava de engajamentos políticos, eles se mantinham à parte pois, como dizia Lucien febvre, “uma história que serve é uma historia serva” (Une histoire qui sert est une histoire serve).
Visto que, de 1870 a 1914, a história estava terrivelmente instrumentalizada na França para reconquistar a Alsácia-Lorena, para a revanche contra os alemães, no momento seguinte, os historiadores ficaram verdadeiramente mobilizados, pode-se dizer, para fazer valer as teses francesas de 14 a 18, sob o plano histórico e sob o plano do conhecimento geográfico.
Depois, houve uma idéia de uma cidade sóbria, a parte da política, a parte do Estado, da política fora do Estado. E então Vidal Naquet exumou finalmente um modelo do qual ele reclamava, o modelo “dreyfusard explicitamente, do intelectual engajado, para a verdade, para a justiça, contra a razão do Estado, contra as injustiças etc.
Penso sobretudo na luta contra os “negacionistas” por exemplo, pois a necessidade do historiador de se engajar para fazer valer o saber, lá, por exemplo, da constatação, existiu. Os historiadores, em relação aos que negam, são forçadamente engajados para fazer valer seus saberes acerca desta questão. Os historiadores, agora, estão se engajando cada vez mais, em relação às leis memoriais, em relação a uma política de estado em matéria de memória, em matéria de dever de memória etc. Eles são, aliás, cada vez mais solicitados nos tribunais para dar seus testemunhos etc. Existe aí uma interrogação sobre até onde eles podem ir, o que eles podem dizer, sobre a esfera pública.
Em relação à genealogia do IHTP, é bastante simples. De fato, no início se tratava do Comitê de História da 2ª Guerra Mundial. Então, o trabalho do Comitê foi recuperar os arquivos, os documentos, os testemunhos, para fazer a história do que se passou entre 1940 e 1945. Então, ao mesmo tempo, a resistência, a colaboração, Vichy, a França livre, a França do interior e do exterior, etc.
Tudo isso foi feito e, então, é o Comitê de História da 2ª Guerra Mundial, criado no momento imediato do pós-guerra, que se transformou, em 1978, no IHTP. Em muitos países europeus, houve este gênero de instituição, com mais acesso à história contemporânea, que se estendia da 2ª Guerra até o fim dos anos 70, onde houve outros acontecimentos como 1968, o fim das figuras coloniais, etc. A configuração não era mais aquela do imediato pós-guerra.
Mas é certo que esta genealogia histórica pesou sobre a identidade do IHTP. Os trabalhos, eu diria, pesam ainda sobre os objetos privilegiados do IHTP. Porque não é por acaso, aliás, que durante muito tempo seu diretor tenha sido Henry Rousso, um especialista de Vichy. Ele é uma ótima tradução do que, fundamentalmente, o IHTP trouxe como consequência nessa filiação.
Filiação com os deslocamentos, já que Rousso fez a história de Vichy, fez a história da representação de Vichy, fez a história da representação depois de Vichy. Então, é bem sintomática a valorização deste objeto. Posteriormente, é mais ou menos isto que foi desenvolvido, por uma série de trabalhos do IHTP, como a Guerra.
E hoje, existem várias pesquisas que estão se desenvolvendo no IHTP, mas o que domina, ainda assim, são as questões de violência e de guerra, o que não é surpreendente. Não é somente o acesso à 2ª Guerra Mundial, evidentemente, é uma interrogação sobre a guerra em si, da violência em si na guerra. Isso pode ser sobre 14-18, pode ser sobre os conflitos mais recentes, mas a guerra e a violência são os elementos privilegiados na pesquisa do IHTP.
Tenho impressão que esta História do Tempo Presente é muito ligada aos deveres de memória e aos traumas da sociedade. Sim, é isso. Efetivamente, o lado traumático, o lado de curador, aquele que cura, do historiador. É verdade que se pode ver assim, quer dizer, podemos ver efetivamente o trabalho do historiador como alguém que acalma, de uma certa maneira, os sofrimentos e os traumas do passado, por um trabalho sobre a narrativa, sobre o relato. E como consegue efetivamente colocar em palavras, colocar em relatos, qualquer coisa que é da ordem de um traumatismo extremamente importante.
