Proposta de Paz

Compaixão, sabedoria e coragem Para a humanidade viver em paz


Edição 537 - Publicado em 11/Maio/2013 - Página 20

Enviada às Nações Unidas (ONU) por ocasião do 38o aniversário da SGI, em 26 de janeiro de 2013
Descontração e alegria dos jovens da SGI durante o curso de aprimoramento realizado no Japão em setembro de 2012
Austregésilo de Athayde discursa sobre direitos humanos no Palais de Chaillot, Paris, França (12 out. 1948)
Johann Wolfgang von Goethe aos 79 anos (1828). Pintura do artista Joseph Karl Stieler
Gravura de Julius Nisle retrata a cena do pacto de Fausto com Mefistófeles (produzida por volta de 1840)
Em maio de 1972, o historiador britânico Arnold Toynbee e o presidente Ikeda iniciaram um diálogo sobre as perspectivas da humanidade no século 21 que está eternizado no livro Escolha a Vida
Quarta Conferência Internacional de Tóquio sobre Desenvolvimento Africano, que precedeu a Ticad V
Convidados apreciam a exposição sobre o Sutra de Lótus no Centro Cultural Dr. Daisaku Ikeda em São Paulo (abr. 2011)
Painéis de exposições realizadas durante a Conferência Rio+20 (jun. 2012)
Presidente Ikeda visita a Praça Memorial da Paz em Hiroshima (11 nov. 1975)
Encontro do presidente Ikeda com o premiê chinês Zhou Enlai, na China (dez. 1974)
Estudantes da BSGI se reúnem alegremente no Centro Cultural Campestre em São Paulo (abr. 2013)
Desejo abrir a minha Proposta deste ano, em que se comemora mais um aniversário da Soka Gakkai Internacional , com grandes esperanças, que contemplam 2030, de uma sociedade mundialmente unida pela paz e pela coexistência humana criadora.
Há sessenta e cinco anos foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos . E desde a sua fundação a Organização das Nações Unidas (ONU) vem deixando clara a importância de temas que devem orientar e promover a cooperação internacional, mediante esta e outras resoluções da Assembleia Geral e várias conferências mundiais. Distinguem-se, entre eles, o desenvolvimento sustentável (resposta aos desafios da pobreza, da degradação ambiental e da instabilidade econômica); a cultura de paz (ante aos desafios dos conflitos e da violência estrutural); e a segurança humana (tema de resolução adotada pela Assembleia Geral em setembro do ano passado).
Todos esses esforços definem as principais questões do nosso tempo, sobretudo as que exigem prioridade de ação.
Ilustração concreta está nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) , definidos pelas Nações Unidas em 2000. Quais? Reduzir à metade, até 2015, a proporção da população mundial que sofre dos grandes males que a atingem. O da pobreza extrema já se alcançou bem antes do prazo. O de cortar pela metade a proporção de pessoas sem acesso regular à água potável de melhor qualidade também já foi atingido. Está perto de se alcançar o de eliminar a diferença de gênero entre alunos na educação primária.
Por outro lado, mantido o atual ritmo de progresso, é duvidoso que certos objetivos possam ser alcançados até 2015. E, como é natural, mesmo que todos eles sejam atingidos, um número excessivo de pessoas continuará a enfrentar condições que ameaçam a vida e sua dignidade. Está clara a necessidade de mais esforços para acelerar as conquistas.
De qualquer forma, os objetivos atingidos mostram que é possível, sim, mudar o mundo, desde que as pessoas tenham uma percepção comum da gravidade desses problemas, definam prazos claros, aperfeiçoem e acelerem os planos de trabalho.
Depois da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20) em junho de 2012, os esforços se concentram na definição do conjunto de Metas de Desenvolvimento Sustentável (MDS), como extensão dos ODM e, em dezembro de 2012, criou-se um grupo de trabalho para levar adiante essa tarefa. O debate sobre esses objetivos servirá de oportunidade para reunir diversas opiniões e planificar o que ainda precisa ser alcançado, até 2030 (data-limite) na construção de uma sociedade global.

A procura de Fausto


Hoje, meu caro amigo, tudo é levado ao extremo. Tudo é perpetuamente transcendente, no pensar ou no fazer. Os moços cedo se entusiasmam e depois são levados pelo redemoinho do tempo. O que o mundo atual mais admira é a riqueza e rapidez. O que todos querem é enriquecer depressa.1
Podem parecer palavras de um intelectual contemporâneo. Mas são antigas. Quem faz a aguda crítica à nossa civilização é Johann Wolfgang von Goethe (1749—1832) .
Venho conversando ultimamente com o Dr. Manfred Osten, da Sociedade Goethe, em Weimar, Alemanha, sobre a vida e o pensamento do grande escritor, autor de Fausto , sua obra-prima.
O Dr. Osten se aprofunda na análise dessa obra, na qual o mestre alemão investiga a patologia da civilização: a loucura humana da incessante procura do manto mágico (o meio de transporte mais veloz), do ágil punhal (a arma mais ligeira), e do dinheiro rápido, tudo para satisfazer uma sucessão de desejos, mas que conduz ao inevitável declínio.2
Na opinião do Dr. Osten, esses três poderes, resposta de Mefistófeles ao pedido de Fausto, constituem as ferramentas da rapidez demoníaca.3 Seus nomes e suas formas diferem daqueles do século 21. Mas o conteúdo é o mesmo. Ele se pergunta se somos capazes de nos reconhecer como contemporâneos de Fausto. Creio que não podemos nos dar ao luxo de ignorar as semelhanças entre a nossa época e a que Goethe se refere. Sem a influência de nenhum Mefistófeles, criamos uma trágica situação na qual o que deveria ser valorizado é pisoteado, sem a necessária reflexão. A patologia que Goethe descreve é ainda mais grave em nosso tempo.
As armas nucleares comprovam: seu uso defende o país que as possui, ao risco e preço da extinção da humanidade. Vivemos numa sociedade em que a livre concorrência é glorificada, enquanto crescem as desigualdades e o descaso consciente dos deserdados. Acelera-se o ritmo da destruição ecológica que favorece enriquecimento econômico acima de tudo, enquanto a especulação dos produtos agrícolas provoca a crise mundial de alimentos.
Os ODM foram criados para reduzir o sofrimento ao máximo. Se não eliminarmos as doenças ocultas da civilização, qualquer avanço será efêmero, apagado por novos desafios. Esta verdade torna ainda mais importante a advertência de Goethe: “Serão inúteis medidas para chegar ao triunfo num único dia. Cada passo deve ser, ao mesmo tempo, avanço e objetivo”.4
Em outras palavras, nosso empenho para melhorar a qualidade da condição humana deve ir além de medidas paliativas. O principal é dar aos que lutam diante de terríveis ameaças a esperança e a força necessárias para viver com dignidade.
Este é o nosso maior desafio: transformar a história da destruição em construção, a do confronto em convivência, a da divisão em solidariedade.
Precisamos de energia espiritual que ilumine coisas que não podemos deixar de saber, conscientes de que tudo o que fizermos servirá de algum modo à construção de uma sociedade humana pacífica e de convivência criadora. Assim estaremos facilitando o surgimento de novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Creio que o respeito à dignidade da vida nos dará essa nova energia.

Ser capaz de se alegrar com a alegria ou sofrer com a dor dos outros


Imaginemos a sociedade mundial pacífica e de convivência criadora como um edifício. Os princípios da segurança e dos direitos humanos seriam as colunas fundamentais que o sustentam. O respeito pela dignidade da vida seria seu alicerce. Se a sua base for apenas de conceitos abstratos, a estrutura inteira se desequilibra e pode até desabar se atingida por uma crise mundial.
Para que o respeito à dignidade da vida seja o fundamento de um esforço contínuo é necessário que as pessoas do mundo inteiro sintam e vivam esse respeito de maneira palpável, em seu próprio modo cotidiano de ser e viver. Proponho três compromissos como guias de ação:

