O amor libera,
não encarcera
Por Daisaku
Ikeda
Para
qualquer pessoa saudável, é muito natural apaixonar-se assim como é para as
plantas florescer na primavera. Mesmo sendo livres para nos apaixonar ou para
nos sentirmos atraídos por alguém e, embora a ninguém seja correto invadir os
assuntos alheios, eu gostaria de explicar o quanto é importante não perder de
vista o esforço pelo nosso desenvolvimento pessoal. Claro que no amor não há
regras, assim como no matrimônio e ninguém tem o direito de restringir o outro
de maneira alguma. Mas causa muita pena ver uma mulher envolvida em relações
frívolas causadoras de sofrimentos e angústia, quando deveria ser plenamente
satisfeita e feliz. Meu mestre dizia que quando uma mulher estabelece relações
partindo de sua própria dignidade, todos os problemas se resolvem. Ao
contrário, quando uma mulher adota uma atitude impensada, e toma o amor de
maneira apressada, invariavelmente termina por lamentar-se e sofrer. Por
suposto, isto não se aplica apenas às mulheres. Para
mim, o amor deveria ser uma força para nos ajudar a expandir nossa vida e fazer
emergir nosso potencial com nova vitalidade. Mas, ainda que isto seja o
ideal, muito freqüentemente perdemos a objetividade ao nos apaixonar. No
entanto, há perguntas que valem a pena fazer: "Essa
pessoa me inspira desejos de trabalhar mais e melhor ou me distrai do que tenho
que fazer? Sua presença me estimula a redobrar adedicação a minhas atividades,
a ser uma pessoa melhor? Ou esta pessoa se converteu no centro de minha vida e
tende a obscurecer todo o resto?"
Se
estão descuidando de sua missão na vida, se devido a uma relação sentimental
esquecem o propósito de sua existência como sujeitos autônomos, temo que tenham
tomado um caminho equivocado. Em uma relação saudável, cada membro do casal
anima o outro a alcançar suas metas.pessoais e ao mesmo tempo compartilham os
mesmos sonhos e aspirações.Uma relação de amor deve ser
motivo de inspiração, vitalidade e esperança. Em vez construir um
relacionamento fechado, um mundo onde só há um lugar para dois, é muito mais
saudável que cada um aprenda com as virtudes e qualidades do outro e mantenha o
esforço de aprimorar-se e desenvolver-sea si mesmo. Antoine de Saint-Exupéry,
autor de O Pequeno Príncipe, escreveu:" O amo rnão consiste em
duas pessoas que olham uma para outra, mas sim em duas pessoas que olham juntas
para a mesma direção." Mesmo que alguém use o amor como fuga,
a euforia não durará por muito tempo. O choque com a realidade trará dores e
tristezas. Dito de outra forma, não há como fugir de si mesmo. Quando uma
mulher persiste em sua própria fragilidade interior, o sofrimento a perseguirá
por onde quer que ela vá. É duro reconhecer, mas nenhum ser humano pode
encontrar a felicidade se não começar por transformar o seu interior. Além
disso, a felicidade não é algo que alguém possa dar aos outros; não é algo que
o ser querido venha a nos outorgar. Cada um tem que construí-la por seus
próprios meios. E a única maneira de fazê-lo é desenvolvendo nossa personalidade
e nossos valores como seres humanos, desdobrando-nos ao máximo em nosso
potencial interior. Muitas vezes, em nome do amor,sacrificamos nosso
próprio crescimento e nossas capacidades, porém, dessa forma, jamais haverá uma
felicidade que resulte convincente e satisfatória. Ainda que minhas
palavras pareçam estritamente paternais, gostaria de dizer algo sobre as mulheres jovens que têm a tendência a ser vulneráveis à
sedução de seu parceiro. Quando isso acontece, a mulher exibe um aturdimento,
uma percepção distorcida das coisas, que a leva a se comportar como se houvesse
perdido a faculdade de tomar decisões equilibradas e serenas. Como
