Artigos de história VI

Escola do Annales: a crítica ao Positivismo e ao Historicismo

por José D´Assumção Barros

O movimento dos Annales – ao lado do Materialismo Histórico e das contribuições da Hermenêutica Historicista – constitui certamente uma das influências mais impactantes e duradouras sobre a Historiografia Ocidental. O impacto dos Annales sobre a historiografia ocidental como um todo, e sobre a historiografia brasileira em particular, não deixa de ser produzido por uma parte efetiva de contribuições substanciais e extremamente inovadoras para a historiografia, e também por uma parte não menos significativa de “mito” construído pelos primeiros líderes do movimento em sua ascensão ao domínio do território institucional. Em função desta dupla característica – contribuição efetivamente inovadora e “mito da inovação”, algumas ambigüidades iniciais merecem ser pontuadas. Os Annales representaram a “Nova História” contra uma “Velha História”, tal como postularam os primeiros fundadores do movimento, e também os seus refundadores? Se representaram uma “Nova História”, foram eles os únicos setores da historiografia que puderam se auto-perceber como uma “Nova História”? E quanto aos setores estigmatizados pelos primeiros annalistas como uma “Velha História”, estavam todos mergulhados, na sua inteireza, em uma “velha história” totalmente retrógrada e inadaptada aos novos tempos? Estas perguntas podem ser colocadas provocativamente a respeitos dos Annales, e algumas delas se expressam em ambigüidades relacionadas à própria designação do movimento.

Frequentemente, quase como um sinônimo para o movimento dos Annales ou para o tipo de historiografia que este movimento pretende ter inaugurado, é empregada a expressão “Nova História” em seu sentido ampliado, o que inclui tanto a Escola dos Annales propriamente dita como a corrente à qual, a partir dos anos 1970, muitos se referem também como Nouvelle Histoire, mas agora em sentido mais restrito. Para dar um exemplo, o uso ampliado da expressão Nouvelle Histoire é encaminhado por José Carlos Reis no seu ensaio “O surgimento da Escola dos Annales e o seu programa”, incluído na coletânea de textos deste autor sobre A Escola dos Annales (2000). Por outro lado, uma vez que os mais recentes historiadores da Nouvelle Histoire muito habitualmente reivindicam uma herança historiográfica que remete às duas primeiras gerações dos Annales, não é raro o uso da expressão “Escola dos Annales” de modo a abarcar as diversas gerações de historiadores que tem como referência a Revista dos Annales, sendo este o uso que lhe empresta Peter Burke em seu ensaio de 1990 intitulado “A Escola dos Annales”.

Outra das ambigüidades relativas a este grande movimento historiográfico encabeçado pelos historiadores franceses também se expressa no fato de que autores diversos costumam lidar por vezes com periodizações distintas sobre o movimento. François Dosse estabelece uma ruptura em 1968 entre os Annales e o que seria chamado em sentido estrito de Nouvelle Histoire (1987). Iggers, na sua obra Novas Direções na Historiografia Européia (1971), prefere enfatizar uma ruptura que teria ocorrido em 1945, separando a “história tendencialmente qualitativa” dos primeiros tempos dos Annales e a “história conjuntural quantitativa” que passaria a predominar em seguida, particularmente no período sob a égide de Fernando Braudel.

É ainda bastante complexo e polêmico o estudo sobre as influências que os Annales teriam recebido de outros movimentos e correntes historiográficas, seja se considerarmos o estudo relativo à influência de autores diversos nos grandes fundadores dos Annales, seja se nos voltarmos para os estudos que se relacionam à identificação de correntes e aportes teóricos que teriam influenciado e permitido a constituição dos Annales como movimento bem estruturado e triunfante na historiografia francesa. Para dar um exemplo, o diálogo e o contraste dos Annales com o Materialismo Histórico têm suscitado reflexões diversas, havendo aquelas que buscam resgatar as influências do Marxismo para a visão histórica estruturante dos Annales – tal como Burguière em seu artigo Histoire et Structure – outros que procuram pontuar mais claramente as diferenças, e ainda os que buscam estabelecer uma relação mais complexa entre estes dois importantes campos de contribuições historiográficas, como é o caso do livro de Aguirre Rojas Os Annales e a Historiografia Francesa (2000).

De igual maneira, há uma tendência em se enfatizar as inovações dos Annales, particularmente por oposição a todo um paradigma historiográfico que já havia sido inaugurado pelo Iluminismo desde o século XVIII. Mas isto não exclui também aqueles que, como Gemelli em seu artigo de 1987 sobre Os Annales no Segundo Pós-Guerra – procuram enxergar a influência da racionalidade Iluminista como a grande vertente de influência nos Annales. Há mesmo os que – com vistas a criar um contraste em relação a algumas das correntes que surgem no ambiente da pós-modernidade – esmeram-se em mostrar que há um grande e único paradigma Iluminista, que inclui não apenas os Annales como também o Materialismo Histórico, dando a perceber que entre estas duas contribuições historiográficas haveria mais semelhanças que diferenças. Este é o caso, por exemplo, do ensaio de apresentação de Ciro Flamarion Cardoso ao livro Domínios da História, que procura dicotomizar a grande produção historiográfica ocidental em termos de dois grandes “paradigmas rivais” (1986).

