Ensaio

A alvorada de esperança da civilização universal

Edição 534 - Publicado em 09/Fevereiro/2013 - Página 32
 
Comemorando os vinte anos da quarta visita do presidente da SGI, Dr. Daisaku Ikeda, ao Brasil, a TC publica seu discurso histórico, proferido na Academia Brasileira de Letras, em 12 de fevereiro de 1993, ocasião em que passou a ocupar a cadeira de número catorze do Quadro de Correspondentes da ABL.
O então ministro da Cultura, Antonio Houaiss (à esq.), e o presidente da ABL, Austregésilo de Athayde, concedem o certificado de membro correspondente da Academia Brasileira de Letras ao líder da SGI, Dr. Daisaku Ikeda, em 12 de fevereiro de 1993
O presidente da ABL, Austregésilo de Athayde, cumprimenta o Dr. Daisaku Ikeda após a posse como membro correspondente
ENCONTRO. O presidente Ikeda dialoga com o Dr. Chandra Wickramasinghe (primeiro à esq.) e seu mentor e colega, sir Fred Hoyle, em junho de 1991
O historiador Sérgio Buarque de Holanda se refere ao caráter do povo brasileiro como o de um ser cordial, hospitaleiro e generoso
Senhoras e senhores, boa noite! Hoje estou muito feliz!
Dr. Austregésilo de Athayde, digníssimo presidente da Academia Brasileira de Letras.
Senhores acadêmicos, eminentes confrades.
Excelentíssimo Sr. Antonio Houaiss, ministro da Cultura que nos honra com sua presença representando o Excelentíssimo presidente da República, Dr. Itamar Franco.
Excelentíssimo Sr. Ricardo de Aziz Cretton, procurador-geral do Estado, representando o Estado do Rio de Janeiro.
E a todos os senhores que prestigiam esta cerimônia.
Sinto-me extremamente honrado pelo privilégio de ocupar, a partir de hoje, a cadeira de número catorze do Quadro de Correspondentes da Academia Brasileira de Letras — monumento da sabedoria humana de grandiosa tradição.
Gostaria de expressar meu mais profundo agradecimento aos senhores acadêmicos, que tiveram a generosidade de me eleger, e particularmente ao presidente desta instituição, Dr. Austregésilo de Athayde, a quem rendo o mais elevado respeito.
É para mim honra imensurável tomar posse desta cadeira e um privilégio ser o primeiro oriental a se tornar sócio-correspondente desta Casa. Insigne cadeira cujo patrono, Francisco de Mont’Alverne, é proeminente filho desta cidade do Rio de Janeiro — e que já foi ocupada por nomes ilustres como Herbert Spencer, Jean Finot, Ernest Martinenche e Ramón Menéndez Pidal.
Tenho a responsabilidade de suceder ao renomado William Grossman, tradutor para o inglês das obras de Machado de Assis, fundador e primeiro presidente desta academia.
Não posso esconder minha incontida alegria por ser laureado com a Medalha Machado de Assis. Manifesto, mais uma vez, meu comovido agradecimento.
No fim do século 19, quando a Academia Brasileira de Letras foi instituída, seu primeiro presidente, Machado de Assis, nome glorioso da literatura brasileira, expressou em seu discurso inaugural que esta academia foi “iniciada por um moço, aceita e composta por moços, nasceu com alma nova, naturalmente ambiciosa, com o desejo de conservar, no meio da federação política, a unicidade literária”, inspirado na Academia Francesa. A propósito, quatro anos atrás, convidado pela Academia Francesa, proferi um discurso intitulado “A Arte e a Espiritualidade no Oriente e no Ocidente”, que concluí com os seguintes versos de minha autoria:
A arte estende a sua mão
E chama a alma para a serena floresta
Que enche de paz o coração humano,
Para o jardim onde brilham as flores da imaginação
Que passeia pelo céu.
Chama para as alturas do sublime campo
Da sabedoria
E para o horizonte sem fronteiras
Da civilização universal.
Escrevi este poema com a firme convicção de que o avanço da ciência e da tecnologia está reduzindo o mundo, porque destrói fronteiras culturais e impõe comportamentos coletivos, sem levar em conta a vocação dos indivíduos. É preciso cultivar cada dia mais os valores espirituais com a intenção de construir uma verdadeira civilização universal, sem a qual não surgirá a alvorada da esperança no século 21.
