Artigos de história V

ESTUDIOS HISTORICOS
– CDHRP- Agosto 2009 - Nº 2 – ISSN: 1688 – 5317 1

A Guerra Contra o Paraguai:

História e Historiografia: Da instauração à restauração historiográfica [1871-2002]

Mário Maestri
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1 Doutor em História pela UCL, Bélgica, Professor do PPGH da UPF, RS.

Resumo: Este artigo discute a gênese da historiografia brasileira sobre a guerra do Paraguai em três momentos: primeiro, a instauração inicial de historiografia nacional-patriótica, inicialmente escrita sobretudo por oficiais brasileiros que participaram do conflito. Segundo, revisão da historiografia liberal-patriótica sobre a guerra, no Paraguai, Argentina e, finalmente, Brasil, com destaque para o trabalho de J.J. Chiavenatto. Terceiro, no contexto da maré neoliberal dos anos 1980, o processo de restauração das interpretações nacional-patrióticas brasileiras, apoiada sobretudo nos lapsos da obra de Chiavenatto.

Abstract: This paper deals with the origin of the Brazilian historiography on the Paraguay War. It is subdivided into three historical moments, beginning with the instauration of national-patriotic historiography, initially written especially by Brazilian officers who had taken part in the conflict. Secondly, it presents a revision of the liberal-patriotic historiography on the war, in Paraguay, Argentina and, finally, Brazil, with a particular attention to J.J Chiavenatto work. Finally, it expounds, in the context of the neo-liberalism movement of the 1980's, the process of restoration of the Brazilian national-patriotic interpretations, based most of all on a critique of Chiavenatto's book lapses.

1. Paraguai; 2. Brasil; 3. Argentina; 4. Uruguai; 5. Guerra do Paraguai

1. Paraguay; 2. Brazil; 3. Argentine; 4. Uruguay 5. Wor of Paraguay

I. A instauração historiográfica: a historiografia de trincheira

A guerra contra o Paraguai foi acontecimento central da história do Brasil da segunda metade do século 19. Em sentido lato, as ações militares iniciaram-se em 16 de outubro de 1864, com a intervenção do Império no Uruguai contra o autonomismo blanco, exigida pelos criadores rio-grandenses instalados no norte daquele país e pela política imperial no Prata, e concluíram-se, em 1º de março de 1870, com a morte de Solano López, com o Paraguai sob ocupação militar.

Dos 150 mil brasileiros que teriam participado no confronto, talvez até cinqüenta teriam morrido. Uns 0,5% dos dez milhões de habitantes do Brasil em 1872. Os gastos com o esforço militar comprometeram por mais de uma década as finanças do Brasil, ainda que o país recebeu indenização até a II Guerra Mundial, conquistou importantes territórios ao Paraguai e estabeleceu relação hegemônica sobre o país. Com talvez quatrocentos mil ESTUDIOS HISTORICOS – CDHRP- Agosto 2009 - Nº 2 – ISSN: 1688 – 5317 2

habitantes, o Paraguai teve a população sobretudo masculina dizimada. O país foi ocupado, amargou perdas territoriais, arcou com indenizações de guerra, teve terras públicas privatizadas, foi obrigado a endividar-se, teve seu amplo campesinato destruído.

A guerra mostrou o anacronismo do Brasil escravista para enfrentar esforço militar moderno. Durante o confronto, a luta abolicionista, o grande movimento
nacional em gestação, foi imobilizada, retardando possivelmente a abolição da escravatura de alguns anos.2 Os partidos liberal e conservador apoiaram luta rejeitada pelas classes populares e subalternizadas, sem que qualquer força institucional do país se opusesse a ela.3

2 Cf. Conrad, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília, INL, 1975.

3 Cf. Lemos, Renato. (Org.) Cartas da Guerra: Benjamin Constant na Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: IPHAN; Museu Casa de Benjamin Constant, 1999.