Ter a capacidade de se alegrar ou
de sofrer com os outros.
Crer nas infinitas possibilidades da vida.
Defender e celebrar a diversidade.
A propósito do primeiro compromisso, recordo o que ouvi do historiador Arnold J. Toynbee (1889—1975) , quando conversamos há cerca de quarenta anos sobre as perspectivas da humanidade no século 21. Pelo fim de nossa última conversa ele salientou: “A dignidade é uma coisa insubstituível”.5 É a natureza única e insubstituível de cada ser que dá peso e valor à dignidade da vida.
Ele advertiu: “Um ser humano pode perder a própria dignidade se não respeitar a de outras pessoas”.6 Condicionou a dignidade da vida à qualidade das relações entre as pessoas.
A pobreza é ameaça insistente à dignidade de muitas pessoas. Exige uma resposta da comunidade internacional.
Como acentuei, alguns objetivos dos ODM já foram alcançados. Como vários deles se referem a uma redução de número de pessoas que vivem na miséria, tudo indica que em 2015 ainda restará um bilhão de pessoas em situação de extrema pobreza e mais de 600 milhões sem acesso à água potável, a menos que se acelere o ritmo do trabalho.
Além disso, há desigualdades no ritmo da redução da pobreza. Na África subsaariana, por exemplo, a redução é inferior à de outras regiões, como o sul da Ásia ou da América Latina, que, por sua vez, ainda não reduziram à metade a quantidade de pessoas que vivem na miséria.
A Quinta Conferência Internacional de Tóquio sobre o Desenvolvimento Africano (Ticad V) realiza-se em Yokohama no Japão. Um de seus temas serão as sociedades inclusivas e resistentes. Espero que isso motive a solidariedade internacional para a criação de um “Século da África”, promovendo os valores da paz e coexistência da África para um mundo onde todos vivam dignamente.
A pobreza não é uma desgraça limitada a países em desenvolvimento. Sociedades prósperas também padecem de exclusão social e desigualdade econômica.
Os pesquisadores britânicos Richard Wilkinson e Kate Pickett, estudiosos dos efeitos da desigualdade social, observam que, agravadas pela privação econômica, a desigualdade tem efeito corrosivo sobre o relacionamento entre os indivíduos em toda a sociedade.
Em seu trabalho The Spirit Level: Why More Equal Societies Almost Always Do Better eles confirmam que as disparidades econômicas causam, sim, problemas sociais e de saúde. Mas acrescentam: quanto maior a desigualdade, menor a reciprocidade no relacionamento humano, menos as pessoas se ajudam umas às outras, cada uma quer é cuidar de si mesma, conseguir o que podem. É inevitável a perda da confiança.7 E acrescentam que “a desigualdade pode levar os países à decadência”.8 Não afeta somente os pobres, atinge pessoas de diferentes classes. Maiores diferenças, mais sofrimentos.
Na prática, a privação econômica transforma toda atividade cotidiana em fontes propensas ao perigo. Fenômeno social que se agrava na medida em que as pessoas sentem a sua existência subestimada, marginalizada e inútil, sem papel nem lugar na sociedade.
As que lutam por uma vida melhor, enfrentando circunstâncias difíceis e só respostas insensíveis — tanto dos seus mais próximos quanto da própria sociedade — sentem o desgosto do isolamento e da insegurança, que fere profundamente a sua dignidade.
Cresce cada dia mais, é inegável, o combate à pobreza. Mas é indispensável — a realidade clama — maior empenho por um relacionamento generoso entre as pessoas. Enfrentar o infortúnio de mãos dadas fortalece a própria razão de viver.

O Budismo como resposta
ao sofrimento humano


O Budismo surgiu na Índia antiga como resposta à questão universal de como enfrentar a realidade do sofrimento humano e ajudar as pessoas mergulhadas nessa amargura.
O Buda Sidarta Gautama ou Sakyamuni, fundador do Budismo, pertencia à realeza, que lhe garantia uma vida confortável. A tradição conta que sua decisão de abandonar, ainda jovem, essa comodidade e buscar a verdade por meio da prática monástica, foi inspirada nos “quatro encontros” que teve com pessoas atingidas pela doença, a velhice e a morte.
Mas seu propósito nunca foi apenas a reflexão passiva sobre a transitoriedade da vida e a inevitabilidade do sofrimento. Tempos depois, ele descreveu o que sentira naquele momento: “Em sua insensatez, os mortais comuns — mesmo já idosos —, quando percebem o inevitável envelhecimento e a decadência dos outros, ponderam angustiados, sentem vergonha e ódio — nem refletem que é problema também deles.”9 E frisou que o mesmo acontece em relação à doen­ça e à morte.
Sakyamuni sempre se preocupou com a arrogância que nos faz “coisificar” e isolar pessoas afligidas pela velhice e por doenças. Foi incapaz de fechar os olhos para os doentes e solitários ou para os idosos ignorados pelo mundo.
Um episódio de sua vida confirma.
Certo dia Sakyamuni encontrou um monge doente e lhe perguntou: “Por que você está sofrendo e está sozinho?” O monge respondeu que fora uma pessoa preguiçosa de nascença, incapaz de suportar dificuldades e cuidar dos outros, agora não havia alguém para cuidar dele. Sakyamuni respondeu: “Meu bom homem, vou cuidar de você”. Tirou-o da cama suja, deu-lhe um bom banho e roupa limpa. Levou-o para o ar livre e o incentivou com firmeza a ser sempre diligente em sua prática religiosa. O monge recuperou, além da saúde, a alegria de viver.
Creio que não foi apenas o cuidado inesperado e o dedicado afeto de Sakyamuni que restabeleceram o monge. O fato de tê-lo encorajado, rigoroso e benevolente, como fazia com outros discípulos saudáveis, reavivou a chama da vida prestes a se apagar no coração daquele homem.
A história que conto é baseada na narrativa do The Great Tang Dynasty Record of the Western Regions [O Conto da Grande Dinastia Tang do Oeste].10 Quando comparada à versão transmitida nos sutras, revela-se outro aspecto da motivação de Sakyamuni.
Depois de atender o necessitado, contam que Sakyamuni reuniu outros monges e perguntou se sabiam do doente. Pois sabiam, sim, de sua situação delicada, mas nenhum deles se esforçara para aliviá-lo. Os discípulos do Buda se justificaram com o mesmo raciocínio do monge enfermo:
— Não cuidamos porque ele nunca ajudou um doente.
Esta é a lógica da responsabilidade pessoal, desculpa para não auxiliar os outros. O conformismo no coração do monge doente e dos demais discípulos foi a justificativa arrogante para o descaso. Esta lógica murchou o espírito do monge doente e cegou os discípulos sadios.
“Quem quer que me socorra, deve socorrer o doente”. Com estas palavras, Sakyamuni quis dissipar o engano que cobria a mente de seus discípulos e conduzi-los a uma compreensão correta.
Em outras palavras, praticar o caminho do Buda significa participar ativamente das alegrias e dos sofrimentos dos outros — jamais dar as costas aos que estão aflitos, comover-se com as dificuldades dos outros como se fossem suas. Por essa dedicação, recuperaram o sentido de dignidade tanto os atingidos diretamente pelo sofrimento como aqueles que se compadeceram dos que sofriam.
A grandeza da vida não se manifesta por si mesma. Ao contrário, é por meio da ação solidária que se torna evidente a nossa natureza única e insubstituível. A capacidade de proteger a dignidade ferida ressalta o brilho de nossa própria existência.
Ao afirmar a igualdade entre ele e o monge doente, o Buda advertia que o valor da vida humana não diminui por causa da doença ou da idade. Recusou-se a curvar-se a tais diferenças e discriminações. Considerar fracasso o sofrimento alheio pela doença ou idade é um erro de julgamento que enfraquece o espírito dos envolvidos.
A base filosófica da Soka Gakkai Internacional (SGI) está nos ensinamentos de Nitiren Daishonin (1222—1282), que enfatizam a supremacia do Sutra de Lótus, epítome da iluminação de Sakyamuni. No Sutra de Lótus , uma torre maciça de joias surge da terra como símbolo do valor da vida. Nitiren compara os quatro lados dessa torre de tesouro aos “quatro aspectos”, nascimento, velhice, doença e morte.11 Afirma que podemos enfrentar inabaláveis a dura realidade do envelhecimento, da doença e da própria morte, diante das angústias que as acompanham. E fazer dessas experiências — normalmente consideradas negativas — o impulso para uma forma mais rica e digna de viver.
A grandeza da condição humana não se separa das inevitáveis dificuldades da nossa existência. Devemos nos envolver com as pessoas, estar ao lado delas nos seus sofrimentos e em suas esperanças, até onde alcance a nossa força, para abrir o caminho da verdadeira felicidade, para nós e para os outros. Inspirados neste ensinamento, os membros da SGI — antes ridicularizados no Japão como “pobres e doentes” — expandem com orgulho nossa tradição de apoio mútuo e encorajamento aos sofredores e aflitos.
Nos dias atuais esse espírito é especialmente valioso, na medida em que tantas pessoas ao redor do mundo sofrem privações inesperadas, resultantes de desastres naturais e crises econômicas. Estes acontecimentos privam as pessoas do que possuem e amam, sobra-lhes uma vida carregada de dor. É imperdoável que as deixemos isoladas e esquecidas.
A reconstrução das regiões afetadas por terremotos, como os que assolaram o Haiti (2010) e o nordeste do Japão (2011) , demanda tempo e muitas vezes os resultados ficam muito aquém das expectativas. A luta das pessoas para reconstruir a vida, recuperar o próprio sentimento do que são, é difícil e constante. Não podemos nos esquecer dos que sofrem. E a sociedade inteira deve participar deste esforço para reacender as esperanças.
Incentivar as pessoas até que sorrisos voltem ao seu rosto e jamais abandoná-las. Acompanhar suas alegrias e provações nos capacita a vencer sucessivos desafios e nos guia por uma trilha segura.
A persistente dedicação para defender o que é insubstituível e manter nossa própria dignidade e a dos outros corrige as desigualdades sociais e estabelece o alicerce da inclusão social.

Crer nas infinitas possibilidades da vida


Este segundo compromisso de fé é um verdadeiro guia para a ação.
Em setembro do ano passado, a SGI, a Associação para Educação em Direitos Humanos (HREA) e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (EACDH) lançaram, em parceria, o DVD Um Caminho para a Dignidade: O Poder da Educação em Direitos Humanos , para ampla divulgação dos ideais e princípios da Declaração das Nações Unidas sobre Educação e Treinamento em Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2011.
Este DVD, disponível para visualização on-line, revela o respeito aos direitos humanos, em três diferentes configurações. Embora as questões específicas de cada circunstância sejam diferentes, em conjunto transmitem a mensagem de que é possível, sim, mudar a sociedade: mudança que começa com a transformação interior de cada ser humano.
Organização não governamental filiada à ONU, a SGI vem instruindo sobre direitos humanos, uma de suas principais atividades. Esta iniciativa tem raiz na filosofia budista. Quando Sakyamuni insistiu: “Não procure explicações para o seu retrocesso, atue para o seu avanço”, criticava a visão de mundo do seu tempo, que considerava as circunstâncias de nosso nascimento na presente existência determinadas pelo carma acumulado em vidas passadas. Ao mesmo tempo, ele usou o ditado “na verdade, toda lenha dá fogo...”12 para afirmar que todas as pessoas possuem um estado de vida supremo e que são, neste sentido, fundamentalmente iguais e de ilimitadas possibilidades.
Uma visão fatalista da vida impede quem discrimina de refletir ou questionar suas próprias ações, e ainda mais de ser verdadeiramente movido pela voz da consciência. Cria um cenário em que o trágico desrespeito aos direitos humanos prevalece na sociedade: dá-se o desempoderamento das vítimas de discriminação até a perda da noção de seu valor insubstituível, gerando a resignação e o sentimento de “eu não sirvo para nada”.
As circunstâncias atuais, irreversíveis e determinadas por causas remotas, minam o respeito à vida, tanto para quem discrimina como para quem é discriminado, o que Sakyamuni combatia.
Ao afirmar que temos de nos concentrar na ação para o avanço e não nas condições de nosso nascimento, Sakyamuni ressalta que a relação de causa e efeito é mutável e que nossas ações e atitudes no presente momento se tornam novas causas que dão origem a novos resultados. O verdadeiro valor de uma pessoa é medido por suas ações no momento em que está vivendo.
Além disso, o ensinamento budista da Origem Dependente destaca nossa interdependência: todas as coisas existem nas tramas de um mesmo tecido de influências mútuas. O fluxo de sobreposição de causas e efeitos a cada instante se propaga por essa rede de interdependência e influencia os outros e o nosso meio. Assim, nossas ações neste momento têm o poder não só de transformar a nós mesmos, mas de criar uma cascata de reações positivas. Esta é a maravilhosa capacidade da vida — existente em todas as pessoas, independentemente de sua condição — que Sakyamuni tentou transmitir com a frase “na verdade, toda lenha dá fogo...”.
Este mesmo princípio está expresso no Sutra de Lótus por meio de parábolas habilmente expostas. Convém observar que não foram contadas por Sakyamuni, mas por seus vários discípulos. Bons exemplos são a parábola do homem rico e seu filho pobre, narrada por um dos homens de erudição (ouvintes da voz), Subhuti, e a parábola da pedra preciosa escondida no manto, relatada por Kaundinya, um arhat .
A primeira descreve um homem que depois de uma vida errante de grande infortúnio, sem saber que tinha pai rico, retorna para casa, encontra trabalho. Na última, um homem desconhece que uma joia de imenso valor foi costurada por um amigo no forro do seu manto.
Estas parábolas são contadas por discípulos do Buda para revelar a transbordante alegria e a força de vontade que sentem ao encontrar a essência dos ensinamentos de Sakyamuni: todas as pessoas possuem por igual a natureza de Buda e, assim, são capazes de manifestar a profunda e infinita sabedoria do Buda. O Sutra de Lótus revela o drama interior da vida, tanto na descrição da transformação dos discípulos que despertaram para sua alegre missão como nas parábolas que eles mesmos usam para descrever as suas experiências.
A filosofia budista afirma que a humanidade pode avançar, um passo de cada vez, pelo constante empenho de nos inspirarmos uns aos outros e compreendermos que, assim como o despertar de Sakyamuni provocou o despertar de seus discípulos, aquilo que é possível a uma só pessoa é possível a todas. Esta é a base filosófica da SGI na área da educação dos direitos humanos, ênfase ao processo que torna o indivíduo capaz de liderança para o bem dos outros.
Um dos estudos de caso incluídos no DVD é o de uma jovem mulher turca obrigada a se casar contra a vontade e violentada pelo marido. Quando quis se divorciar, viu-se ameaçada fisicamente, não só pelo marido, mas até pelos familiares dela. Conseguiu refúgio numa organização de mulheres, solidária com os seus direitos. Determinou-se a começar vida nova: “Sinto-me forte... muito forte mesmo. Se eu pudesse ajudar outras mulheres, então seria ainda mais feliz. Ser um exemplo, é o que eu quero”.
É de fato um exemplo valioso de educação prática dos direitos humanos. No sorriso de uma mulher, que recuperou a força para viver, vemos o calor da esperança e do poder da autoconfiança, que surgem ao nos tornarmos plenamente conscientes de nossa própria grandeza.
Poucas pessoas expressam esta noção do calor da esperança de forma tão clara como o filósofo americano Milton Mayeroff (1925—1979). Ele foi o autor da proposta da teoria do cuidado, na qual o empoderamento se baseia na atenção que se dá aos outros.
Há esperanças de que o outro cresça com o meu carinho... Isso é de certo modo semelhante à esperança que acompanha a chegada da primavera... Não é uma expressão da insuficiência do presente em comparação com a suficiência de um futuro esperançoso. Expressa a plenitude do presente vivido com o sentido do possível.13
O importante é que a esperança não seja relegada ao status de nota promissória a ser paga no futuro. Mas sim o do encontro com o sentido de plenitude e suficiência na vida exatamente agora.
O que vale não é o que a nossa vida foi até aqui. No instante em que despertamos para o nosso valor original e decidimos mudar a realidade, começamos a brilhar com a luz da esperança.
Nitiren Daishonin tinha orgulho de ter nascido “numa família chandala, pobre e humilde”,14 sempre viveu com pessoas vitimadas por males sociais. Ele descreveu o funcionamento dinâmico e transformador da vida comparando-o ao “fogo produzido por uma pedra tirada do fundo do rio, ou uma lanterna iluminando um lugar que esteve na escuridão por cem, mil ou dez mil anos”.15
Esperanças que só podem ser realizadas no futuro distante — ainda que grandiosas e sublimes — não impulsionam a luta espiritual incessante necessária para fazê-las florescer. Nem oferecem oportunidades concretas às pessoas para que mudem o mundo ao seu redor, graças à transformação conquistada em sua vida. Somente quando a esperança é cultivada no dia a dia, como “a chegada da primavera”, é que se chega ao sucesso, de forma paciente, alegre e orgulhosa, a partir das sementes das possibilidades. Só assim influenciaremos positivamente os que nos cercam, com a nossa própria transformação interior, trabalhando pela transformação sustentável da sociedade.
Acredito que este pensamento é valioso não só para os desafios da construção de uma cultura dos direitos humanos, mas para a realização de uma sociedade que sustente a vida. Precisamos de um trabalho abrangente que nos ajude a melhorar as circunstâncias atuais para alcançar um futuro melhor. Salientei bem este ponto na proposta que encaminhei à Conferência Rio+20 em junho do ano passado.16 O sucesso de nossos esforços visando ao ano 2030 depende de quão profundas são as raízes do nosso movimento para capacitar as pessoas — além de empoderá-las para que possam liderar — nas comunidades ao redor do globo. Acima de tudo, é vital que a nossa vida seja tomada pelo calor da esperança, exatamente agora. E cada passo que dermos para tornar o mundo um lugar melhor será, como Goe­the pediu, “passo e objetivo ao mesmo tempo”.