É inegável, porém, que, após o colapso da ideologia, o mundo se incline cada vez mais para a diversificação. Ao mesmo tempo, é cada dia mais acentuada sua tendência para o caos, como se estivesse sendo regido pela lei termodinâmica de aumento da entropia. Diante dessa realidade negativa, sou um dos que acreditam que, para se alcançar a harmonia e a integração dentro da diversificação — no intuito de desbravar o horizonte da civilização universal —, são inestimáveis o peso e a importância da cultura brasileira. Parece-me evidente, também, que a democracia étnica da sociedade humana brasileira, virtude mundialmente reconhecida, é um tesouro histórico da humanidade. Chega a ser um exemplo luminoso, quando consideramos acontecimentos recentes, como os conflitos deprimentes em Los Angeles1 e a insensatez de movimentos neonazistas na Europa.
O historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda assim se refere a esse caráter do povo brasileiro em sua clássica obra Raízes do Brasil: “...daremos ao mundo: o homem cordial. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro”.
De fato, alguns amigos meus, brasileiros de origem japonesa, chegam a afirmar que o Brasil é o melhor país para se viver. Inclusive, há alguns anos, mantive um diálogo com o Sr. Ryoichi Kodama, que posteriormente foi transformado em livro. Ele foi um dos primeiros imigrantes japoneses a chegar ao Brasil e me declarou: “Sou deslumbrado pela natureza do Brasil. Gosto tanto deste país que, se fosse escolher um local para nascer de novo, seria mesmo o Brasil”.
Qual é a essência que repousa oculta nas profundezas da herança espiritual do povo brasileiro, capaz de fascinar tantas pessoas, milhões de pessoas? Permito-me uma analogia com o Grande Sertão: Veredas — o magistral romance de Guimarães Rosa, escritor imortal desta academia — dizendo que a essência brasileira é o “grande universalismo”.
A civilização europeia, fundamentada na ciência e na tecnologia, preconizando certo tipo de “universalismo”, veio predominando sobre o mundo nos últimos séculos da era moderna. A Europa exerceu forte influência mundial por meio de uma ação intransigente, motivada pelo expansionismo e pela doutrina da eficiência acima de tudo. Tratei longamente dessa questão, vinte anos atrás, com o sábio inglês Arnold Toynbee. O livro Escolha a Vida, já editado no Brasil, resume nosso diálogo. Toynbee deu a uma de suas obras, de 1953, o título O Mundo e o Ocidente, na qual considera que as demais civilizações do mundo não tiveram outra escolha senão procurar a melhor forma de assimilação e a posição mais conveniente em relação à civilização dominante do Ocidente. Também no Brasil, este foi um tema debatido apaixonadamente a partir da década de 1920 pelos intelectuais que, com a percepção própria da época, defendiam os conceitos de “modernismo” e “regionalismo”.
Cabe aqui uma pergunta: será que esse “universalismo”, preconizado pela civilização científico-tecnológica, tem mérito para ser considerado “universal”? A resposta, a meu juízo, é claramente negativa. Só num mundo de autossuficiência — abstraído e alienado de valores fundamentais da vida — talvez houvesse possibilidade e coerência para sua universalidade. Eu os convido a pensar na casca de uma fruta. Da mesma forma que ela constitui apenas uma parcela da fruta, também esse “universalismo”, em relação à dimensão da vida cotidiana do ser humano, não passa de uma parcela. Trata-se, portanto, de um “pseudouniversalismo”, aplicável apenas a áreas limitadas, válido somente para casos isolados e particulares.
Com relação a esse fato, o Dr. Fred Hoyle, autoridade em astronomia e professor da Universidade de Cambridge, fez uma proposição muito original, introduzindo os conceitos de “caixa fechada” e “caixa aberta”. Esses conceitos constam do prefácio escrito pelo Dr. Hoyle para o livro Espaço e Vida Eterna, que reproduz meu diálogo com seu discípulo, o Dr. Nalin Chandra Wickramasinghe, do Sri Lanka.