4 Cf. entre outros: DIAS, Satyro de Oliveira. Duque de Caxias e a Guerra do Paraguai. Salvador: Diários, 1870; Madureira, Cel. Antônio de Sena [1841-1889] Guerra do Paraguai: resposta ao sr. Jorge Thompson, autor da "Guerra del Paraguay" e aos anotadores argentinos D. Lewis e A. Estrada. Brasília: EdUNB, 1982.

5 Cf. Sousa, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Mauad/ADESA, 1996. p. 19-23.

6 Cf. Taunay, Alfredo d’ Escragnolle. [1843-1899] A retirada da Laguna: episodio da Guerra do Paraguay. Traduzida da 3 ed. francesa por B.T. Ramiz Galvão. Rio de Janeiro: Garnier, s.d. [La Retraite de Laguna: Épisode de la Guerre du Paraguay. Rio de Janeiro 1871]. P.XV.

As forças armadas imperiais conheceram salto qualitativo e quantitativo transitório [Exército e Marinha]. Até então, o exército participara apenas de combates internos e de operações intervencionistas no Prata. A guerra ensejou a gênese da idéia do Exército-oficialidade como encarnação da honra e dos destinos do país.

Historiografia de Trincheira

As primeiras obras brasileiras de cunho memorialista sobre a Guerra foram realizadas durante e imediatamente após o conflito.4 Trataram-se sobretudo de narrativas sobre o heroísmo e a abnegação das forças armadas do pais em defesa do Brasil e da "civilização", agredidos por "barbárie" corporificada pelo ditador paraguaio. Comumente produto de ex-combatentes, essa produção registrou uma leitura dos fatos desde a trincheira imperial brasileira.5

Destaca-se nessas obras a célebre Retirada da Laguna: episódio da Guerra do Paraguai, do jovem engenheiro-militar Alfredo de Escragnolle-Taunay , publicada em 1871, em francês, "por ordem do governo brasileiro". 6 Seu sucesso de público transformou os fatos narrados em legenda paradigmática do confronto. Ela narra a expedição que, enviada do litoral, no início da guerra, para abrir segunda frente no norte do Paraguai, ESTUDIOS HISTORICOS – CDHRP- Agosto 2009 - Nº 2 – ISSN: 1688 – 5317 3 ESTUDIOS HISTORICOS – CDHRP- Agosto 2009 - Nº 2 – ISSN: 1688 – 5317 4

A proposta de identidade nacional republicana, elitista e autoritária, com as forças armadas como guardiãs dos interesses da nação, apoiou-se nas narrativas nacional-patrióticas sobre a guerra contra o Paraguai, fortalecendo-se a historiografia nacional-patriótica sobre aquele confronto. Os oficiais monárquicos maiores que intervieram no conflito foram elevados ao status de figuras luminares da nação republicana e das forças armadas. Foram sufocadas as duras críticas à condução militar do conflito, que jamais haviam conhecido real legitimação. 12

12 Cf. Lemos, Renato. (Org.) Cartas da Guerra: Benjamin Constant na Campanha do Paraguai. Ob.cit.; Rebouças, André. Diário da guerra do Paraguai (1866). São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiro, 1973.

13 Cf. entre outros: Cerqueira, Gal. Dionísio [Evangelista de Castro]. [1847-1910] Reminiscência da Campanha do Paraguai. [1865-1870]. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980. [1ª ed. 1910.]; Duarte, Paulo de Queiroz. Os Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1981. v.; Fragoso, Augusto Tasso. História da guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai [...]. Rio de Janeiro: Imprensa do Estado-Maior do Exército, 1934. 5 vol.

14 Cf. Sousa, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: ADESA, 1996. pp. 69-73.

A historiografia republicana consolidou a instauração da narrativa nacional-patriótica construída através da seleção-organização das apologias do Estado e das classes dominantes imperiais. Essa produção despreocupou-se com as razões e os cenários sociais e nacionais da Guerra, privilegiando a apresentação cronológica do confronto, definido como choque entre a civilização [o Império] e a barbárie [o Paraguai], promovido pela agressão de Solano López, apostrofado de "tirano", "ditador", "megalômano" etc. 13