geralmente são as mulheres que saem mais feridas, creio que têm todo o direito
do mundo de valorizar ainda mais sua dignidade e abuscar seu bem-estar de forma
irrenunciável. Por essa razão, penso ser fundamental às mulheres jovens
fortalecerem o respeito em direção a si mesmas e adquirirem uma sólida força
interior.Quando uma mulher busca aprovação, constantemente, não faz nada mais
do que degradar-se frente a si mesma e às demais pessoas. Se num contexto
amoroso, não se sentem tratadas como pede seu coração, espero que atuem com
coragem e dignidade: é melhor correr o risco de estar só por um tempo,
antes de aceitar uma relação que as façam infelizes.O amor
verdadeiro não nos torna dependentes das pessoas. Ele só pode ter lugar entre
dois seres humanos fortes e seguros de sua individualidade.Quem possui uma
visão egoísta e uma visão superficial da vida só poderá construir relações
superficiais. Se querem experimentar o amor verdadeiro, não têm por que
submeter-se ao que o outro deseja que façam ou fingir ser quem não são. O amor
ideal só é possível entre duas pessoas sinceras, maduras e independentes.Os
ingleses têm um provérbio que encerra uma certa cota de sabedoria: "Abrir os olhos antes do matrimônio e semi cerrá-los
depois de casar-se."Tanto o marido como a mulher devem esforçar-se
para serem tolerantes, e para terem um coração magnânimo na hora de perdoar as
faltas e erros menores que comete o companheiro. Quando alguém é julgado e
criticado o tempo todo, custa muito ter desejos de mudança, mesmo sabendo que a
crítica é pertinente.Há uma outra história que diz muito sobre o amor entre
marido e mulher. Recomendo que leiam o conto "O Presente de Natal",
de O. Henry. Nele o autor conta a história de Della e Jim, um casa jovem e
pobre, que vivia em um quarto alugado, quase sem móveis. Era véspera de Natal,
e ambos estavam pensando que presentes iam dar um ao outro, como mostra de seu
amor. Ela queria presentear seu marido com uma corrente para prender ao relógio
de ouro que herdou de seu avô e que lhe causava tanto orgulho. A corrente
custava vinte e um dólares mas ela só tinha oitenta e sete centavos. A única
coisa que podia vender eram seus cabelos castanhos, de brilho intenso e tão
compridos que chegavam até os joelhos. Para Della, como para quase toda mulher,
os cabelos são um atributo feminino muito apreciado. Mas fez osacrifício de
vendê-los a um fabricante de perucas e com o dinheiro comprou uma magnífica
corrente de prata.Chegou em casa com o coração na boca e aguardou,
ansiosamente, o regresso do marido. Quando ele a viu, com uma expressão muito
séria, lhe entregou o presente que lhe havia comprado: um par de lindos enfeites
de tartarugas marinhas para adornar seus cabelos. Della, então, tratou de
consolá-lo assegurando-lhe que eles cresceriam depressa enquanto lhe davaa
corrente de prateada. Jim desmanchou-se no sofá e lhe disse, com uma risada:
"Della, guardemos nossos presentes de Natal por um tempo. São belos demais
para que o usemos agora. Vendi meu relógio para comprar-lhe os
enfeites".Nesta história, cômica e patética, os presentes são um símbolo
do amor profundo que existe entre os dois. Cada um sacrificou algo muito
querido para comprar para seu companheiro um presente apropriado. Mas ao trocar
os pacotes, vêem que não há mais relógio ao qual pendurar a corrente, nem há
mais cabelos castanhos para adorná-los com os enfeites. Ambos os presente
tornaram-se inúteis para eles. Um casal jovem e moderno diria que se houvessem
tomado a precaução de conversar de antemão sobre os presentes, haveriam se
prevenido de um gasto inútil. Mas a história põe em relevo algo que transcende
esse tipo de lógica calculista: ilustra a beleza do amor profundo entre dois
seres que compartilham a vida.