Segundo Hoyle, a ciência moderna vem sofrendo forte influência do dogma geocentrista, estabelecido por volta do ano 500 d.C., mantendo um ponto de vista de “caixa fechada”. Ela se baseia na asserção de que “nada do que ocorre sobre a Terra possui qualquer relação concebível com acontecimentos no universo além da Terra, exceto, é claro, o efeito gratificante do calor do Sol”.
Sucede que é extremamente reduzido o número de problemas que se esclarecem dentro desse raciocínio de “caixa fechada”. Para entendimento de fenômenos essenciais da vida e do universo, torna-se indispensável uma visão de “caixa aberta”. Por isso, o Dr. Hoyle manifestou grandes esperanças nesse diálogo entre dois asiáticos que compartilham da mesma herança cultural do Budismo.
É imprescindível observar que o raciocínio da “caixa fechada” — quando fundamentado no instinto humano — influencia a visão sobre as questões do mundo como um todo, não se limitando ao universo da ciência. Para simplificar, direi que a “caixa fechada” funciona como um dogma ou preconceito; ela encerra a verdade em si mesma e ignora o mundo exterior. Justamente por essa razão, o dogma geocentrista, no qual a ciência moderna se emaranhou sem tomar consciência, está intimamente ligado ao antropocentrismo e ao etnocentrismo — doutrinas que marcaram profundamente a civilização moderna. Não é, portanto, exagero afirmar que eles são irmãos gêmeos, gerados pela mesma “caixa fechada”.
Se buscarmos as raízes do colonialismo que se abateu ferozmente sobre a Ásia, a América Latina e a África, vamos nos defrontar com o pensamento da “caixa fechada”: pensamento dogmático cuja influência, como sabemos, foi enorme sobre a civilização moderna. Certamente os que se deixaram influenciar eram pessoas moralmente íntegras. Mas o etnocentrismo — alicerce da política de colonização — tornava-os, cientistas e colonizadores, isentos de sentimento de culpa ou de remorso: ao contrário, agiam motivados basicamente por um sentimento de missão. É no fato de isso ter passado em brancas nuvens que está, justamente, o reflexo da gravidade desse problema.
Joseph Conrad, romancista inglês de origem polonesa, esclarece admiravelmente esta questão em seu romance de 1902, O Coração das Trevas. Ele próprio realizou uma viagem subindo o rio Congo até o coração da selva africana, como tripulante de um navio caçador de marfim e viu com os próprios olhos a exploração do homem branco sobre o negro. Nessas condições, a narração dos fatos em sua obra é feita com verossimilhança singular. Há uma passagem sobre a conquista da terra em que ele afirma que tudo consistia em vencer pela força bruta àqueles “que têm uma pele de cor diferente da nossa”. E prossegue: “não é uma coisa muito agradável de se ver quando observada por um tempo demasiadamente longo. O que redime essa ação é unicamente uma ideia — a ideia que a inspira. Não uma afetação sentimental, mas uma ideia, uma fé desinteressada nessa ideia — algo que possamos erguer como um altar, e que possamos prestar reverência, oferecer sacrifícios...”.
A narrativa de Conrad transmite muito bem a ressonância do “universalismo”, cuja força transparente e impessoal mantém íntima relação com a paixão bárbara do colonialismo.
A “ideia” a que ele se refere é sem dúvida um produto da “caixa fechada”. Essa “ideia”, quando está dentro da “caixa fechada”, pode até avançar solitária, com ímpeto corajoso. Mas, uma vez transferida para a “caixa aberta”, começará a exalar um odor insuportável. Para comprovar esse fato, basta salientar que, na obra de Conrad, os apóstolos da “ideia” acabaram por descobrir, cheios de terror, a degradação da própria natureza humana.
O fenômeno não se restringe unicamente ao colonialismo. A civilização moderna como um todo veio evoluindo no interior da “caixa fechada”. E, dentro dela, foram banidas a sensibilidade, a compaixão pela dor do próximo, a generosidade com a natureza e o universo e a devoção às coisas sublimes. Confio em que, mesmo enfraquecidas, muitas dessas virtudes ainda perdurem para justificar as observações de Sérgio Buarque de Holanda, quando ele se refere ao caráter do povo brasileiro.