Para corroborar a visão de embate querido pelo ditador paraguaio, essa historiografia consolidou como ponto zero do confronto o aprisionamento do vapor mercante brasileiro Marquês de Olinda, em novembro de 1864, em águas paraguaias, sem declaração de guerra. Em geral, pouco destaque foi dado à invasão pelo Império, um mês antes, do Uruguai, apoiado pela Argentina mitrista, fato anunciado anteriormente pelo governo paraguaio como casus belli, pois condicionava a saída ao mar do Paraguai à vontade do Império e da Argentina. Essa historiografia ignorou o fato de que o Império preparava-se para guerra, se possível com o apoio e a participação do unitarismo argentino, que sequer reconhecia a independência nacional paraguaia. 14

Historiografia paraguaia

A historiografia republicana brasileira propôs que a guerra fosse apenas contra Solano López, retomando a retórica do Tratado da Tríplice Aliança, que pactuou, no início do conflito, agressão à incolumidade nacional paraguaia através da apropriação de parcelas dos seus territórios; pesadas reparações de guerra; desarmamento do país; sua ocupação; ESTUDIOS HISTORICOS – CDHRP- Agosto 2009 - Nº 2 – ISSN: 1688 – 5317 5

internacionalização de sua navegação interna; etc. Lançou a responsabilidade pela dizimação da população sobre o ditador e sobre o próprio povo, por segui-lo naquela aventura. Essa literatura encerra-se tradicionalmente com a morte de López, olvidando a aplicação impiedosa das condições do Tratado, que apontavam para as razões estruturais do conflito e para o programa de refundação liberal e dependente do país.

Essa narrativa registrou comumente, quase perplexa, a resistência paraguaia, paradoxo que jamais superou, devido à impossibilidade de explicar o imenso esforço material e humano bélico e as enormes baixas do Império para vergar uma nação de menor importância. Realidade em geral apresentada como produto da preparação militar prévia e do fanatismo e desprezo pela vida paraguaios. A marcialidade paraguaia seguiu como enigma sem resolução para essa historiografia. Ela contribuiu para que a guerra não galvanizasse o imaginário popular brasileiro, que se manteve em geral infenso à retórica nacional-patriótica. A guerra continua sendo cultuada sobretudo pelo Estado brasileiro. Ultimamente, ensaia-se construção de legenda sobre a guerra da história regional e da participação popular no conflito.

As interpretações nacional-patrióticas de inspiração estatal prosseguiram plenamente hegemônicas até a década de 1970, sem questionamentos por parte da historiografia acadêmica ou extra-acadêmica, desde 1964 sob o peso-controle da ditadura militar brasileira.

II. O revisionismo historiográfico: por uma história dos povos

Em um sentido lato, o revisionismo historiográfico, como interpretação contraditória às explicações justificadoras do Império e da Argentina mitrista, é contemporâneo à própria guerra, expressando-se sobretudo através de intelectuais argentinos, que denunciaram o confronto como agressão do Império e do Unitarismo liberal portenho contra os direitos provinciais argentinos e a autonomia uruguaia e paraguaia.15 Fora exceções, essa narrativa dissidente pouca repercussão teve, no passado, e têm, no presento, no Brasil. 16

15 Cf. por exemplo: Alberdi, Juan Bautista [1810-1884]. Las disensiones de las Republicas del Plata Y Las Maquinacione delBrasil. Montevideo: Imprenta Tipografica a Vapor, 1865. 73 pp; Alberdi, Juan Bautista [1810-1884]. Los intereses argentinos en la guerra del Paraguay con el Brasil. Paris: Impresion Privada [1865]. 22 pp.

16 Cf. Andrada e Silva, Raul de. Ensaio sobre a ditadura do Paraguai: 1814-1840. São Paulo: Coleção Museu Paulista, 1978. 267 pp.[Tese de doutoramento, Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.]

Apoiado também nessa leitura do conflito, o revisionismo sobre a Grande Guerra tomou igualmente pé no Paraguai. A reorganização liberal do país sob ocupação militar do ESTUDIOS HISTORICOS – CDHRP- Agosto 2009 - Nº 2 – ISSN: 1688 – 53176

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