Redução Da Maioridade Penal
Gustavo Bregalda[1]
Particularidade própria de
países compostos de instituições em fase de
desenvolvimento é a discussão
de temas que em tempos de normalidade social ficam
esquecidos. Esses temas acabam
eclodindo com determinados acontecimentos que
atingem fulminantemente o
senso comum e exigem do Estado justificativas e respostas
imediatas. Assim, é objeto de
diversos debates a redução da maioridade penal como
solução para a epidemia de
práticas criminosas envolvendo menores.
Os defensores da tese em
questão apresentam fundamentos que, por mais que
acalentem a animosidade social
com discursos politicamente corretos, se apresentam
ineficazes. Não se pode partir
da análise da conseqüência antes de passar pela gênese do
problema. Deve-se apresentar
uma solução para a origem da questão e, posteriormente,
criar soluções para os atos
subseqüentes.
A redução da maioridade não é
a resposta adequada para a onda de violência
crescente que assola os
grandes centros nacionais. A ineficácia da solução apresentada
pode ser visualizada por meio
do estudo de algumas legislações alienígenas, cuja
maioridade varia de acordo com
os valores sociais adotados. No contexto social, verificase
que a redução da maioridade
não seria uma saída consistente para os fins a que essa
proposição é destinada. A
violência não se aquietará, mesmo se a maioridade fosse fixada
no limite inicial da
existência humana. A posição pela redução alicerça-se mais em um
viés político do que,
necessariamente, na resolução do problema social de criminalidade.
A diminuição da violência na
sociedade não ocorrerá com a simples redução da
maioridade penal. É necessário
que haja o fortalecimento de instituições fundamentais à
implementação do mínimo
existencial garantido constitucionalmente ao cidadão. A
Constituição Federal (CF) de
1988 confere ao Estado, por intermédio de normas
programáticas, o dever de
implementar direitos por ela estabelecidos, materializando-se
por meio de atos de gestão
administrativa e elaboração de normas infraconstitucionais
como meio regulador de seu
exercício.
A violência, dentre outros
motivos, está ligada à pobreza, à miséria cultural e ao
enfraquecimento do Estado
Democrático de Direito. Sabe-se de antemão que a maioria
dos internos de instituições
que visam à reeducação de menores é habitante de regiões
marginalizadas socialmente e
de alta periculosidade criminosa. Regiões essas que
ultrapassam os limites
temporais da história.
A redução da maioridade penal
em nada vai modificar a nossa realidade atual.
Sabemos que o sistema
prisional não vem contribuindo muito para a ressocialização do
criminoso adulto, tendo,
muitas vezes, efeito contrário a esse intento. Ao adolescente, os
efeitos serão ainda mais
danosos, uma vez que ele não possui o mesmo poder de
discernimento de um adulto,
por se constituir pessoa em formação, em estágio de
desenvolvimento físico e
mental.
Para tanto, faz-se necessária
uma boa aplicação dos institutos e das leis já existentes,
como o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA). Vale esclarecer, ainda, que são
indispensáveis a promoção e a
efetivação dos direitos fundamentais e sociais previstos na
Constituição, fortalecendo-se,
assim, o Estado Democrático de Direito, e também garantir
o mínimo existencial ao
cidadão. Isso pode ser feito por meio de políticas públicas,
conseguindo-se, desse modo,
atingir o desígnio, esperado pelos cidadãos, de habitar uma
sociedade mais justa e,
conseqüentemente, menos violenta.
Dessa forma, não basta a
simples redução da maioridade como o remédio de todos os
males. Deve haver sim uma
influência positiva na formação cultural de cada cidadão, em
especial dos marginalizados,
promovendo o seu desenvolvimento e a sua integração
social.
A imputação criminosa ao
adolescente não é a melhor saída para que se promova o
recuo dos números da violência
em nosso País. Além de ineficaz aos fins a que se propõe,
pode ser vislumbrada a
inconstitucionalidade do ato legislativo o qual traga em seu bojo
esse específico conteúdo de
redução.
Ninguém nasce criminoso. O
meio amolda seus integrantes de acordo com as
circunstâncias de vida que
lhes são proporcionadas. Essas circunstâncias, no entanto, não
compõem motivo legítimo para
justificar práticas delituosas, mas também não podemos
olvidar o fato de que a maior
parte dos adolescentes que têm ou já tiveram passagens
criminosas é a mesma que ocupa
os quadros da indigência, da injustiça social.
Ao Estado, foi imposto o dever
de zelar pelo cidadão, em especial por intermédio das
políticas públicas, geralmente
elencadas nas inúmeras normas programáticas transcritas
no corpo da Constituição, cuja
efetividade está pendente da edição de atos
infraconstitucionais, e também
da gestão administrativa. Todas essas normas e deveres
previstos no diploma
constitucional têm por escopo impor ao Estado o dever de
materialização do conteúdo do
princípio da dignidade da pessoa humana, sendo esse
fundamento da nossa República
(art. 1.º, III, da CF).