Eu creio que uma das funções dos historiadores é fazer ressurgir para apaziguar. Isso reúne, efetivamente, toda a temática do trabalho de luto de Freud. Trata-se de integrá-lo, de ultrapassá-lo, para se abrir o novo possível, neste trabalho de luto que não tem nada nem de mórbido, nem de complacente, etc. E que reúne também a função que Michel de Certeau designou à história, quer dizer essa reação aos mortos, a construção de um túmulo para os mortos.
Ele usou esta metáfora, o túmulo sendo uma espécie de figura, um tipo particular de criatividade, é também uma caixa para a morte. E o historiador é um pouco como um coveiro que ajuda a enterrar os mortos. E, de uma certa maneira, não no sentido mórbido, mas sim pra designar aos mortos um lugar, para que a morte não persiga os vivos, não seja hipotecada por traumas do passado.
Eu, ao contrário de Michelet, durante toda vida de historiador, acreditava num diálogo com esses mortos do passado. A história é um conhecimento que é mediado. Existem mediações que fazem com que historiador não esteja numa relação direta com o passado, com os mortos de seu passado. Ele está sempre com seus arquivos, seus documentos, que são os mediadores que permitem reconstituir aquilo que ele não conhecerá jamais, que ele nunca terá um contato direto.
RHA - No Brasil, diferentemente da França, os historiadores e cientistas sociais se encontram longe da vida pública do país. Há um grande descolamento entre academia e sociedade. O professor Ciro Flamarion, da UFF, cunhou a expressão Historiador Avestruz, aquele que enterra a cabeça no chão e prefere não ver o mundo a sua volta, se recusa a falar sobre outra coisa que não seu micro objeto de estudo e não parece preocupado com as questões públicas.
Em seu livro História em Migalhas o senhor retoma a importância de se discutir o papel do historiador como Intelectual público.
Comente um pouco essa relação entre Intelectual Público e História do Tempo Presente. Quais seriam, portanto, os limites da análise histórica para que o historiador não vire uma espécie de "historiador taumaturgo", segundo os termos de Henry Rousso, capaz de curar crises de identidade ou de legitimidade, individuais, sociais ou nacionais?
F.D. - Eu acredito que eles devem efetivamente responder a uma demanda social, pois é necessário esclarecer as coisas. E eu mesmo, aliás, fui solicitado, no fim do mês, para ser ouvido na Assembléia Nacional. Então, efetivamente, os historiadores são cada vez mais e mais solicitados, demanda-se suas opiniões.
Frente a esta comissão, passaram, por exemplo, Pierre Nora, Marc Ferro, etc. Eu creio que, a partir deste momento, as questões memoriais e históricas, as representações das consciências coletivas que tocam nas questões de identidade nacional, tornaram-se centrais para o plano judiciário.
Os historiadores são cada vez mais solicitados. Eles devem intervir com precaução, tentando se desprender dos filões das noções que utiliza, e, assim, através seus conhecimentos específicos, esclarecer os que decidem, pois não são eles os políticos. Mas, sabendo que a história não pertence aos historiadores, pois, em última instância, a história pertence aos cidadãos e à sociedade. Portanto, eles possuem uma certa “competência limitada” para dizer uma série de coisas ao mesmo tempo, preservando a autonomia de suas pesquisas. Isto quer dizer que suas pesquisas podem estar efetivamente em conexão com as demandas, com as necessidades daqui e de acolá, mas eles devem evidentemente preservar sua plena liberdade.
É, neste sentido, por exemplo, que eu, ou Nora, ou as pessoas de “liberdade para a história”, somos contra as leis memoriais, porque isto é algo que bloqueia, que fecha. A história, por definição, é aberta para as novas questões, para as coisas novas, para as novas configurações.
Então, é preciso dizer que existe efetivamente um trabalho de memória, mas que a idéia do dever de memória, de lhe dar uma forma jurídica, é extremamente perigosa. Isso porque, em última instancia, há a liberdade do historiador, liberdade esta que é também uma liberdade limitada, pois a história pertence a seus atores e não às pessoas diplomadas em história.
RHA - Com qual pesquisa o professor está trabalhando atualmente?
