A BANALIZAÇÃO DO MAL
“Não
peço nada, eu não quero me envolver,
Na rua nua em cada cara uma desgraça.
Há tanta gente procurando esquecer,
Que a vida é à-toa, a morte chega e tudo passa.
Na rua nua em cada cara uma desgraça.
Há tanta gente procurando esquecer,
Que a vida é à-toa, a morte chega e tudo passa.
Não
peço nada, eu não quero me envolver,
Até a lua tem as nuvens por mordaça.
Assassinada mesmo antes de nascer,
A esperança sobe aos céus como fumaça.”
Até a lua tem as nuvens por mordaça.
Assassinada mesmo antes de nascer,
A esperança sobe aos céus como fumaça.”
In:
Um Grito Parado No Ar – de Toquinho e Gianfrancesco Guarniere
A
mulher é assassinada pelo ex companheiro que não aceita a separação. Família de
policiais é dizimada numa única noite. Policiais e juízes honestos são
exterminados. Moradores de favelas desaparecem nas mãos da polícia que deveria
promover a “pacificação”. Adolescente mata colega por ciúmes do namorado. Homem
que denunciava extratores ilegais é abatido em emboscada. Mulher mata mãe de um
recém-nascido para sequestrá-lo. Gays são supliciados em plena avenida
Paulista. Mulheres são perseguidas, violentadas e mortas.
Mata-se
da mesma forma com que se exterminam baratas.
E
seguimos assistindo, entre perplexos e horrorizados, uma violência imensa e
crescente contra inocentes e vulneráveis seres humanos.
A
filósofa Hannah Arendt nos alertou para o fato de que por trás de todo o mal
existem pessoas banais escondidas em seus gabinetes. Frisou que o mal carrega
em si o potencial de se espalhar como um fungo e que isso só acontece por causa
da incapacidade das pessoas pensarem sobre o que está ocorrendo de fato. Sobre
o que elas e seus pares estão fazendo de verdade. No fundo, sobre as
consequências de seus atos.
Propôs,
enfim, que deixássemos de enxergar banalidade em qualquer forma de mal
concebendo, enfim, a espantosa pluralidade da condição humana. Que prestássemos
muita atenção na perigosa banalização do mal.
O
que vemos hoje é a institucionalização do mal, democraticamente distribuído
entre os poderes constituídos e absolutamente mergulhado em um sistema político
que promove a violência e a coerção – que são aceitas como “parte integrante”
do processo civilizatório monopolizado pelo Estado que, em nome de
salvaguardar-se, institucionaliza e burocratiza o mal.
A
audiência da novela das nove onde destacam-se e, de certa maneira, enaltecem-se
comportamentos pouco éticos e profundamente amorais da esmagadora maioria dos
protagonistas, é um exemplo bastante contundente deste panorama. Ali, de tudo o
que há de ruim existe um pouco: a mocinha pobre que sonha em dar golpe da
barriga incentivada pela mãe que, provavelmente, se prostituiu na juventude; o
jovem médico que flerta com o chefe homossexual para subir de posto; a médica
que registra ilegalmente uma criança e, depois, provoca a morte de uma
enfermeira; o irmão que joga o sobrinho no lixo; o médico que trai a esposa
reiteradas vezes; a esposa que tolera tais mal tratos; o estudante carreirista
que usa uma mulher mais velha para se dar bem; a moça gordinha desesperada para
transar; a prostituta que casa com o filho homossexual do amante; a secretária
que dá o golpe…. são tamanhas sandices e mau-caratismos que torna-se
desnecessário continuar a contar.
A
degradação humana, filtrada por oportunistas critérios de classe – que tantas
vezes apontam para a responsabilidade da miséria e do crime ‘que descem a
favela’, fechando os olhos para os motivos que fizeram a miséria e a favela
existirem – é ainda revertida como sucesso de público para o espetáculo
humano que, à moda de uma tragédia grega, é mostrado pelos canais de TV ao
vivo e em cores, alcançando uma plateia anestesiada e incapaz de articular
causas e consequências.
E
por que ficamos tão reduzidos em nossa capacidade crítica frente a claros e
flagrantes exemplos de violência e injustiça?
psíquico
não tem condições de elaborar a visão de um episódio violento sem ser atingido
de maneira brutal na sua essência. Logo, numa ação de autodefesa, nosso
psiquismo passa a observar a cena como se esta fizesse parte de uma novela,
como se não fosse real. E toda a reflexão crítica daquele ato em si fica
comprometida ou nem sequer é realizada.
Em
outras palavras: cada vez que uma cena de violência é exaustivamente
apresentada na televisão, por exemplo, nosso psiquismo a captura com o mesmo
impacto. Todas as vezes – e como se fosse a primeira vez. Isso traz
repercussões psíquicas. Podemos nos tornar fóbicos, neuróticos, delirantes ou,
simplesmente, alienados.
Nesta
medida é possível sentir-nos bons e justos diante de um mundo mesquinho
e cruel, como se não fizéssemos parte deste universo. Há uma certa
descarga emocional quando experimentamos esta (aparentemente) confortável e
distante visão do ‘mal alheio’. Porém, é justamente ela que nos faz permanecer
imobilizados. Temos, daí, a impressão de que tudo ‘aquilo’, que obviamente é
errado e insano, pertence ao outro; e tal consciência parece suficiente para
nos fazer adquirir algum mérito moral.
Não
nos envolvendo com o mal, tornamos-nos parte dele no que ele traz de mais
nefasto: o silêncio.
E,
então, matar torna-se banal.
O
pai que mata a filha. O vizinho que mata o síndico. A mãe que mata o marido. O policial
que mata o suspeito. O filho que mata a avó. O operário que mata o supervisor.
O assaltante que mata a vítima. O patrão que mata a empregado.
O
suspeito chega na delegacia e é torturado para falar o que desejam que conte.
Ele não fala e morre sob tortura. Se você não fizer o que se exige alguém pode
lhe matar. Sua vida não tem quase nenhum valor. Se você for pobre este valor
torna-se ainda menor.
E,
deste jeito, a vida perdeu grande parte do seu significado único e sagrado.
A cultura do medo, associada à cultura do mal, transformou esta magnífica e
preciosa experiência em algo cada vez mais habitualmente descartável.
Por
isso, é urgente que, neste processo de naturalização da sociedade e de artificializarão
da natureza, a coletividade reencontre o criativo olhar para si e para o
mundo, de uma maneira dinâmica e dialética. Propondo-se a dissolver tanto mal e
tornar a violência um dos atos finais do intolerável clima de cumplicidade que
impera nesta sociedade selvagem e indiferente.
Que
os bons parem de fazer a cômodo moderação perante o barulho dos maus!
Ou
continuaremos morrendo como cavalos.
Afinal,
como diria Horace McCoy em seu romance retratando o auge da depressão
norte-americana quando a maioria da população, sofrendo com o desemprego,
carecia de uma vida digna, “They shoot horses, don’t they? ” (Eles não
matam cavalos?)
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