Defender e celebrar a diversidade



Este é o terceiro guia para ação.
Faz muitos anos converso com pessoas de diversas origens: étnica, cultural e religiosa. Cada vez mais, cresço com essa experiência e me sinto mais profundamente convencido de que a diversidade merece respeito, sobretudo porque nos permite a autorreflexão para enriquecer a vida de mais significações.
Atualmente, as duas tendências da globalização e da crescente penetração de tecnologias da informação expandem oportunidades para que pessoas de diferentes origens possam interagir, comunicar seus pensamentos, suas ideias, a qualquer instante. Ao mesmo tempo, o que se vê é uma homogeneização, um nivelamento devido, sobretudo, a processos econômicos que corroem a singularidade de cada cultura. Além disso, a maior circulação de pessoas por diversos países muitas vezes resulta em choques culturais, agravados pela provocação deliberada de antipatia e desconfiança. Diferenças que poderiam enriquecer nossa vida tornam-se alvo de ataques ou barreiras que separam, quando não se transformam em conflitos violentos.
A Declaração de Sevilha sobre a Violência, elaborada por um grupo de cientistas de diversos países e adotada pela Unesco em 1989, afirma: “É cientificamente incorreto dizer que a guerra ou comportamentos violentos estão geneticamente programados em nossa natureza humana. Ou que uma guerra seja provocada por ‘instinto’ ou por qualquer motivo particular”.
Concordo plenamente. Mas é preciso considerar ainda a existência de várias barreiras que precisam ser superadas, a fim de romper o ciclo de conflitos e violência. Para tanto, devemos começar perguntando a nós mesmos o que leva as pessoas à guerra e à destruição.
Sakyamuni acreditava que o conflito surge da escuridão fundamental ou da ilusão que nos impede de reconhecer na vida do outro o mesmo valor insubstituível que possuímos. Vivendo na Índia antiga, Sakyamuni muitas vezes assistiu a confrontos violentos, conflitos tribais por água e outras fontes e disputas de poder entre os Estados.
Ele identificou o que considerava ser a essência do problema: “Vi uma única flecha invisível perfurando o coração das pessoas”.17 De coração atingido pela flecha invisível da escuridão fundamental, elas não conseguem se libertar do apego a uma visão egocêntrica do mundo.
Sakyamuni viu dois grupos tribais em conflito tomados pelo mesmo desespero que os deixava “como peixes se contorcendo em água rasa”.18 A mente deles estava distorcida, não reconheciam que o grupo adversário sentia as mesmas aflições de falta de água ou de ser atacado e derrotado.
Para superar esta questão, Sakyamuni bradou: “Todo mundo estremece diante da violência, a vida é desejada por todos. Quem se põe no lugar de outra pessoa, não mata nem induz o outro a matar”.19
Nesta declaração, há dois pontos cruciais. Primeiro, Sakyamuni sempre tentava se colocar no lugar dos outros e sentir a angústia alheia como sua, em vez de agir só para se mostrar. Segundo ponto, além de não matar, devemos trabalhar para que os outros não matem. Ele nos alerta a cultivar, por meio de sincero diálogo, a bondade que existe na vida dos outros e nos unir num juramento contra a violência e o ato de matar alguém.
As escrituras budistas contam o seguinte episódio em que a demônio Kishimojin (Hariti, em sânscrito) foi persuadida por Sakyamuni a mudar o seu modo de vida, após o diálogo que a incentivou a refletir sobre suas ações.
Kishimojin é retratada como um demônio com muitos filhos — centenas ou até alguns milhares — e consta que ela matava os bebês dos outros para alimentar os seus próprios. O povo então recorreu a Sakyamuni, pedindo-lhe para pôr fim às maldades dessa demônio. Sakyamuni encontrou o filho mais novo de Kishimojin, ao qual ela prezava especialmente, e o escondeu. Durante sete dias ela procurou desesperadamente o filho. Até que no auge do seu desespero ciente de que Sakyamuni estava a par de tudo, pediu-lhe ajuda.
Sakyamuni respondeu aos seus apelos: “Ouvi dizer que você tem muitas crianças. Então, por que está tão angustiada com a perda de apenas uma delas? A maioria das famílias tem apenas um, três, ou talvez cinco filhos. E você vive roubando os filhos delas”.20
Ao ouvir estas palavras, Kishimojin percebeu que ela sentia naquele momento a mesma dor que infligira a inúmeros outros pais. Depois de prometer que abandonaria os maus caminhos, ela se juntou ao filho predileto. A partir desse momento, Kishimojin assumiu a missão de proteger os filhos de todos. No Sutra de Lótus, ela jura proteger, junto com outras ferozes divindades, os que agem pela felicidade das pessoas.
Nitiren Daishonin considera que Kishimojin era um “demônio” de acordo com os ensinamentos pré-Sutra de Lótus, mas pelos ensinamentos do Sutra de Lótus ela agia como um “demônio benevolente”.21
O mais importante nesta história é que, mantendo sua aparência de demônio, Kishimojin foi capaz de transformar completamente o seu modo de vida. Mudando a sua consciência de mãe, colocou-se no lugar do outro e, pela primeira vez, sofreu profundamente a dor de suas vítimas. E decidiu que nunca mais causaria nem permitiria a alguém causar a angústia que ela sentiu.

A pluralidade de identidades humanas


O Nobel de Economia Amartya Sen é um dos principais defensores do ideal de que “a pluralidade de indivíduos” é uma resistência à massificação e à incitação à violência. Quando jovem, o Dr. Sen foi testemunha da morte de muitas pessoas (durante o combate final do domínio britânico na Índia) causada tão somente por diferenças religiosas. Isso lhe doeu tanto, que o inspirou a procurar formas de evitar essas tragédias. Ele adverte:
A insistência, ainda que implícita, sobre uma singularidade de indivíduos, sem diversidade de escolha, não só nos diminui, deixa o mundo muito mais explosivo (...) A maior esperança de harmonia para este conturbado tempo, está na pluralidade de identidades humanas, que liga uma vida à outra e derruba o muro das diferenças de opinião da qual a pessoa não quer abrir mão.22
É claro que os membros de qualquer grupo étnico ou tradição religiosa não são idênticos entre si: o ambiente em que cresceram, suas ocupações e seus interesses são diferentes, como suas convicções e seus modos de vida. É devido a essas diversidades individuais que, embora possam existir diferenças reais entre pessoas de igual etnia e religião, há sempre a possibilidade de se encontrar pontos em comum e de ressonância mútua no intercâmbio de coração a coração. Como o Dr. Sen realça, isso nos permite derrubar nítidas diferenças de opinião e criar elos de empatia e amizade.
É por isso que no diálogo com companheiros de diferentes origens culturais e religiosas, além de averiguar bem as possíveis respostas a questões globais e perspectivas para o futuro da humanidade, faço questão de me informar sobre a família da pessoa, suas lembranças da juventude ou o que a levou a prosseguir no caminho em que vai. Tento ver com clareza as convicções e motivações individuais — a riqueza da personalidade — que podem estar escondidas atrás dos rótulos de etnia ou de credo. Mantenho a esperança de que a interação de nossa vida produza melodias que nos conduzam a um mundo genuinamente humano. Com esses laços harmônicos, nossas diferenças acabam por exigir que cada um de nós revele o que tem de melhor.
De acordo com a preocupação do Dr. Sen sobre a pluralidade humana, a filósofa política germano-americana Hannah Arendt (1906—1975) escreveu as seguintes palavras que expressam o ponto central de seu pensamento: “Por mais que sejamos afetados pelas coisas do mundo, por mais que possam nos provocar e instigar, elas somente se humanizam quando podemos discuti-las com os nossos companheiros”.23 Arendt esclarece que usa a palavra “companheiro” para indicar “amizade” mais do que “fraternidade” — amizade especialmente entre pessoas cujos pontos de vista sobre a verdade são diferentes. É precisamente por causa das diferenças que o mundo é humanizado pelo diálogo e a rica diversidade da vida humana brilha com sua máxima glória.
Acima de tudo, a amizade feita de coração a coração impede as fissuras das sociedades nas quais as diferenças muitas vezes se inclinam para a exclusão. Vamos nos esforçar para manter essa amizade como sinal da nossa humanidade, se quisermos evitar que os laços de empatia se desatem por uma cultura de guerra, por um turbilhão de ódio e violência.
Inspirada pela Declaração de Sevilha, a ONU difunde uma cultura de paz para transformar a enraizada tendência da humanidade para a guerra. Um exemplo é a Década Internacional para a Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo (2000–2010) . Com o mesmo objetivo, a SGI organizou várias exposições e outros programas para promoção da educação pública e do diálogo, esforços nos quais persevera.
Para ajudar uma cultura de paz a fincar raízes no mundo inteiro é necessário neutralizar pacientemente qualquer indício de ódio e de confronto. Como seres humanos, temos as ferramentas adequadas para essa busca: o diapasão da autorreflexão que nos deixa imaginar a dor dos outros como se fosse a nossa; a ponte do diálogo que nos leva ao encontro de uma pessoa no lugar onde ela estiver; a pá e a enxada da amizade com as quais cultivamos os mais áridos e desolados terrenos.
A amizade é poderosa: funda uma vibrante cultura de paz que inaugura alegrias em nossa existência neste planeta. Está na sua essência o juramento de proteger, a todo custo e apesar das diferenças, a dignidade de cada um. Como Nitiren Daishonin afirmou, “Felicidade é a sua alegria e a dos outros”.24
Até aqui fiz considerações a respeito dos três compromissos para a construção de uma civilização de respeito à vida. Eles também podem ser pensados em termos das três qualidades que sugeri como essenciais à cidadania mundial, na palestra que proferi no Teachers College, na Universidade de Colúmbia , em 1996:25
• Compaixão que nunca abandona os outros no sofrimento.
• Sabedoria de perceber a igualdade e as possibilidades da vida.
• Coragem de fazer das diferenças o impulso para elevar a nossa humanidade.
Acredito que o desafio da construção de uma sociedade mundial de paz e coexistência criadora começa com o reconhecimento de que essas virtudes são inatas na vida das pessoas. Também acredito que a missão social da religião no século 21 deve ser incentivar o florescimento dessas capacidades: unir as pessoas num ethos de reverência à existência humana e seus valores.