O valor implícito do princípio
da dignidade da pessoa humana consiste na imposição
ao Estado do dever de
abstenção (não violar ou restringir injustificadamente direitos
fundamentais) e do dever de
práticas positivas (complementação das normas
programáticas de modo a garantir
o mínimo existencial).
Tem-se, de longa data, a
omissão do Estado no que se refere à prática de atos de
viabilização das normas
constitucionais garantidoras de direitos fundamentais. Grande
parte da população é excluída
do digno convívio social, criando, assim, o desnivelamento
de classes e ferindo, por via
conseqüencial, o objetivo estampado no art. 3.º, III, da CF.
Diante desse quadro, surgiu,
na camada marginalizada da população, um núcleo de
violência que atinge toda a
coletividade. Esse fenômeno é a reação promovida pelos
esquecidos perante o desprezo
a eles manifestado pelo Estado.
Com efeito, a redução da
maioridade penal, em contraponto com a Constituição
Brasileira, configura uma
restrição ao direito fundamental da liberdade, previsto no art.
5.º da Lei Suprema. Cumpre
ressaltar, também, que é direito fundamental do cidadão,
além de todos aqueles
arrolados no art. 5.º da CF, outros decorrentes de princípios e
regras por ela adotados.
O Prof. René Ariel Dotti
manifesta-se pela inconstitucionalidade da redução da
maioridade, uma vez que, para
ele, a previsão da inimputabilidade prevista na CF
constitui uma das garantias
fundamentais da pessoa humana, embora topograficamente
não esteja incluída no
respectivo Título II do diploma constitucional. Incabível, portanto,
ser objeto de emenda, pois
constitui cláusula pétrea, visto que o § 4.º do art. 60 prescreve
não ser objeto de deliberação
a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e as
garantias individuais.
Nesse sentido, ensina-nos o
Prof. Damásio de Jesus que a menoridade penal constitui
causa de exclusão da
imputabilidade, estando abrangida pela expressão “desenvolvimento
mental incompleto”. Assevera
ainda que “[...] se a imputabilidade consiste na capacidade
de entender e de querer, pode
estar ausente porque o indivíduo, por questão de idade, não
alcançou determinado grau de
desenvolvimento físico ou psíquico, ou porque existe em
concreto uma circunstância que
a exclui”.
Para alguns doutrinadores, em
que pese a existência de texto expresso de nossa
Constituição referente à
maioridade penal, esse fato não impede, caso haja vontade
política para tanto, de ser
levada a efeito tal redução, uma vez que o art. 228 da Carta
Política não trata de matéria
considerada irreformável por meio de Emenda
Constitucional, pois não se
amoldaria ao rol de cláusulas pétreas dispostas nos incs. I a
IV do § 4.º do art. 60 da CF.
Ocorre, no entanto, que o rol
de direitos e garantias individuais previstos, em
especial, no art. 5.º da CF,
e, conseqüentemente, abrangido como cláusula pétrea pelo art.
60, § 4.º, é meramente
exemplificativo. Qualquer ato antagônico ao princípio da
dignidade da pessoa humana
consiste na violação a um direito fundamental, esteja ele
topograficamente descrito ou
não no art. 5.º ou mesmo na própria Constituição do Brasil.
José Afonso da Silva trata a
dignidade da pessoa humana como o valor supremo que atrai
o conteúdo de todos os
Direitos Fundamentais do Homem.
O recuo nos números da
criminalidade envolvendo menores infratores, seja nos
grandes centros, seja no
interior do Brasil, ocorrerá com a eficaz implantação das
políticas que promovam a
valorização do indivíduo como um verdadeiro cidadão. A
redução da maioridade em nada
influenciará no sistema com o qual nos deparamos
hodiernamente. Pelo contrário,
pessoas em desenvolvimento psíquico terão o mesmo
tratamento penitenciário
dispensado àqueles com capacidade de discernimento pleno e
com personalidade já maculada,
proporcionando certa confusão de valores e gerando um
círculo vicioso de erros e
conseqüências futuras. É notório que o sistema penitenciário
brasileiro tem um baixo índice
de ressocialização. Verifica-se que, caso seja adotada a
aludida medida, teremos um
verdadeiro retrocesso em relação aos direitos e às garantias
conferidos ao menor pela
Constituição, destacando-se, dentre eles, o art. 227, o que
produzirá um específico grau
de invalidade da norma perante o sistema constitucional.
A solução das mazelas sociais
e, em especial, dos atos criminosos praticados por
menores de 18 anos envolve um
conjunto de atos efetivos de alçada, simultaneamente, do
poder público e da sociedade
em geral. A precipitação e a discussão infundada,
enfatizada por argumentos
desarrazoados, podem desestruturar ainda mais a sociedade. A
redução da maioridade penal
pode consistir em um verdadeiro retrocesso na política
penitenciária brasileira. Ao
menor, cabe a aplicação do ECA, que prevê regras
específicas, proporcionais e
adequadas à reeducação de pessoas em estágio de
desenvolvimento mental
personalíssimo incompleto.
[1] Juiz Federal em São Paulo
e Professor no Complexo Jurídico Damásio de Jesus.
Acesso em: 23 de agosto de 2007
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