O
amor indestrutível irradia a beleza de um destino compartilhado.
O
amor pode adotar um milhão de formas distintas. Às vezes, para quem olha de
fora, o marido parece ser insuportavelmente autoritário e, no entanto, o casal
se mantém unido com um grau de harmonia surpreendente. Em outros casamentos, a
mulher sempre parece impor sua vontade, e não obstante, a convivência
transcorre fluindo em clima de paz. Na realidade, as aparências externas não
são importantes. Tenho sentido, sempre, que quando um casal compartilha durante
um longo tempo as alegrias e os dissabores da vida, entre ambos se forma um
vínculo muito profundo, que não pode ser cortado por forças externas. Não estou
falando do amor direto e aberto que circulanum casal jovem, mas de um
sentimento muito vasto e profundo, arraigado em um destino compartilhado e
construído a dois.Tenho visto este tipo de amor em uns vinte ou trinta casais
mais velhos, e tenho sentido a atmosfera de indescritível plenitude e
maturidade que estas pessoas irradiam ao seu redor. Nestes casais, não
encontraremos as lamentações de certas pessoas idosas. E ainda que tenham tido
uma vida difícil, em seu rosto não há indício, nem um tom de tristeza. O que
transmitem é uma poderosa sensação de segurança de si mesmas e independência: a
que colheram duas pessoas que conseguem atravessar juntas as horas mais
difíceis da vida, agradecidas e conscientes do tempol hes resta para seguir
caminhando juntas.Em uma boa convivência, o apoio do companheiro se baseia na
valorização, na confiança e no agradecimento ao invés dos inimigos maiores que
atentam contra o desenvolvimento do ser querido: a queixa, o capricho, a
crítica e o menosprezo. Qualquer mulher que se baseie numa fé firme e
comprometida poderá desenvolver sua sabedoria inata e a manifestará com
palavras positivas e calorosas. Se me permitem uma observação, os benefícios de
um coração caloroso e encorajador só se têm a longo prazo, mas as conseqüências
de uma atitude fria, ingrata ou queixosa sente-se imediatamente.Nitiren
Daishonin disse que quando somos encorajados e
elogiados,desejamos nos sacrificar ilimitadamente e não economizamos esforços
para isso. Mas quando somos censurados, o ressentimento nos leva a causar a nossa
própria ruína. Tal, disse Buda, é o valor das palavras de
encorajamento.A fé se traduz em um coração profundo e sábio, propenso a
valorizar o esforço alheio e gerar boa vontade no ambiente ao seu redor. Esta
sabedoria encontra expressão de maneiras concretas, e é a que nos conduz a
mudar nosso enfoque quando estamos equivocados. Em suma, é o que determinauma
diferença crucial para a convivência: a que há entre oferecer soluções e
acrescentar problemas. Isso, falo como homem: quando o marido chega emcasa
extenuado e carregado de tensões, ao fim desta "guerra" que é luta
pelo sustento, lhe asseguro que o que mais necessita é atenção, diálogo e
encorajamento: estas são as coisas que permitem, no dia seguinte, seguir
desdobrando-se em seu esforço e sua capacidade. Ao mesmo tempo, quando os
filhos retornam da escola, o que desejam receber é a ternura e a harmonia de
sua mãe. Ao escutá-los e abraçá-los compaciência, ela consegue fazer com que
sintam que "está tudo bem", ainda que o dia de aula tenha sido povoado
de maus momentos e das dores decrescimento. `As vezes não saber detectar estas
duas funções leva as mulheres a descuidos, assoberbadas que estão pelos
atropelos da vida cotidiana.Eu entendo bem a situação: chegam extenuadas pelo
dia de trabalho e apenas têm forças para lutar contra o seu próprio cansaço.