Armas nucleares: a maior
negação à dignidade da vida


Chego aos dois maiores desafios que o mundo enfrenta. Com propostas concretas para vencê-los: proibir e abolir as armas nucleares e respeitar a cultura dos direitos humanos.
Em relação ao primeiro desafio, considero as armas nucleares a encarnação contemporânea do “ágil punhal” de Goethe.
O filósofo francês Paul Virilio vê a velocidade dos diferentes problemas da civilização contemporânea de maneira semelhante à sondagem feita por Goethe da psicologia humana, ávida por um “ágil punhal”. Em Speed and Politics [Velocidade e Política], ele escreve: “O perigo maior das armas nucleares e seus sistemas (...) não é a ameaça de que elas vão explodir, mas o fato real de que elas já estão, sim, implodindo nossa mente”.26
A destruição causada por uma explosão nuclear é imensa e irreparável, mas a questão que Virilio ressalta é a infelicidade de se viver sob a ameaça de um confronto nuclear e seu impacto espiritual, mesmo quando essas armas não são usadas. Trata-se de um ponto de vista importante, sem o qual a realidade de nossa circunstância não se revela. Virilio afirma que, “como continuação da guerra total por outros meios, a expansão nuclear marcou o fim da distinção entre tempo de guerra e tempo de paz...”27
Há mais de meio século, no auge da competição da Guerra Fria em busca de armas nucleares cada vez mais perversas, meu mestre e segundo presidente da Soka Gakkai, Jossei Toda (1900–1958), fez uma declaração pela abolição dessas armas . Nela, ele destacou que a posse de armas maléficas representa uma negação à vida e que elas são inadmissíveis em qualquer circunstância. Ele bradou o seu completo repúdio:
Ainda que neste momento cresça no mundo inteiro o movimento pela abolição dos testes nucleares, é meu desejo ir mais longe, atacar o problema pela raiz: cortar as garras ocultas dessas armas.28
Embora ele reconheça a importância dos esforços para banir os testes nucleares, considera que o verdadeiro combate é desafiar o próprio pensamento que os permite.
Armas nucleares não distinguem combatentes e não combatentes, destroem cidades inteiras e matam instantaneamente milhares de pessoas. Seu impacto sobre o meio ambiente é grave, e as sequelas da exposição à radiação causam nos seres humanos sofrimentos que perduram. Os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki mostraram ao mundo a sua natureza terrivelmente poderosa.
Qual, então, o argumento dos que possuem essas armas?
Como já disse mais de uma vez, creio que é a mesma psicologia que trouxe a humanidade ao ponto dessa guerra sem limites: a maneira unilateral de pensar, que identifica a todos como adversários. Independentemente das diferenças individuais, eles são vistos como inimigos. É a negação da possibilidade de qualquer relacionamento com eles, deixando apenas a opção de ruptura violenta de todos os laços. Não é absoluta rejeição à vida?
Nada neste pensamento contém o que Arendt chamou de “disposição de dividir o mundo com outros homens”, que contrasta com a cruel frieza do misantropo: “ninguém é digno de participar de sua alegria no mundo, na natureza e no cosmos”.29 É um estado de vida dominado pelo impulso de rejeitar e destruir a vida dos outros — ao qual o Budismo se refere como a nossa escuridão fundamental.
É por este motivo que, na resolução de “cortar as garras ocultas” e de proteger o direito de viver das pessoas, o presidente Toda foi incisivo: “Proponho que a humanidade aplique, em todos os casos, a pena de morte para os responsáveis pelas explosões atômicas, mesmo a um vencedor”.30
Como budista, o presidente Toda declarou muitas vezes ser contrário à pena de morte. O que parece apelo ao castigo extremo deve ser entendido como absoluta inadmissibilidade do poder atômico mortal. Além disso, é uma refutação clara da lógica da posse de armas nucleares por Estados que, por interesses de segurança, fazem reféns os povos do mundo.
Quando o presidente Toda fez essa declaração em 1957, o mundo estava dividido entre dois campos opostos, o Oriente e o Ocidente, ambos negociando duramente a posse do arsenal. À sua maneira, Toda denunciou as armas nucleares como o grande mal da civilização contemporânea , e falou unicamente em nome do bem da humanidade, sem levar em conta ideologias ou interesses nacionalistas.
Desde aquela época, cresce cada vez mais o número de países que possuem armas nucleares. É imprescindível, portanto, que também cresça a prevenção da proliferação. Creio, contudo, que o fundamental é que estejamos alertas ao problema central da questão — a sua desumanidade intrínseca —, que o meu mestre expôs de maneira tão clara.
É oportuna a afirmação do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon : “A posse de armas atômicas por alguns incentiva a sua aquisição por outros. E isso leva à proliferação nuclear e à expansão da contagiosa doutrina da dissuasão nuclear”.31 A menos que confrontemos a fonte fundamental desse contágio, toda ação para evitar a proliferação será infrutífera e ineficaz.

Proibição das armas nucleares


Desde a Conferência de Revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) em 2010, cresce o movimento pela proibição das armas nucleares, porque desumanas.
O documento final aprovado por esta Conferência de Revisão aborda uma “profunda preocupação com as consequências catastróficas do poderio nuclear para a vida da humanidade” e reafirma “a necessidade do respeito de todos os Estados, em qualquer momento, ao direito internacional em vigor, incluindo o direito humanitário internacional”.32
Esta declaração inovadora abriu caminho para a resolução do Conselho de Delegados da Cruz Vermelha Internacional e do Crescente Vermelho, em novembro de 2011, que traz um forte apelo a todos os Estados para que “prossigam com boa-fé e finalizem imediatamente as negociações e determinações para proibir o uso e eliminar completamente as armas nucleares, graças a um acordo internacional de caráter juridicamente vinculativo”.33
Em maio de 2012, na primeira sessão do Comitê Preparatório para a Conferência de Revisão do TNP, a realizar-se em 2015 , dezesseis países, liderados pela Noruega e a Suíça, emitiram uma declaração conjunta sobre a dimensão humanitária do desarmamento nuclear, afirmando que “é de extrema preocupação que, mesmo após o fim da Guerra Fria, a ameaça de aniquilação nuclear permaneça em pleno século 21, com a falsa justificação da segurança do país. E asseveram que “é fundamental para a humanidade que essas armas jamais sejam usadas. (...) Todos os Estados devem intensificar os esforços pela sua proibição e por um mundo livre delas”.34 Em outubro de 2012, esta declaração foi apresentada, com pequenas revisões, à Primeira Comissão da Assembleia Geral da ONU composta por 35 Estados-membros e observadores.
Em março deste ano, realizou-se em Oslo, Noruega, uma conferência internacional sobre o impacto das armas atômicas sobre a humanidade. Sua finalidade é examinar cientificamente os efeitos imediatos e em longo prazo de qualquer uso dessas armas e as dificuldades da ajuda humanitária para amenizar suas consequências. Por fim, em setembro deste ano, a Assembleia Geral, em reunião de alto nível, vai discutir a necessidade do desarmamento nuclear.
Em minha proposta do ano passado, clamei pela criação de um “Grupo de Ação para a Convenção sobre Armas Nucleares” (NWC), composto por ONGs e governos visionários. Tenho muitas esperanças nessas conferências como fontes de um núcleo de ONGs e governos que apoiem essas declarações e espero que, se possível, comece antes do fim do ano o processo de elaboração de um tratado para proibir armas nucleares em razão de sua natureza desumana.
A posição adotada pelos países que defendem a dissuasão ampliada dos Estados possuidores dessas armas, o chamado guarda-chuva nuclear, será um fator determinante de êxito.
Os signatários dessas declarações não serão apenas os países que pertencem à Zona Livre de Armas Nucleares (NWFZ) e os países neutros. Também a Noruega e Dinamarca, membros da Nato [Organização do Tratado do Atlântico Norte], que vivem debaixo do guarda-chuva. Estes dois países não só assinaram as declarações, como desempenharam um papel fundamental em sua elaboração.
O Japão, ainda coberto pela dissuasão ampliada de seu aliado, os Estados Unidos, deve se juntar a outros países que buscam a proibição das armas nucleares e trabalhar para que o mundo fique livre da ameaça delas quanto antes.
Em vez de aceitar que, diante da existência de armas nucleares, nos acomodemos com uma dissuasão ampliada inevitável, o Japão, país que sofreu os horrores de um ataque nuclear, deve promover o fim dessa distinção entre armas nucleares “boas” ou “más”, dependendo de quem as possui, e liderar a realização de uma NWC [Convenção sobre Armas Nucleares].
Já me referi à advertência de Sakyamuni: “Colocando-se no lugar do outro, não se deve matar nem instigar os outros a matar”. Os sobreviventes dos ataques nucleares a Hiroshima e Nagasaki continuam a dar voz aos que clamam para que nenhum país seja vítima de ataque nuclear e que nenhum país se envolva numa agressão. Da mesma forma, o Japão deveria assumir a vanguarda, a fim de evitar, para sempre, tragédias provocadas pelo uso de armas da morte.
Além disso, claramente determinado a não depender de armas nucleares para garantir a sua segurança, o Japão deveria conduzir uma política de fortalecimento da confiança necessária à concretização de um Nordeste Asiático NWFZ [Zona Livre de Armas Nucleares]. O país deveria contribuir efetivamente para a diminuição das tensões regionais e à redução do papel político das armas nucleares de modo a criar condições para a sua abolição mundial.