Não tenho por que glorificar levianamente as qualidades do Brasil. Contudo, assim como o célebre poeta Carlos Drummond de Andrade canta o seu país,
Tão majestoso,
Tão sem limites,
Tão despropositado,
Ele quer repousar
De nossos carinhos.
penso que a mescla de claridade e sombra da espiritualidade brasileira refuta qualquer síntese leviana. Mesmo que seu estado atual seja semelhante a um diamante protegido pelo solo, ainda não lapidado, quero encontrar no âmago da espiritualidade do Brasil uma ponte que possibilite substituir o universalismo superficial da civilização moderna pelo “grande universalismo”. Em junho do ano passado, a Soka Gakkai Internacional, com o precioso apoio de Vossas Senhorias, realizou a “Exposição sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento”, como evento oficial da Conferência Mundial das Nações Unidas, a Rio’92.
Naquela ocasião, o Dr. Athayde, falando no simpósio realizado nesta academia, fez uma afirmação que eu gostaria de relembrar: “O povo brasileiro é um dos maiores da humanidade, é uma força de esperança, é com ele que devemos contar para transpor as dificuldades do século 21”.
Não é por acaso que a literatura do Brasil e a da América Latina vieram manifestando com notável vigor a consciência da crise de ordem cósmica, irradiando, nas últimas décadas, intensa vitalidade para o surgimento de um cosmo harmonioso. Enquanto isso, dois grandes poetas europeus, o inglês T. S. Eliot, autor de A Terra Devastada, e o francês Paul Valery, de A Fonte Ressecada, já se inquietavam com o processo de enfraquecimento da energia criadora da arte dos países desenvolvidos.
Nesse sentido, é muito interessante o fato de Michel de Montaigne e Stefan Zweig — dois representantes dos cosmopolitas que viveram de forma intensa dois períodos tão diferentes da Europa moderna, sempre buscando igualmente o valor da espiritualidade universal — demonstrarem um sentimento caloroso em relação à terra brasileira.
Naturalmente, é necessário levar em conta que existe uma separação de tempo entre os brasis com os quais os dois tiveram contato. Para Montaigne, foram os costumes da sociedade indígena, numa época em que sequer existia o nome Brasil, dos quais ele se inteirou por meio dos relatos de um servo que viveu cerca de dez anos entre os nativos. Zweig, por sua vez, perseguido pelo nazismo, escolheu como local de exílio o Brasil dos meados do século 20, de notável avanço em termos de democracia étnica.
São experiências bem diferentes. Entretanto, as duas se irmanam. Zweig, à beira da morte, entretido com a leitura das obras de Montaigne, justamente em terras brasileiras. Existem impressionantes e fortuitas coincidências entre ambos, possuidores de raras características de cosmopolitas.
Ensaios, de Montaigne, é um dos livros de minha preferência desde a juventude. Tenho o prazer em destacar dessa obra, tesouro do pensamento humano, o trecho que se refere aos costumes do Brasil: “Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos”.
Essa meditação de Montaigne, que se inicia observadora, é admiravelmente ousada e corajosa se levarmos em conta o pensamento preconceituoso da época a respeito dos costumes da sociedade indígena. Sua visão cristalina e seu senso de equilíbrio permitiram que ele alcançasse, com 400 anos de antecedência, a concepção relativista da cultura, por meio da “descoberta do bárbaro”, que é uma das relevantes conquistas da antropologia cultural do século 20. Como o próprio Montaigne aprendeu com a vida, a visão multidirecional que descobre as coisas, colocando-se sempre no lugar de outras pessoas — não a forma egocêntrica de pensamento de “caixa fechada” —, é a condição indispensável a um cosmopolita. Já a visão unidirecional ou singular jamais conduzirá à concepção universal.
Zweig, obrigado a abandonar sua terra natal, escreveu: “De nada me valeu haver durante quase meio século educado meu coração a pulsar cosmopolitanamente, como o de um ‘citoyen du monde’”. E foi justamente o solo brasileiro que o acolheu, consolando-o da frustração e envolvendo calorosamente sua alma que se encontrava no abismo do desespero e da tristeza. Penso que são escassos os registros que testemunhem tão bem a generosidade brasileira, como o que se lê no seu testamento, incluído posteriormente em seu livro de memórias, O Mundo que Eu Vi: “Meu amor por este país foi aumentando dia após dia, e não teria preferido qualquer outro lugar do mundo para reconstituir a nova existência. O mundo para falar a própria língua havia desaparecido para mim e minha terra natal espiritual, Europa, destruiu-se a si própria”.