Não lhes parece justo ter que atender, em primeiro lugar, os outros. O coração
de esposa e de mãe se fecha, e isso produz um dano para toda a família, como
uma instalação que fica sem um fio ligado à terra. Mas o amor é uma força muito
poderosa que a mulher leva consigo. Quando as mulheres saem em busca desse
coração e superam as tendências negativas, são elas mesmas as primeiras a se
sentirem melhor e, quase de forma instantânea, a família parece voltar a
resplandecer e a crescer em equilíbrio. A mulher é, por natureza, protetora da
vida e criadora de valores. Por isso protege e defende a paz e a harmonia,
consciente do muito que está em jogo. Essa função harmonizadora é um fator
primordial para edificar uma convivência frutífera e duradoura. É a chave do
casamento e do lar.
A harmonia é
felicidade em si mesma.
Se
a felicidade é o sentimento a que todos aspiramos em nossa vida individual,
então a harmonia é a forma que as pessoas têm de serem felizesquando estão
juntas, sejam apenas duas ou uma grande multidão. É a capacidade de harmonizar
os quatro estados baixos: Inferno, Fome, Animalidade e Ira. Quando nossa vida
joga âncoras em qualquer uma dessas condições subjetivas, não só é impossível
harmonizar, como também encontramos um certo gozo perverso no conflito e na
desarmonia. Nossa consciência moral nos diz que deveríamos harmonizar, nosso
coração nos adverte que estamos sofrendo, mas assim como em todo resto, nos
estados baixos sentimos apego pela confrontação e pela discórdia.Quando vivemos
sem quebrar os limites que nos impõe nossa debilidade,atuamos e reproduzimos
padrões de desarmonia., que não só se referem à conduta, como também às
palavras que saem de nossa boca e aos pensamentos que povoam nossa mente. Para
criar harmonia não basta fazer uma declaração de vontade nem empreender um
esforço intelectual. O desejo espontâneo e genuíno de harmonizar, de ser feliz
com os outros, só é possível quando elevamos o estado de Vida. Neste desafio
permanente, cada mulher faz emergir os recursos da Budicidade que leva consigo.
Na realidade, a harmonia entre os seres humanos não é um estado exterior nem é uma função das circunstâncias, senão o
esforço que nasce em cada um de nós. Por isso, mais que a harmonia, o que conta
é a capacidade de sua conquista que exige um trabalho permanente de
autodisciplina e de estrita observação interior. A ausência de harmonia produz
angústia e incerteza no coração da mulher. E sua causa fundamental é a ruptura
entre o "eu" e o resto do mundo. Quando estes laços se quebram, o
espírito cai até os estados mais baixos. As situações cotidianas se enchem de
sofrimento e as relações se contaminam de inimizade. A harmonia, pelo
contrário, produzuma alegria indescritível. O Sutra de Lótus elege uma imagem
perfeita paradescrever a harmonia, quando mencionamos a sincronia entre a dança
e a música. Nenhum de nós existe só; todas as pessoas que nos rodeiam são parte
de nós mesmos. Já que somos nós mesmos quem geramos e definimos nosso meio ambiente
circundante, nosso coração "salta de júbilo", "nos colocamos de
pé e nos lançamos a dançar", e assim "brincamos de felicidade".A
verdadeira harmonia jaz dentro da mulher. Não é algo que devemos esperar dos
outros nem que possa mandar que os outros a tenham. Por isso, o presidente
Josei Toda dizia: "A chave da união harmoniosa jaz
no espírito delevantar-se por decisão própria, sem depender de nada e nem de
ninguém."
Daisaku Ikeda é pacifista, escritor, filósofo, fotógrafo e poeta.
Também conhecidocomo "Embaixador da Paz", é presidente daSoka
GakkaiInternacional(SGI), uma ONG, com base budista, filiadaàs NaçõesUnidas,
que atua nas áreas da cultura, educação, paz,meio-ambiente,desarmamento nuclear
e apoioa refugiados de guerra.
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