Cúpula ampliada sobre
atividades nucleares em 2015


Há recentes sinais, mesmo entre Estados detentores das armas atômicas, de mudança de atitudes em relação à sua utilidade.
O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama , em discurso no dia 26 de março de 2012, na Universidade Hankuk de Assuntos Estrangeiros, em Seul, na Coreia do Sul, declarou: “Quanto às armas nucleares, meu governo reconhece que o enorme arsenal nuclear herdado da Guerra Fria é pouco adequado para as ameaças atuais, incluindo o terrorismo nuclear”.35
Da declaração aprovada pela cúpula da Nato, em maio de 2012, consta: “As circunstâncias nas quais o uso de armas nucleares seria contemplado são extremamente remotas”.36
Ambas as declarações assumem a continuidade da política de dissuasão enquanto existirem armas nucleares. E, no entanto, desconsideram a presença delas para garantir a segurança nacional.
A simples propriedade dessas armas é posta em questão por várias outras perspectivas. Em diversos países, mais e mais vozes questionam a sabedoria da sua posse contínua, à luz dos enormes encargos financeiros que dela decorrem. No Reino Unido, que ainda sofre os efeitos da crise econômica mundial, a reforma do velho submarino Trident, de mísseis nucleares, provocou debates sobre política fiscal.
Estima-se que o volume da despesa anual com armas nucleares em todo o mundo gire em torno de US$ 105 bilhões.37 A quantia revela quão pesado é o fardo sobre as sociedades somente para possuí-las. Se esses recursos financeiros fossem redirecionados para a saúde, o bem-estar social, para programas de educação ou para auxiliar o desenvolvimento de outros países, seria incalculável a melhora da qualidade e da dignidade da vida das pessoas.
Em abril de 2012, nova e importante pesquisa sobre os efeitos que uma guerra nuclear causaria ao meio ambiente foi anunciada no relatório “Nuclear Famine”. Este documento, elaborado pelos Médicos Internacionais para a Prevenção da Guerra Nuclear (IPPNW) e Médicos pela Responsabilidade Social (PSR) prevê que um conflito nuclear, mesmo de escala relativamente pequena, pode provocar alterações climáticas e seu impacto sobre os países distantes das nações combatentes resultaria em fome de mais de um bilhão de pessoas.38
A SGI, inspirada na declaração antiarmas nucleares do segundo presidente da Soka Gakkai, Jossei Toda, em 1957, trabalha há décadas pela proibição e eliminação dessas armas de destruição em massa. Recentemente, promovemos uma nova exposição “Tudo Que Você Valoriza — Por um mundo livre de armas nucleares”, em parceria com a Campanha Internacional para Abolição das Armas Nucleares (Ican).
Como as iniciativas para solucionar a questão das armas nucleares, de uma perspectiva política ou militar, permanecem num impasse, essa exposição, inaugurada em Hiroshima em agosto de 2012 , examina a situação a partir de vários enfoques, incluindo, é claro, a ameaça à segurança humana, a proteção ambiental, o desenvolvimento econômico, os direitos humanos, a igualdade de gêneros e a responsabilidade social da ciência.
O objetivo da mostra é despertar os interesses de cada pessoa para ajudá-la a identificar a relação entre as armas nucleares e suas necessidades, e expandir a rede de esperança por um mundo livre delas.
Os esforços da SGI para lidar com a questão das armas atômicas sustentam-se no reconhecimento de que a própria existência delas representa a máxima negação da vida. É preciso desafiar a ideia desumana de que os interesses dos Estados justificam o sacrifício de vidas humanas e da própria ecologia. Ao mesmo tempo, sentimos que o perigo nuclear serve como lente através da qual se pode ver com mais nitidez a integridade ecológica, o desenvolvimento econômico e os direitos humanos — realidades que o mundo contemporâneo não pode ignorar. E nos ajuda a identificar os elementos que moldarão uma nova sociedade sustentável na qual todos possamos viver plenamente.
Com essa esperança, gostaria de fazer três propostas concretas.
Primeira, tornar o desarmamento um tema-chave dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Proponho a redução pela metade dos gastos militares mundiais em relação a 2010 e que a abolição das armas nucleares e de todas as outras armas consideradas desumanas pela legislação internacional, seja incluída como um objetivo a ser atingido até 2030. Na proposta que elaborei por ocasião da Conferência Rio+20, em junho do ano passado, sugeri que as metas relacionadas a economia verde, energia renovável, prevenção e redução de desastres fossem incluídas nos ODS. Creio que as metas de desarmamento também devem fazer parte dos Objetivos da ONU.
O International Peace Bureau (IPB), o Instituto de Estudos de Política (IPS) e outras organizações da sociedade civil defendem a redução das despesas militares no mundo todo. A SGI apoia essa manifestação conscientizadora pelo desarmamento, considerando-a uma ação humanitária.
Segunda, iniciar a negociação de uma Convenção sobre Armas Nucleares, com o objetivo de formalizar um projeto inicial até 2015: para isso, se impõe a urgência de um debate sobre a natureza desumana das armas nucleares, com ampla participação da opinião pública internacional.
Terceira, realizar uma cúpula ampliada por um mundo livre de armas nucleares. A Cúpula do G8, em 2015, marco dos setenta anos dos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki , seria a oportunidade apropriada para a realização desse encontro, que deve reunir representantes das Nações Unidas, não integrantes do G8 , detentores de armamento nuclear, os cinco membros da NWFZ e aqueles estados que tomaram a iniciativa de pedir a abolição nuclear. Desde que Alemanha e Japão, sedes das Cúpulas do G8 programadas para 2015 e 2016, respectivamente, concordem em inverter essa ordem, permitindo que a convocação desta reunião se faça em Hiroshima ou Nagasaki.
Em propostas de paz anteriores, sugeri que a Conferência de Revisão do TNP de 2015 fosse sediada em Hiroshima e Nagasaki, caminho para uma cúpula pela abolição nuclear. Ainda espero que essa reunião possa se realizar. No entanto, os problemas logísticos envolvidos em reunir os representantes de quase 190 países indicam que esta acontecerá na sede da ONU em Nova York, como habitual. Neste caso, a Cúpula do G8, alguns meses após a Conferência de Revisão do TNP, é excelente oportunidade para a análise especial deste agudo problema pelo grupo ampliado de líderes mundiais.
A este respeito, sinto-me incentivado pelas palavras do presidente Obama, em seu discurso na Coreia, ao qual já me referi:
Acredito que os Estados Unidos têm responsabilidade total de agir — na verdade, temos uma obrigação moral. Digo isto como presidente da única nação que já usou armas nucleares.
O pronunciamento reforça a convicção do que afirmou em seu discurso de Praga em abril de 2009:
Acima de tudo, falo como pai, que deseja que suas duas jovens filhas cresçam num mundo onde tudo que conhecem e amam não possa ser eliminado instantaneamente.39
Estas palavras transmitem o anseio de como o nosso mundo deveria ser, desejo que ainda não alcançamos, apesar de toda uma política e medidas de segurança serem devidamente consideradas. É a afirmação de um único ser humano elevando-se acima das diferenças de interesse nacional ou orientação ideológica. Esta maneira de pensar pode nos ajudar a “desatar” o nó-cego que faz tempo vincula a segurança nacional à posse de armas nucleares.
Não há lugares mais propícios para um profundo exame do significado da vida na era nuclear do que Hiroshima e Nagasaki. Como se reconheceu quando, em 2008, se reuniu em Hiroshima a Cúpula do G8 de Palestrantes da Câmara Baixa.
A cúpula ampliada que solicito herdaria esse espírito do mundo livre dessas armas: ponto de partida dos esforços para que 2030 seja o ano do desarmamento.