As duas grandes guerras mundiais, especialmente a brutalidade do nazismo, não passaram de uma atitude suicida da civilização moderna. Aqueles que menosprezaram o bárbaro do alto de sua civilização acabaram por revelar sob a luz do Sol que, na verdade, eles próprios possuíam uma natureza ainda mais bárbara. Imagino que Zweig estava plenamente de acordo com a afirmação de Montaigne a respeito dos indígenas: “Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades”.
Devo revelar que aprendi muito a respeito do Brasil através da obra A Moderna Cultura da América Latina, da inglesa Jean Franco, pesquisadora sobre este continente. Ela considera a cultura brasileira do século 20 como resultado da “tensão entre os movimentos em busca da tradicionalidade e da modernidade” e, por outro lado, da “tensão entre as pessoas que tentam enfatizar as características regionais ou locais e aquelas que tentam colocar o Brasil na vanguarda da cultura mundial”.
É uma observação simples, mas precisa. Acredito que os resultados frutíferos do “grande universalismo” somente serão obtidos dentro dessa relação de tensão. A “universalidade”, quando separada da “individualidade”, possui o perigo inerente de começar a caminhar sozinha, como a “ideia” descrita por Conrad. Eis uma valiosa lição que o século 20 aprendeu a um custo bastante elevado, depois que a “ideia” de etnia e classes sociais espalhou terror pelo mundo.
É preciso compreender bem que a verdadeira “universalidade” só pode ser encontrada numa íntima relação com a “individualidade”, e dentro dessa incessante relação de tensão, é a ação criativa da imaginação — aspecto essencial da arte — que permite atribuir um contexto universal aos fatores individuais.
Essa noção de universalidade é a própria essência do ensinamento budista Mahayana, que significa literalmente Grande Veículo, assim como podemos ver nas escrituras budistas:
“Os 84 mil sutras correspondem ao diário de minha vida”. (As pregações de Sakyamuni, o grande Buda histórico que viveu na Índia, são na verdade experiências vividas por ele.)
“Um princípio é revelado a partir da vida de uma pessoa e o mesmo princípio se aplica a todas as outras”. (Neste ensinamento budista, uma regra é transmitida utilizando como base as experiências de uma pessoa, esclarecendo que essa norma é igualmente válida para qualquer um.)
Em outras palavras, as teorias e os conceitos universais em si, verdades abstratas, não possuem um significado concreto. Só passam a ter valor quando são vividas por um ser humano real.
Para se conhecer a beleza mais autêntica de um povo, o melhor caminho ainda é a obra de seus grandes escritores. Infelizmente, são poucas as traduções de obras literárias brasileiras para o idioma japonês. Entre elas convém distinguir Grande Sertão: Veredas, admirável romance de Guimarães Rosa, universo mágico onde convivem o primitivo e o moderno, o individual e o universal.
Confesso que fiquei impressionado quando me deparei com a afirmação do jovem jagunço Riobaldo, numa trégua de suas lutas no sertão do Brasil: “Eu queria formar uma cidade da religião. Lá nos confins do Chapadão, nas pontas do Urucuia”. Jamais esquecerei a perturbadora emoção que senti diante desta enérgica expressão, de sonoridade cósmica. Em que lugar do mundo a religião se manifesta de forma tão vigorosamente viva? Reconheçamos que, neste fim de século, as religiões já não têm a mesma força de outrora; encontram-se enfraquecidas pela torrente da secularização. Estão perdendo a espiritualidade, escondida no íntimo envergonhado das pessoas. Atravessam altos e baixos efêmeros com seus ensinamentos duvidosos. Muitas práticas confundem-se com o ocultismo, ou funcionam como o gêiser cuja energia explode inesperadamente gerando conflitos sangrentos. A imagem que atualmente se tem da religião é, na maioria das vezes, negativa, sendo raros os casos, como o de Riobaldo, em que a religião é abraçada como fonte de esperança.
