Duas revoltas e o mesmo propósito: o Rio de hoje e a Guerra do Vintém contra o aumento da passagem

Duas revoltas e o mesmo propósito: o Rio de hoje e a Guerra do Vintém contra o aumento da passagem

  • Historiadores debatem semelhanças de protestos atuais com o movimento deflagrado pelo aumento do bonde
Roberta Jansen (Email · Twitter)
 
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Transporte urbano: um bonde puxado por burros no Centro do Rio, em 1879
Foto: Arquivo
Transporte urbano: um bonde puxado por burros no Centro do Rio, em 1879 Arquivo
RIO. Em primeiro de janeiro de 1880, os cariocas inauguraram, por assim dizer, uma nova modalidade de protesto na cidade: a manifestação social. O motivo era bem claro, a cobrança de uma taxa de 20 réis (ou um vintém, a menor moeda que existia na época) sobre um dos principais meios de transporte urbano de então, o bonde puxado a burros. A despeito de reclamações nos dias anteriores, no primeiro dia da vigência do novo imposto, a maioria das empresas simplesmente o repassou para a passagem, atingindo em cheio o bolso dos menos favorecidos.
A revolta foi generalizada e rapidamente tomou as ruas do Centro em forma de protesto espontâneo, amalgamando outras insatisfações e ganhando o apoio de diversos setores, entre eles a classe média dos funcionários públicos e também a “tropa mais barra-pesada do Centro e da zona portuária”, nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho, da UFRJ. Inicialmente pacífica, segundo os jornais da época, a manifestação descambou para a violência diante da ação truculenta da polícia, munida com os longos e grossos cassetetes conhecidos como “bengalas de Petrópolis”.
Pelo menos três morreram
O povo atacou os policiais com paralelepípedos arrancados do calçamento, destruiu trilhos, espancou condutores, virou bondes, esfaqueou animais. A polícia respondeu com mais violência, abrindo fogo contra os manifestantes, e os protestos acabaram se estendendo até o dia 4. Houve saques, roubos e depredação do patrimônio público por várias ruas do Centro, resultando num saldo de pelo menos três mortos e vários feridos.
Tirando os burros, a semelhança com o movimento que ganhou as ruas há duas semanas é grande, segundo historiadores, e sua análise, dizem, pode colaborar para a compreensão do fenômeno atual — um dos maiores desafios para políticos, cientistas sociais e jornalistas, que se esforçam para entender, afinal, o que está acontecendo no país e por quê.
Para José Murilo de Carvalho, há semelhanças entre os dois movimentos, para além do valor do aumento, de 20 réis e de 20 centavos.
— Passagens, tanto em 1880 como hoje, pesam no bolso dos usuários. O ato de aumentar foi um bom gatilho então e é agora — afirma o historiador.
Segundo o historiador Marcos Breta, também da UFRJ, os transportes urbanos sempre foram um dos principais motivos de distúrbios populares no Rio de Janeiro.
— É um ponto muito sensível porque envolve praticamente todo mundo; é o sistema nervoso da cidade — diz. — E para quem tem um orçamento apertado, 20 réis ou 20 centavos pesam no bolso. É um erro achar que não.
O distanciamento partidário dos manifestantes é apontado por Sandra Graham, no artigo “O Motim do Vintém e a cultura política no Rio de Janeiro — 1880”, na Revista Brasileira de História, como uma marca dominante daquela revolta. Segundo ela, os protestos se converteram numa “fonte de poder até então nunca utilizada”, capaz de transformar a “violência da rua” em parte integrante da “equação política” e, assim, “arrastar a política das salas do Parlamento para as praças da cidade”.
Como apontam analistas hoje, se alguma certeza se pode ter é que as manifestações deixaram muito claro o distanciamento entre povo e governo.
De fato, o imposto de 1880 foi imediatamente revogado como resultado direto do movimento, bem como o aumento das passagens de ônibus na semana passada.
Os atos de vandalismo de parte dos manifestantes e a violência policial são outras semelhanças apontadas por José Murilo de Carvalho.
— Em 1880, houve quebra de bondes e destruição de trilhos. Finalmente, a violência foi agravada pelo ato insensato do comandantes da tropa do Exército destacada para conter os manifestantes — relembra. — No Largo de São Francisco, atingido por uma pedra atirada por um manifestante, ele deu ordem de fogo, da qual resultaram mortos e feridos.
Para Bretas, autor do livro “A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro”, a polícia hoje é mais bem preparada do que jamais foi, embora ainda haja um longo caminho a percorrer.
— Tradicionalmente, a polícia é muito mal preparada e também muito mal vista pela população. Ela sempre foi muito odiada — explica Bretas. — Oriunda de um mundo escravista, ela é vista como aquela que pode bater nas pessoas, que é violenta em relação ao trabalhador e aos que não têm recurso. Por sua vez, os policiais eram recrutados à força, eram mal preparados, mal pagos e também chicoteados por seus superiores.
Tradição escravocrata
José Murilo de Carvalho concorda.
— O grande inimigo das manifestações populares era já naquela época a polícia. Seguramente, nossas polícias continuam não sabendo lidar com essas manifestações — sustenta. — Desde a Primeira República, nossas polícias foram militarizadas, fato que se exacerbou durante a ditadura. Sua mentalidade e seu treinamento têm que ser reformados.
A ditadura militar, na análise de Bretas, capitalizou formas policiais já consagradas, mas que sempre existiram. Talvez, diz, não causassem tanto choque por seguirem uma tradição escravocrata e serem dirigidas a classes menos favorecidas.
— A gente só começou a estranhar na época da ditadura porque começaram a bater na classe média — opina o historiador. — O grande ganho do movimento pós-ditadura é a noção de que os direitos humanos são para todo mundo.


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