Os Annales constituem um paradigma, como propõem Gemelli (1987) ou Stoianovitch (1976) em seus ensaios? Estão imersos no conjunto de variações e contribuições atinentes a um paradigma mais amplo, como propõe Ciro Flamarion Cardoso ao integrar a Escola dos Annales a um moderno paradigma iluminista? Existiria apenas um único paradigma dos Annales, ou mais de um, como propôs Jacques Revel em um artigo escrito em 1979 para a própria Revista dos Annales, com o título “Os paradigmas dos Annales”? Ou será que, ao invés de um “paradigma” ou conjunto integrado de paradigmas, os Annales constituem um Movimento ou Escola, tal como sugerem François Dosse e Peter Burke em perspectivas bem diferenciadas um do outro? Se é uma Escola, até que ponto existirão inovações suficientemente decisivas para que se possa atribuir aos Annales uma contribuição realmente transformadora para a Historiografia Ocidental, tal como propõe José Carlos Reis nas suas diversas análises sobre as radicais e inovadoras contribuições que emergem da instituição pelos Annales de um novo Tempo Histórico (REIS, 1994)? Por outro lado, se os Annales constituíram uma Escola ou um Movimento, quais os seus limites temporais: teriam se esgotado nas duas primeiras gerações, ou prosseguem pelas gerações posteriores de historiadores franceses que reivindicam a herança de Bloch, Febvre e Braudel?

Há ainda uma série de outras polêmicas que emergem deste fascinante movimento que apresenta como figuras de proa nomes como o de Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernando Braudel. Até que ponto existe uma ruptura entre a Escola dos Annales propriamente dita e a chamada Nouvelle Histoire que continua a se afirmar nas últimas décadas do século XX? Os historiadores ligados à Nouvelle Histoire são herdeiros dos Annales – tal como propõe Peter Burke em seu livro “A Escola dos Annales – a Revolução Francesa da Historiografia” (1989) – ou inversamente, tal como propõe François Dosse, há muito mais uma ruptura entre a Escola dos Annales e esta outra corrente, que também tem seu principal lugar de ação na célebre Revista dos Annales, e que a partir das últimas décadas do século XX tende a desenvolver o que foi por alguns chamado de “Uma História em Migalhas” (DOSSE, 1987)?

Estas perguntas, que não podem ser respondidas todas no espaço que teremos para esta síntese, permitem que vislumbremos a complexidade que envolve a temática das contribuições historiográficas proporcionadas pela escola dos Annales. Para além do importante diálogo bibliográfico que já existe em torno dos Annales, é fundamental considerar, antes de tudo, as fontes que revelam diretamente o pensamento historiográfico dos historiadores dos Annales. Emergem aqui obras já clássicas, como A Apologia da História, de Marc Bloch, os Combates pela História, de Febvre (1965), os ensaios de Fernando Braudel incluídos na obra A Escrita da História (1969), o ensaio Território do Historiador, de Ladurie (1973), o livro História, ciência social de Pierre Chaunu (1974), os ensaios reunidos por François Furet em 1982 sobre a rubrica A Oficina da História, ou ainda as grandes coletâneas coordenadas por historiadores da Nouvelle Histoire como Jacques Le Goff e Pierre Nora, entre os quais a coletânea Faire de l’Histoire (1974) ou a coletânea Nouvelle Histoire (1978).

Finalmente, a própria atuação de cada historiador ligado aos Annales no exercício da sua prática e elaboração de estudos históricos específicos deixa entrever, com bastante intensidade, as nuances de cada um. Obras como Os Reis Taumaturgos (1924), de Marc Bloch, o Rabelais de Lucien Febvre (1942), A crise da economia francesa no Antigo Regime de Labrousse, O Mediterrâneo, de Fernando Braudel (1966), ou Sevilha e o Atlântico, de Pierre Chaunu (1959), tornam-se aqui páginas privilegiadas para a identificação de um novo e complexo padrão historiográfico que iria deixar seus traços definitivos na história da historiografia.

Para se firmar como corrente historiográfica dominante na França, e estender posteriormente sua influência a outros países da Europa e também da América, os fundadores e consolidadores dos Annales precisaram estabelecer uma arguta e impiedosa crítica da historiografia de seu tempo – particularmente daquela historiografia que apodaram de “História Historizante” ou de “História Eventual” – buscando combater mais especialmente a Escola Metódica Francesa e certos setores mais conservadores do Historicismo. Os Annales, em busca de sua conquista territorial da História, precisavam enfrentar as tendências historiográficas então dominantes, mas também se afirmar contra uma força nova que começava a trazer métodos e aportes teóricos inovadores para o campo do conhecimento humano: as nascentes Ciências Sociais.

Esta será uma questão essencial para a reflexão que aqui desenvolvemos. Antes de adentrarmos a questão da interação com as ciências sociais, contudo, será preciso entender de modo mais complexo a propalada oposição ao Historicismo, tal como está formulado na questão nuclear deste artigo.

.Leia a continuação deste artigo em: http://ning.it/iGrINg
Referências: [BARROS,José D'Assunção. “A Escola dos Annales e a crítica ao Historicismo e ao Positivismo” in Territórios & Fronteiras – revista da Universidade Federal do Mato Grosso. Volume 3, n°1, mai/out 2010. p,75-102. ISSN: 1984-9036].

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