Pelas características da vida de jagunço, a religião floresceu em sua alma como uma necessidade. Sua paixão, apesar de aparentar ser selvagem e bruta, tinha raízes na rara sensibilidade que o torturava oscilando entre Deus e demônio, e o levava a questionar continuamente o amor, a confiança, a liberdade, a coragem..., enfim, a própria vida. Por isso, os conflitos pela hegemonia do sertão não eram, para ele, apenas questões de disputa pela supremacia, mas um golpe para despertar a si mesmo provocado pelo sentido de missão, que lhe era próprio. Como consequência natural, as andanças pelo sertão, entremeadas de combates, fortaleciam cada vez mais as contradições de sua “luta interior”. Riobaldo diz: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro... Sertão é dentro da gente”.
Trata-se de um processo de íntima transformação: o aprofundamento e a sublimação da particularidade do “sertão” para a universalidade do “sertão interior”. “Uma cidade da religião” significa ultrapassar a etapa da interiorização, transcender o cotidiano — como se fosse um símbolo “sagrado”, conforme a designação religiosa. O que vemos não é a religião desfigurada da era moderna, mas uma religião elevada com a força unificadora que envolve o homem, a natureza e o universo, tornando-se essência da fusão orgânica desses elementos e que age como fonte de energia para a restauração da cosmologia. Eis a razão pela qual as palavras de Riobaldo têm um conteúdo autêntico, digno de ser chamado “grande universalismo”.
Acho importante ressaltar que essa autenticidade está assegurada por uma vinculação profunda ao ser individual.
A busca do jagunço pelos valores do mundo primitivo, a descrição fiel da natureza do sertão — somente possível para um autor com profundo conhecimento de ciências naturais e de geografia —, os contos populares espalhados pela obra, tudo isso, de repente, produz em mim um efeito semelhante ao das montanhas íngremes primorosamente pintadas ao fundo em perspectiva, que realçam ainda mais o sorriso da Gioconda, a “Mona Lisa”, de Leonardo Da Vinci.
Vejamos como Riobaldo convive com a religião: “O que mais penso, testo e explico: todo mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para ‘desindoidecer, desdoidar’. Reza é que sara loucura. No geral, isso é que é salvação-da-alma...”.
Peço a vossa atenção para o trecho no qual ele diz que, para se curar o mal de uma época, só com uma oração de natureza religiosa. Aqui o dogma religioso está prudentemente evitado, o que existe é uma intensa busca da universalidade. O dogma, em vez de curar, tende a aumentar a loucura e o fanatismo num processo progressivo. Ao contrário, a religião deve, na prática, fortalecer a espiritualidade humana elevando-a para o bem, e ser o ponto de partida para estabelecer a harmonia mundial. Não tenho dúvidas de que o mundo religioso tão ansiado por Guimarães Rosa é a forma ideal do “grande universalismo”, e se tornará a espinha dorsal da civilização universal do século 21. Apesar da minha irrelevante força, tenho a firme determinação de trabalhar, cada dia mais, para desbravar essa espécie de Grande Sertão da espiritualidade universal.
Para concluir, como expressão da minha ilimitada confiança no futuro do Brasil, divido com os senhores os versos do grande Castro Alves, o poeta da liberdade:
Sim! Quando o tempo
Entre os dedos
Quebra um século, uma nação...
Encontra nomes tão grandes,
Que não lhe cabem na mão!
Heróis! Como cedro augusto
Campeia rijo e vetusto
Dos séculos ao perpassar,
Vós sois os cedros da História,
A cuja sombra de glória
Vai-se o Brasil abrigar.
Muito obrigado.
Nota: 1. Referem-se a uma onda de distúrbios ocorridos na cidade norte-americana de Los Angeles em 1992. Em 29 de abril de 1992, um júri absolveu, mesmo tendo sido registrado em vídeo, quatro policiais — três brancos e um hispânico — por agressão ao taxista afro-americano, Rodney King, depois de uma perseguição em alta velocidade. Milhares de pessoas na área de Los Angeles se revoltaram ao longo dos seis dias após o veredicto. Saques, assaltos, incêndios, assassinatos e danos materiais ocorreram, causando cerca de US$ 1 bilhão de prejuízo. Ao todo, 53 pessoas morreram durante os tumultos e milhares mais foram feridos.

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