Promover a cultura dos direitos humanos


Quero me entregar agora ao desafio da cultura dos direitos humanos.
Assim como a primeira resolução aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1946, foi a proibição e abolição das armas nuclea­res, a proteção dos direitos humanos é um dos principais objetivos da ONU desde a sua fundação.
A escassa referência aos direitos humanos no projeto inicial da Carta da ONU levou muitos participantes da Conferência das Nações Unidas sobre a Organização Internacional, realizada em São Francisco em 1945 — e até mesmo ONGs — a pedir a inclusão de dispositivos claros sobre esta questão primordial. O pedido resultou na “promoção do respeito aos direitos humanos” definida no artigo 1º da Carta como um dos principais objetivos da nova organização e ganhou a importância de tema central, para o qual se definiu a criação de uma comissão especializada.
No ano seguinte, 1946, criou-se a Comissão de Direitos Humanos, antecessora do atual Conselho de Direitos Humanos. Dois anos depois, 1948, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos . Eleanor Roosevelt (1884—1962) , a primeira presidente da Comissão, que desempenhou papel decisivo, tanto na elaboração quanto na aprovação, declarou: “A presente Declaração Universal dos Direitos Humanos pode muito bem tornar-se a Carta Magna internacional de todos os homens em todos os lugares”.40 Como previu, a Declaração tem influenciado a legislação sobre direitos humanos de vários países, além de ser a base filosófica de vários tratados internacionais de direitos humanos e continua a inspirar a todos que se dedicam a esta grande causa.
Nos sessenta e cinco anos da Declaração, avançou a definição de normas para os direitos humanos, o desenvolvimento de instituições que os garantam e a provisão de benefícios jurídicos contra as suas violações. Hoje, com base nestes avanços, cresce a ênfase internacional pelos direitos humanos.
O conceito de cultura dos direitos humanos tem como objetivo a promoção de um ethos social, pelo qual as pessoas valorizem a dignidade humana. É uma forma de incentivar cada indivíduo a agir conscientemente para reforçar os seus direitos.
Estes valores estão de acordo com os princípios que destaco nesta proposta. Para a criação de uma sociedade que respeite a vida, o sentimento do valor insubstituível de cada indivíduo deve desabrochar no coração de todos e, ao mesmo tempo, ser o fundamento dos laços humanos que sustentam a sociedade.
A ONU incentiva a formação dessa cultura por meio de seu Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos, que já existe desde 2005. Para melhor contribuir com esses esforços, sugiro que a promoção dos direitos humanos seja elemento central dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para o ano de 2030, ao lado do desarmamento. Concordo plenamente com a declaração de Navanethem Pillay , alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, quando refletiu sobre o resultado da Rio+20: “Temos de garantir que a estratégia (...) dos ODS seja a nossa estratégia”.41
Com essas ideias em mente, proponho a inclusão das seguintes metas. A primeira é a implementação de um Piso de Proteção Social (FPS) em todos os países, com o objetivo de garantir que aqueles que sofrem com a miséria sejam capazes de recuperar o sentido de dignidade.
Embora o direito a um padrão adequado de vida esteja incluído na Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma parte inaceitavelmente grande da população mundial não tem acesso aos seus mínimos direitos, necessários para uma vida digna. Para enfrentar o impacto da crise econômica mundial sobre emprego, saúde e educação, a ONU lançou, em 2009, a Iniciativa Global para a Área de Proteção Social Universal (SPF-1).
Já é tradição dos governos elaborar redes de segurança social, mas sempre há pessoas que escorregam pelas suas malhas. Para evitar as imperfeições, surgiu o conceito de um piso que abarque e sustente todas as pessoas, para que tenham o que toda vida merece.
Proporcionar um piso de proteção social mínimo para pessoas em todo o mundo é um grande desafio. Sucede que, de acordo com estimativas feitas pelas agências das Nações Unidas, é possível, para muitos países — em qualquer estágio de desenvolvimento econômico —, cobrir os custos de uma estrutura básica de rendimento mínimo e garantia de subsistência. De fato, aproximadamente trinta países já estão pondo em prática esses planos.
O Conselho de Direitos Humanos retomou, setembro do ano passado, a questão da extrema miséria e os direitos humanos. Aprovou uma série de princípios de ação e orientações para a comunidade internacional. Incluem “agência e autonomia” e “participação e empoderamento”. O Conselho apela para que os Estados “elaborem uma estratégia mundial a ser adotada em cada país, para redução da pobreza e da exclusão social” e para “assegurar que as políticas públicas priorizem as pessoas que vivem em extrema pobreza”.42
Nas palavras de Muhammad Yunus , economista de Bangladesh e fundador do Grameen Bank, “como a pobreza nega às pessoas qualquer indício de controle sobre o seu próprio destino, ela é a negação extrema dos direitos humanos”.43 Eliminar a miséria é a tarefa primordial: ela enfraquece a própria base dos direitos e da dignidade humana.
A situação da juventude é particularmente preocupante. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 12% dos jovens do mundo não têm emprego.44 E dos empregados, mais de 200 milhões são obrigados a trabalhar por menos de US$ 2 ao dia. A OIT adverte: “Só uma ação urgente e enérgica impedirá a comunidade mundial de enfrentar o legado sombrio de uma geração perdida”.45
Uma sociedade que não dá esperanças aos jovens não pode alcançar a sustentabilidade nem sequer construir uma cultura dos direitos humanos. O esforço para garantir um nível de proteção social deve ter em mente esta verdade.
O segundo objetivo é a inclusão nos ODS da educação e capacitação para promover os direitos humanos.
Não me canso de afirmar que a interação com outras pessoas e o apoio da sociedade como um todo podem dar a sensação de estarmos juntos e podermos ajudar as pessoas a recuperar a esperança e a dignidade, por mais difíceis que sejam as circunstâncias. Os esforços para aumentar a consciência dos direitos humanos por intermédio da educação e formação poderão servir de catalisador, ao lado de garantias jurídicas.
O documentário, “Um Caminho para a Dignidade”, ilustra bem como a educação dinamiza os direitos humanos e seu impacto tanto nos afetados pela violação como nos agressores potenciais.
Tomo o caso de um menino discriminado. Graças a um programa de educação em direitos humanos na sua escola, ele achou que poderia dizer as coisas que, a seu ver, não estavam corretas. Certo dia, ele se deu conta de que uma menina do seu bairro fora obrigada a se casar contra a própria vontade. Os pais alegaram que arranjaram o casamento porque eram pobres. Mas o menino insistiu que isso estava errado, melhor seria que ela fosse estudar. Insistiu tanto, o casamento foi cancelado e a menina permaneceu na escola.
Na Austrália, todos os escalões da Polícia do Estado de Vitória receberam formação em direitos humanos. O resultado foi uma série de mudanças em seus procedimentos de prisão, investigação e custódia. As queixas sobre violações de direitos humanos diminuíram, os policiais ganharam a confiança da população.
Esse documentário é exemplar: mostra como o despertar de uma única pessoa para o valor de sua existência e a dos outros acende a noção real dos direitos humanos na mente do indivíduo e fortalece uma cultura mais ampla desses direitos.
Há alguns anos, conversei com o historiador americano Dr. Vincent Harding, que lutou ao lado do Dr. Martin Luther King Jr. (1929—1968) no Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos entre 1950 e 1960. Ele enfatizou que o objetivo da luta do Dr. King não foi simplesmente para eliminar a injustiça e a opressão, mas para criar uma nova realidade.46 Também acredito que isso seja elemento essencial na construção de uma cultura dos direitos humanos.
Proponho a inauguração de centros regionais de educação e formação em direitos humanos junto aos Centros Regionais de Expertise, para colaborar com a Universidade das Nações Unidas na promoção da Década das Nações Unidas em Educação para o Desenvolvimento Sustentável. No mundo todo, existem 101 centros que são parceiros: universidades, ONGs, grupos comunitários locais e pessoas interessadas.
Um sistema semelhante para educação em direitos humanos pode envolver as comunidades que demonstraram melhores práticas e também as que se esforçam para melhorar as suas condições, apesar dos severos e históricos problemas de abuso destes direitos.
As comunidades que passaram por dificuldades e sofrimentos têm potencial único para transmitir poderosa mensagem de esperança e incentivo para outras comunidades que lutam contra situações semelhantes. Elas também podem contribuir para a criação de uma cultura dos direitos humanos, na medida em que as pessoas os vivem como uma realidade tangível.

Os direitos das crianças


As crianças de hoje desempenham, inevitavelmente, um papel crucial na construção da cultura dos direitos humanos. Para protegê-las, com melhores condições de vida, é fundamental que todos os países ratifiquem a Convenção sobre os Direitos da Criança e Protocolos Facultativos e aprovem a legislação interna necessária ao cumprimento de suas obrigações.
Esta Convenção de 1989 é a mais universal de todas as convenções de direitos humanos aprovadas pelas Nações Unidas, ratificada por 193 países até o momento. A fim de evitar graves violações, dois protocolos opcionais foram inseridos em 2000: o envolvimento de crianças com idade inferior a 18 anos em conflitos armados e o tráfico de crianças, prostituição e pornografia infantis. Um terceiro Protocolo Opcional, adotado em dezembro de 2011, permite às próprias crianças denunciar violações a seus direitos.
Na prática, é comum a ignorância dos direitos enunciados nesta Convenção, até violados em virtude da promulgação equivocada da legislação nacional, que não prevê a ratificação dos Protocolos Facultativos, e pela falta de conscientização do povo.
Fico impressionado com as palavras de Ishmael Beah, sobrevivente da traumática experiência de criança-soldado durante a guerra civil em Serra Leoa, sua terra natal, e agora poderoso defensor dos direitos das crianças.
Beah participou de uma conferência nas Nações Unidas quando tinha 16 anos e pela primeira vez ouviu falar da Convenção sobre os Direitos da Criança. Ele descreve essa experiência reveladora: “Lembro-me de como aquele conhecimento reacendeu o valor de nossa vida e de nossa humanidade, especialmente para nós que viemos de países devastados pela guerra”.47
Ele revela:
A minha existência foi enriquecida pelos artigos 12 e 13, que garantem às crianças e aos jovens o direito de expressar abertamente seus pontos de vista sobre assuntos que os afetam e “de procurar, receber e transmitir informações importantes” por todos os meios de comunicação, enriqueceram a minha existência. Esses artigos têm ajudado muitas crianças a se tornar participantes ativas na busca de soluções para os seus problemas.48
Peço a todos os países que defendam essa Convenção, dando ênfase ao interesse da criança, e que este documento sirva de inspiração para a geração mais jovem e a desperte para o seu valor próprio e, assim como Ishmael Beah, seja uma fonte de esperança para a vida.
Uma geração educada numa sociedade imbuída desse espírito será uma presença transformadora e certamente cultivará esse mesmo espírito nas gerações vindouras. O Preâmbulo da Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança , de 1924, precedente histórico-chave e inspiração para a atual Convenção, estabelece que “a humanidade deve dar à criança o que tem de melhor”.49
A garantia de que este nobre juramento será transmitido de uma geração para a outra edifica a cultura dos direitos humanos como o eixo central em torno do qual gira a sociedade.