F.D. - No Instituto, realizei com meus amigos Christian Lacroix e Patrick Garcia, já há alguns anos, um seminário sobre as figuras de epistemologia histórica. Interrogamos as noções e figuras importantes, que marcaram. Por exemplo, o trabalho que fizemos sobre Michel de Certeau, foi produzido pelo nosso seminário no IHTP. Também tenho um outro trabalho pessoal onde a biografia intelectual de Michel de Certeau apareceu.
Da mesma forma, consagramos um ano de seminário após a morte de Paul Ricoeur sobre “Ricouer e as ciências humanas”, que se tornou um livro co-dirigido por Christian Lacroix, Patrick Garcia e eu. Isso se liga à pergunta que você colocou sobre o Tempo Presente. Fazemos vir especialistas de outros períodos, os da Antiguidade, os Modernistas, os de agora... Assim, colocamos em confronto a história do Tempo Presente em relação aos outros períodos, justamente para ver se existe uma especificidade da História do Tempo Presente em relação ao historiador medieval, da antiguidade, etc. Será que o presente de sua época coloca mais problemas que o presente dos historiadores da contemporaneidade, hoje?
Meu trabalho pessoal, é sempre no plano das interrogações epistemológicas. Estou nesse momento preparando um livro sobre o acontecimento, sobre a própria noção de acontecimento.
Estamos preparando um dicionário, Christian Lacroix, Patrick Garcia e eu, sobre as noções historiográficas e as controvérsias historiográficas, que aparecerá no início do próximo ano. E depois, temos também uma outra produção que estamos preparando sobre estes seminários.
Vamos publicar também em 2009 um livro que vai se chamar “Historicidades”, com textos inéditos de Ricoeur e de Kosselleck, mas que reserva também uma interrogação pluridisciplinar, com intervenções extremamente interessantes de psicanalistas, antropólogos, sociólogos, sobre a noção de historicidade em suas disciplinas. Ao mesmo tempo, evidentemente, que na disciplina histórica.
RHA - Qual a memória que está virando história nesses 40 anos dos eventos de maio de 68, celebrados com entusiasmo pelos mais variados atores da sociedade francesa, ano passado?
F.D. - O que nos mostra o 40º aniversário de Maio de 68 é que nos lembramos dele de maneira efusiva. Isto quer dizer que não há uma memória de 68, existem memórias 68. E o que é interessante de ver e, aliás, eu me remeto especificamente no pensamento anti-68, é que existem as genealogias de um pensamento que é o oposto.
Retomando Michel de Certeau, pode-se dizer que “um acontecimento é aquilo que ele se torna”. Então, não podemos afirmar, contrariamente ao que se diz bastante neste 40º aniversário, que passamos da memória à historia. Hoje, 40 anos depois, vemos trabalhos de historiadores que se desenvolvem, não apenas trabalhos memoriáveis, mas há um trabalho sobre arquivo bem mais crítico.
Mas, eu não faço este corte entre um momento memorial e um histórico, no qual o objeto passaria à história de acordo com a distância temporal do acontecimento. Eu diria que a história de hoje só pode ser pensada no momento historiográfico de onde se fala. É preciso fazer uma articulação entre a história e a memória, pois não existe história sem memória.
Então, todos os trabalhos sobre 68 são trabalhos de memória individual, que falam das relações com o país. Todos esses trabalhos participam da construção do sentido do acontecimento, os prós e os contras. Esse sentido é ambivalente, ele não cessa de mudar, ele se transforma.
Mas, o que demonstram todos esses trabalhos é que este é um acontecimento rico, uma mina de sentido particularmente fecundo. Do contrário, não se falaria tanto e não haveria tantos escritos sobre este período.
Portanto, o trabalho de memória participa deste trabalho de história. Há, então, várias histórias possíveis.
<>

<NOTAS>
[1]Realizada pela historiadora Ana Carolina Fiuza F. na Ecole de Haute Etudes, Paris, França. Tradução: Célia Torres. Revisão Técnica: Pedro Henrique C. Torres
[2] Entre os quais História do Estruturalismo (Edusc, 2007), A História (Edusc, 2003), História a prova do tempo (Unesp, 2001), A História em Migalhas (Edusc, 2003).
Última atualização em Ter, 18 de Agosto de 2009 18:01

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog