Brasil Seikyo, Edição 2377, 24/06/2017, pág. A3 / Filosofia da Esperança
A prática dos conceitos budistas na vida moderna
Talvez não haja sofrimento maior do que se separar de um ente querido pela morte. E, embora saibamos com absoluta certeza que nosso tempo aqui é limitado e que ninguém pode escapar da impermanência da vida, isso não ajuda a nos preparar para o choque da morte ou para aceitar nossa própria inevitável separação deste mundo.
Por que nascemos? Por que temos de morrer? Que valor podemos criar a partir desta frágil existência?
O budismo surgiu da busca de respostas para estas perguntas.
O budismo ensina que não devemos fugir da realidade da morte, mas enfrentá-la diretamente. Nossa cultura contemporânea tem sido descrita como uma que procura evitar e até negar a questão fundamental
da nossa mortalidade. No entanto, é a percepção da
morte que nos obriga a examinar a vida e procurar viver significativamente. A morte nos capacita a ver a vida como um tesouro e nos desperta para a preciosidade de cada momento compartilhado. Na luta para desafiar a tristeza da morte, podemos desenvolver um radiante tesouro de coragem nas profundezas do nosso ser. Por meio dessa luta, nós nos tornamos mais conscientes da dignidade da vida e mais capazes de sentir empatia com o sofrimento das pessoas.
Da perspectiva budista, vida e morte são duas fases de um continuum. A vida não começa no nascimento nem termina na morte. Tudo no universo, desde micróbios invisíveis no ar que respiramos até grandes galáxias espirais, passa por essas fases. Nossa vida individual é parte deste grande ritmo cósmico.
Tudo no universo e tudo o que acontece são partes da vasta teia viva de interconexões. A energia vibrante que flui por todo o universo, e que chamamos de vida, não tem começo nem fim. A vida é um processo contínuo e dinâmico de mudança.
Porém, antigos ensinamentos budistas apresentam esse processo como um sofrimento inevitável e concentraram-se na possibilidade de se libertar dele.
Shakyamuni percebeu que o desejo é o impulso fundamental que impele a vida para a frente, amarrando- nos ao ciclo de nascimento e morte. A cada momento,
os impulsos de vários desejos são manifestados por pensamento, palavra e ação, que compõem a força latente do nosso carma individual. Por essas causas e efeitos, ações e reações, moldamos a nós mesmos e nossas circunstâncias de instante a instante, perpetuando um processo fluido contínuo ao longo de incontáveis existências. Além disso, Shakyamuni ensinou que não existe alma ou indivíduo permanente e que tenha existido ao longo de todo esse tempo, mas simplesmente a continuidade da energia cármica é que gera a ilusão de uma essência ou indivíduo imutável.
Portanto, eliminar o desejo cortaria a energia que alimenta o ciclo de vida e morte, e, no momento da morte, a vida seria extinta de uma vez por todas. Este estado de êxtase e aniquilação, ou nirvana, era o objetivo final dos primeiros ensinamentos budistas e hoje continua a ser considerado como tal por tradição. A vida, nessa perspectiva, é um ciclo de sofrimento do qual se pode eventualmente escapar. O Sutra do Lótus, no entanto, traz uma visão completamente revolucionária sobre os seres humanos de que a nossa vida tem um profundo propósito neste mundo.
Esta escritura budista, a qual Nichiren Daishonin e uma linhagem de estudiosos budistas antes dele consideraram como a expressão mais completa e perfeita da iluminação de Shakyamuni, enfatiza que a natureza essencial de nossa vida a qualquer momento é a de um buda. Ao despertar para a verdade do seu estado de buda inerente, descobre-se esse sentido fundamental de propósito, e a vida assume uma qualidade completamente diferente e fundamentalmente jubilosa.
Mas o que é a natureza de buda e como despertar para ela? Em essência, a natureza de buda é o impulso inerente à vida para aliviar o sofrimento e trazer felicidade às pessoas. Ela está contida no Sutra do Lótus com a declaração: “Medito constantemente: como posso conduzir as pessoas ao caminho supremo e fazer com que adquiram rapidamente o corpo de um buda? ” (PHJ, p. 320)
A frase Nam-myoho-renge-kyo, que Daishonin recomendou que seus seguidores entoassem, poderia ser descrita como o som desse impulso
primordial, este juramento, e
sua recitação, como a prática
que orienta a vida embasada
nesse juramento. Pela
alquimia maravilhosa deste
ato, o processo incessante de
mudança é a vida num processo infinito de
crescimento e transformação.
Nossa própria existência torna-se, então, uma expressão desse juramento. Do ponto de vista iluminado de buda, nós nascemos livremente neste mundo com a determinação
de despertar os outros para
sua natureza de buda. Quando estamos despertos para tal, as causas e os efeitos em nossa vida se tornam as causas e os efeitos do estado de buda: as circunstâncias particulares de nossa vida e de nosso caráter, nossos sofrimentos e triunfos, tornam-se os meios para demonstrar o poder da natureza de buda e formar laços de empatia com as pessoas.
Esse despertar para a
natureza de buda também é
por vezes descrito como um
despertar para o “eu maior”.
O presidente da SGI, Daisaku
Ikeda, comenta: “O eu maior
sempre procura aliviar a dor
e aumentar a felicidade das
pessoas em meio às realidades
da vida cotidiana. Além disso, o dinâmico e vital despertar do eu maior permite que cada indivíduo sinta tanto a vida como a morte com igual alegria”.
Nossa vida no mundo do estado de buda não é dirigida pelo nosso carma, mas por nosso juramento, nosso senso de missão. Somos fundamentalmente livres. Quando não estamos despertos para essa realidade ou quando nossa vida se torna desconectada desse juramento, levamos uma vida de “mortais comuns”, somos então regidos e sujeitos às vicissitudes do carma.
A beleza da vida deriva da grande diversidade de sua expressão. Da mesma forma, na sociedade humana, a natureza diversa das nossas lutas e vitórias, a grande variedade de possibilidades que permitem que nossa vida tome forma e chegue ao fim, nossa vida curta ou longa, tudo isso, à luz triunfante de nossa natureza de buda, se revela como significativo e valioso quando vencemos os sofrimentos.
As questões fundamentais da vida e da morte são, no final, uma questão de teoria e crença. O que importa é como vivemos, a nossa consciência da preciosidade
da vida e o valor que somos capazes de criar durante
uma experiência que passa, de acordo com o clássico chinês Compêndio das Dezoito Histórias, que registra as seguintes palavras do imperador T’ai-tsu (928­—976) da dinastia Sung: “A vida é como a passagem de um potro branco visto por uma fenda na parede.”(BS, ed. 1.826, 10 jan. 2006, p. A6). A maioria de nós tende a imaginar que sempre haverá outra oportunidade
de encontrar e conversar
com nossos amigos ou parentes novamente, por
isso não importa se algumas coisas ficam por dizer. Mas viver plenamente e sem arrependimento é dar-se aos outros ao máximo, trazendo todo o seu ser para o momento presente, com o sentimento de que pode ser o último encontro.
A visão do Sutra do Lótus sobre a vida e a morte é tal
que continuamente traz nossa consciência àqueles com quem compartilhamos esta vida, exortando a nos desenvolver de forma rica e contributiva. Quando agimos em prol da felicidade dos outros, sentimos uma energia renovada e um senso de conexão com nossa essência mais profunda.
À medida que persistimos nesses esforços ao longo do tempo, nossa vida adquire um crescente sentimento de expansividade e força. Dessa forma, extraímos os aspectos mais positivos da nossa humanidade e criamos uma existência de valor junto com as pessoas.
Adaptado da matéria publicada na revista SGI Quarterly, outubro 2015.

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