Amizade duradoura entre China e Japão


Por fim, desejo repartir alguns pensamentos sobre o que fazer para aliviar as tensas relações entre China e Japão — a curto e longo prazos. Persevero em minha convicção de que a resolução dessa questão é indispensável à construção de uma sociedade mundial de paz e de coexistência.
O ano passado marcou o quadragésimo aniversário da restauração das relações diplomáticas sino-japonesas. No entanto, uma série de eventos e de intercâmbios comemorativos dessa data foram cancelados ou adiados em razão de crescentes atritos. As relações entre os dois países se deterioraram após a Segunda Guerra Mundial e as relações econômicas esfriaram significativamente.
Não sou pessimista sobre o futuro das relações sino-japonesas. De acordo com a máxima chinesa: “Gotas de água podem furar até uma rocha”. A amizade entre o Japão e a China tem sido alimentada no período do pós-guerra exatamente na forma do adágio e graças aos esforços de dedicados pioneiros, que mesmo antes da normalização das relações diplomáticas, trabalharam tenazmente para romper os obstáculos entre os países. Estes laços de amizade foram fortalecidos pelos incontáveis intercâmbios ao longo dos anos, que não serão desfeitos facilmente.
Quando clamei pela normalização das relações diplomáticas sino-japonesas em setembro de 1968, era quase impensável, no Japão, sequer mencionar a possibilidade de amizade com a China. A situação era ainda mais grave do que hoje. Mas minha crença era de que o Japão não teria futuro sem a amizade de seus vizinhos e que laços estáveis e harmoniosos com a China seriam essenciais para a Ásia e o mundo avançarem no caminho para a paz.
Em 1972, as relações diplomáticas afinal foram normalizadas. Seis anos depois daquele meu pedido inicial, em dezembro de 1974, pude visitar Pequim e me encontrar com o premiê chinês, Zhou Enlai (1898—1976) e o vice-premiê Deng Xiaoping (1904—1997). Nos diálogos com essas personalidades, aprendi que eles viam tanto os japoneses como os chineses vítimas do regime militar japonês.
Isso aprofundou ainda mais o meu objetivo de promover a amizade indestrutível entre os dois povos a fim de impedir que uma guerra entre nossas nações voltasse a acontecer.
A partir de então, tenho me dedicado com paixão à promoção de intercâmbios de amizade, especialmente entre os jovens . Em 1975, fui avalista dos primeiros seis estudantes intercambistas, recebidos pela Universidade Soka, financiados pelo governo da República Popular da China. Agora, quase quarenta anos depois, cem mil estudantes chineses estudam no Japão e quinze mil estudantes japoneses estudam na China.
Ao longo dos anos, China e Japão criaram uma história de intercâmbios culturais, educacionais e em muitos outros campos, incluindo a criação de 349 cidades-irmãs. Criamos também uma tradição de apoio mútuo em momentos difíceis como no terremoto de 2008 em Sichuan e no terremoto de 2011 no nordeste do Japão. Apesar dos períodos ocasionais de tensão, os elos de amizade entre os dois países crescem fortes.
Estes laços se formam pelas amizades que nascem de inúmeras relações de coração a coração e de intercâmbios, cada qual com a sua contribuição, que mesmo pequena é de valor inestimável. Por esta razão, não se desfazem facilmente, resistem a desafios e obstáculos. Cabe a nós garantir que se mantenham fortes.
Em palestra na Universidade de Pequim, em maio 1990 , insisti neste ponto: “Não importa que surjam questões entre nós, os laços de amizade não devem ser rompidos”.50 Agora, mais do que nunca, devemos reafirmar esta convicção.
As arenas políticas e econômicas são sempre influenciadas pelos fluxos e refluxos dos tempos. Na verdade, os momentos de tranquilidade são exceções e não a regra. Quando estamos diante de uma crise, o que importa é manter inflexíveis as duas promessas centrais do Tratado de Paz e Amizade entre o Japão e a República Popular da China (1978): evitar o uso ou ameaça de força e não recorrer à hegemonia regional.
Enquanto preservarmos estes princípios, encontraremos infalivelmente formas de superar a crise atual. Ainda que nem tudo corra bem, a sabedoria é encontrar nas adversidades ocasiões propícias ao aprofundamento da compreensão e fortalecer os laços. Incentivo vividamente o Japão e a China a reafirmar o seu compromisso de defesa das duas promessas do Tratado de Paz e Amizade e criar um fórum de alto nível para um diálogo destinado a impedir a deterioração das relações.
A primeira ordem de trabalhos para esse fórum deve instituir uma moratória sobre todas as ações interpretadas como provocadoras. Deve-se seguir uma análise minuciosa dos passos de evolução do confronto — como as ações foram percebidas e as reações foram provocadas. Isso facilitaria o desenvolvimento de diretrizes para respostas mais eficazes em caso de futuras crises. Sem dúvida, algumas nítidas diferenças de opinião poderão surgir, mas se decidirmos enfrentar a divergência nos mesmos termos, então a esperança de restauração das relações amistosas entre os dois países — para maior estabilidade na Ásia e por um mundo de paz — continuará sendo uma ilusão.
Logo após o fim da Guerra Fria, em julho de 1990, encontrei-me pela primeira vez com o então presidente soviético Mikhail Gorbachev . Abri a conversa: “Vim para debater uma questão com você. Vamos soltar faíscas, falar sobre muitas coisas de maneira aberta e honesta, para o bem da humanidade e das relações nipo-soviéticas!”. Falei assim para deixar clara a esperança de uma discussão real e franca em vez de uma reunião meramente formal, num momento em que eram incertas as perspectivas para as relações entre o Japão e a União Soviética.
Quanto mais difícil a situação, mais necessário é o diálogo coerente, comprometido em manter a paz e a convivência criadora. O diálogo caloroso e sério pode revelar emoções — cuidados, preocupações, interesses — que sustentam as posições de cada lado.
Dentro desta realidade, proponho que a China e o Japão instituam a prática regular de reu­niões de cúpula.
Janeiro marca o cinquentenário da assinatura do Tratado do Eliseu pela França e pela Alemanha. Tratado importante: ajudou os dois países a superar a sua história de guerras e derramamento de sangue, a manter relações cada vez mais próximas, com encontros de chefes de Estado e de governo, pelo menos duas vezes por ano e reuniões ministeriais, pelo menos uma vez a cada três meses, para tratar de assuntos sobre negócios estrangeiros, defesa e educação. A meu juízo, a atual crise entre Japão e China é uma oportunidade para a construção de um quadro semelhante, criando uma atmosfera que conduza os seus líderes a um diálogo frente a frente em qualquer circunstância.
Sugiro que o Japão e a China fundem em conjunto uma organização para a cooperação ambiental na Ásia Oriental. Seria um objetivo provisório para 2015 e assentaria as bases de uma nova parceria voltada para a paz e a convivência criadora e de uma ação conjunta para o bem da humanidade.
A melhoria das condições ambientais beneficiaria os dois países. Esta nova organização criaria oportunidades para que os jovens da China e do Japão trabalhem juntos com um objetivo comum. E ainda estabeleceria um padrão de contribuição conjunta para a paz e estabilidade do leste da Ásia e da criação de uma sociedade mundial sustentável.
Quando pedi a normalização das relações diplomáticas em setembro de 1968, exortei os jovens de ambos os países a se unir num laço de amizade para construir um mundo mais digno da condição humana . Creio que a sua base já foi assentada tranquilamente e sem cerimônias por meio de interações que até hoje se realizam.
Agora, creio que o foco deve se voltar para algo mais visível e duradouro. Chegou a hora de medidas de médio e longo prazos e de modelos mais concretos de cooperação em novos campos. Estou convencido de que, com esses esforços contínuos e determinados, os laços de amizade entre China e Japão crescerão como algo indestrutível que será transmitido com orgulho de geração a geração.

Uma fortaleza de solidariedade


Dei nesta proposta a minha visão e sugeri ações que considero vitais para a construção de uma sociedade mundial de paz e coexistência nestes anos que nos conduzem a 2030. A chave para a concretização destes objetivos reside, em última instância, na solidariedade entre os cidadãos comuns.
Em sua obra Sistema Educacional de Criação de Valores, o primeiro presidente da Soka Gakkai, professor Tsunessaburo Makiguti (1871—1944), ponderou por que, com raras exceções, o esforço de pessoas decididas a corrigir os males sociais acaba falhando:
Ao longo da história, pessoas de boa vontade sempre foram perseguidas. Outras, de bom coração, podem até simpatizar com a causa, mas temerosas, incapazes de participar, permanecem espectadoras, enquanto as lutadoras fracassam. Pelo estreito sentido de autopreservação da vida de cada um deles, estes espectadores, não passam de meros elementos constitutivos da sociedade, sem qualquer influência mobilizadora que evite a sua desintegração.51
O objetivo de Makiguti ao fundar a Soka Gakkai, com o meu mestre Jossei Toda a seu lado, era quebrar esse trágico padrão da história humana. Transcendendo os estreitos impulsos de autopreservação, levantaram-se para criar uma fortaleza de solidariedade, feita de pes­soas que agem para proteger a dignidade da vida humana. Esta fortaleza hoje se espalha por 192 paí­ses e territórios.
O ano de 2030 será o marco histórico dos esforços para a cooperação internacional. Marcará também o centenário de fundação da Soka Gakkai. Na esperança de grandes significações, vamos aprofundar a solidariedade entre os povos do mundo, trabalhando lado a lado pelo desenvolvimento sustentável, em benefício da vida das gerações vindouras .
Revisão: Thiago de Mello Tradução: Mariana Ballestero Sales Vieira Colaboração: Maria Alice da Costa e Edson Cruz

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